O detalhe do Carnaval
O carnaval está se aproximando e, certamente, os barracões das escolas de samba, distribuídos por todo este país estão à pleno vapor. Se não estiverem algo de errado está acontecendo nesse mundo mágico e real. Não existem muitas alternativas. Carnaval, ao contrário do que pensa exageradamente o senso comum, não é somente o tempo (três ou quatro dias) em que suspendemos nossos valores e descansamos de nossa vida mais ou menos certa e cheia de trabalho. Para o sambista ou para os que fazem e vivem do Carnaval, a festa é antes de tudo, trabalho.
Está chegando o momento dos últimos ajustes, do acabamento dos carros, da venda das fantasias, da lavagem dos cofres e do acabar dos recursos. Está chegando o momento de verificar os “erros”, os “problemas” e as causas que levam as escolas a perderem ponto por ponto: basta uma fantasia sem lugar, faltando partes, rasgada, uma alegoria sem acabamento, arrastando coisas e homens e uma louca dançando sem cantar para que um ano de trabalho seja jogado todo no lixo. A coisa é assim mesmo - e por isso muito séria - por pouco corre-se o risco de jogar tudo no lixo.
Explico-me melhor, o quesito enredo, por exemplo, que na aparência parece pouca coisa para os que não fazem o Carnaval é lapidar para o meu raciocínio. É por ali, já no começo de tudo que sabemos se o carnavalesco e toda uma comunidade trabalharam conforme reza o figurino. Não estou nem falando dos critérios que os jurados devem necessariamente seguir. Mas de um quesito que é a alma da escola. É por ele que se conta a história e se revela toda a criatividade da comunidade. É nele que teremos o início (muitas vezes já na comissão de frente), o meio (em geral uma alegoria criativa) e o fim, num grande e maravilhoso carro fechando as alas. Detalhes são de suma importância nesse contexto: corre-se o risco de contar uma história mal contada, esquecer personagens cruciais, inverter o tempo ou a temporalidade ou mesmo misturar e se equivocar na hora da entrada ou no meio da avenida. Uma ala fora do lugar revela desleixo, falta de cuidado ou, no mínimo, falta de sabedoria, conhecimento e trabalho. Digo isso porque a famosa festa, alicerçada em um conjunto de histórias e propostas, historicamente é uma disputa, um campeonato no qual uma comunidade sonha e deseja vencer sua concorrente. Além disso, a festa é um produto que vai ser revelado, com todos os seus segredos, à população. Os mais cuidadosos carnavalescos chegam mesmo a estudar horas a fio, se entregam a livros, historiadores, antropólogos, artistas plásticos e pesquisadores. Em poucas palavras, eles dão a vida por 50 a 60 minutos cravados no relógio sob pena da perda de pontos os quais podem ser preciosos no final.
O Carnaval é uma festa, não há dúvida, mas é acima de tudo, trabalho duro e extremamente delicado, haja vista que - vale frisar - por pouco não se perde tempo, dinheiro e respeito diante de um torcedor, um amador, uma comunidade ou uma cidade inteira. Pois bem, a festa está rapidamente chegando e todo tempo é pouco. Para os que ainda andam descansando ou trabalhando sem parar em um frenético impulso cheio de adrenalina, é bom sugerir que dêem uma olhada no desfile do ano passado. Observem com muito cuidado os “furos” que certamente poderiam ser evitados: uma alegoria não pode estar inacabada, fora de contexto ou com leves ou gritantes defeitos. Muita atenção nas fantasias, desde as mais suntuosas às mais singelas. Um sujeito descalço sem o devido contexto no qual se insere é um perigo (literalmente um perigo), um outro de chinelos ou sandálias fora do lugar pode acabar com todo desfile (e não estou exagerando). Mais que isso, integrantes “levemente” bêbados, fumando, que não sabem a letra do samba ou que no meio do desfile cansaram é um alucinógeno para a evolução. O mesmo digo do puxador de samba que às vezes se esgoela para ser ouvido mais do que os outros pecando na harmonia, na letra e na “falta de ar”. Não posso deixar de mencionar o casal de mestre-sala e porta-bandeira que ainda teima em esquecer os jurados, a população e de se olharem constantemente - num belo e maravilhoso namoro - durante todo o desfile. O mestre Irineu há tempos já comentava sobre a verdadeira rainha que leva a “bandeira da escola” e que merece todo o respeito e o lugar mais privilegiado no desfile, é “daí que resulta toda a atenção que obrigatoriamente deve dar a ela o seu incansável guardião”. O mesmo pode-se dizer da comissão de frente: uma escorregada, uma “caidinha”, um esquecimento e acabou. Não tem como voltar, tal como é o caso da bateria que, no suor e nos apitos sucessivos se enche de serotonina e a mil perde todo um trabalho simplesmente porque não percebeu o aumento da velocidade ou a cadência dos instrumentos. Como se vê, o Carnaval é feito sobre um fio.
O leitor pode comentar que são detalhes. Todavia, não pode ser diferente: o Carnaval é sofisticado, é um conjunto de criatividades e um mosaico de idéias e vida. Ele está mais complexo, ostentoso e rico. No entanto, não é por acaso - a despeito dos enfurecidos presidentes das escolas - que se perde no detalhe e, vale repetir, ele está no sujeito que estaciona toda uma ala porque resolveu tirar fotos, se livrar de parte da fantasia, andar descalço, beber água, beijar a namorada na arquibancada por segundos ou mesmo porque, desavisado, desceu do carro para dar um beijo na mãe. É isso, Carnaval é trabalho, Carnaval é cuidado e Carnaval é detalhe.
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Lúcio Alves de Barros - cientista social pela UFJF, mestre em sociologia e doutor em ciências humanas pela UFMG.