A questão do julgamento no Carnaval

É sabido que ninguém gosta de ser julgado, avaliado, criticado ou ter o seu trabalho sobre o “olhômetro” do outro. Muitos sentem mal-estar, angústia, medo, insegurança e pânico. Mas, felizmente ou infelizmente não existe outra forma. O olhar do outro além de necessário é obrigatório. Pode-se, é claro, discutir o fenômeno do olhar, digo da forma que o “estranho” nos vê, trata, avalia, observa e pergunta. Em geral desejamos que o olhar do outro tivesse a mesma semelhança do nosso ego e esquecemos que o alienígena, por definição e natureza, tem sua idiossincrasia, peculiaridade, singularidade, enfim, sua história de vida. Toda observação parte de um ponto exclusivista o qual somente o “eu” tem o conhecimento de como foi efetuada a construção daquele olhar. Todavia, pouco nos é permitido. Muitas coisas fazem parte do inconsciente e outras nem damos tanto valor. O fato do julgamento é algo próprio da condição humana e sua normalidade deve ser respeitada o que não impede a criação de limites e requisitos para ele.

No caso do Carnaval, diferentemente do que pensa o folião que tem sua escola no coração ou dos que se empanturram com os comentários da TV, a questão segue mais ou menos a mesma direção. Em primeiro, é necessário que as pessoas tenham a consciência de que o jurado está antes de tudo limitado em seu olhar. O profissional, às vezes escolhido a dedo, tem por obrigação e dever verificar e dominar os requisitos previamente elaborados e discutidos. São quesitos que carregam legitimidade porque foram anteriormente debatidos e aceitos pelos presidentes das escolas. Compreende-se a raiva, o desespero e o sentimento de vingança dos componentes de uma escola não campeã. Porém, os critérios de julgamento são de domínio público e cumpre ao jurado somente seguir o velho e bom manual. Nada mais. Como seres humanos somos passíveis de erro e é justamente por isso que avaliamos mais de uma vez os acontecimentos que o nosso olhar julga estar certo e/ou errado.

Um segundo ponto, e que merece ser entendido por muitos, diz respeito ao velho ditado, “quem faz não tem o direito de julgar”. A frase é simples e clara e pode ser acompanhada de perto por outra: “se não deseja a reposta, não pergunte”. Digo isso porque não faz o mínimo de sentido a liderança, o proprietário, o presidente, o diretor e outros, terem o privilégio de julgar - quando o julgamento faz parte do jogo - o que produziram. Quando tais relações começam a ter vida pode-se esperar o surgimento de corporativismo, perversidade, perseguição, corrupção e vingança. O jurado dificilmente estará certo, pois “o dono nunca olha os dentes do seu cavalo” e quando apontado as cáries ainda acha lícito criticar aquele que apontou. Portanto, o argumento é claro e volto a frisar, é mais do que necessário o seu entendimento, pois aquele que julga tem o direito de fazê-lo, porque por princípio e ofício, sabe-se que ele está de olho no erro, no equívoco, na desatenção ou no desleixo daquele que o escolheu para julgar. Teimo em dizer que o jurado de uma escola de samba deve ser reverenciado e com ele se deve tomar todo o cuidado e respeito não cabendo encostá-lo na parede ou ameaçá-lo sob pena de coagi-lo ou mesmo atrapalhá-lo na isenção de seu julgamento.

O terceiro e último ponto diz respeito ao exercício da crítica. Se o filósofo francês René Descartes (1596-1650) asseverou, “Penso, logo existo”, em um período no qual se discutia a vontade humana em descobrir as condições objetivas da vida de maneira clara e distinta, inclusive no campo da existência de Deus, na esfera da qual estamos falando (outras também, é claro) vale a dica: “Critico, logo, existo”. O jurado não está procurando Deus - ainda mais em meio ao Carnaval - e também não está querendo explicar nada. Cumpre a ele, e é óbvio que está sendo pago para isso, o exercício da compreensão e da crítica. Uma ação racional que necessariamente carrega suas conseqüências. Ele sabe o que está fazendo e não é por acaso que a ele é oferecido todo o poder discricionário de ação. Não creio que seria boa a existência de outra alternativa. Se tentar matar a crítica, cala-se a possibilidade de julgamento, de escalonamento de méritos, acertos e erros. Mais que isso, corre-se o risco de premiar quem não fez por merecer, quem não trabalhou e quem errou. Uma ação desta enterraria de vez os que andaram conforme os caminhos delineados a priori e, vamos ser duros e francos, não existe crítica construtiva ou negativa.

A crítica é crítica em qualquer lugar e deve ser entendida como um ato corajoso e fantástico de reconhecimento do outro, da diferença e da diversidade. Talvez nossa matriz ibérica tenha forjado um caldo cultural no qual navegamos impermeáveis às críticas. O problema é que perdemos a possibilidade de enriquecer, crescer sobre o erro e acertar na próxima. Critico porque algo incomodou, afetou o afeto e deixou-me indignado. Critico para melhorar, para apontar o erro e também os acertos, certo de que a busca é a premiação daquele que mais se aproximou da perfeição, mesmo sabendo de sua inexistência. Não estou me referindo a atos sádicos, perversos e de caráter questionável. Chamo isso de picaretagem. A crítica, no caso em tela, é muito importante, por isso a necessidade da isenção, liberdade e confiança nos jurados. O contrário disso é dar um tiro no próprio pé e saber, mesmo que por debaixo dos panos, que o vencedor não mereceu estar no local no qual deveria se encontrar um outro por mérito, criatividade e muito trabalho.

****************

Lúcio Alves de Barros - cientista social pela UFJF, mestre em sociologia e doutor em ciências humanas pela UFMG. Professor da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), da Faculdade ASA de Brumadinho e organizador do livro “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher polícia e sociedade”. Brumadinho: Ed. ASA, 2009.