O fio condutor
Para mim, o mais difícil da confecção de uma proposição é exatamente o começar dela, o big bang do fio condutor que nos levará, sem pausas de concatenação, a sair do labirinto em que nos metemos por escolha e vontade soberana. Depois da criação desse balizamento seguro seguimos céleres, buscando definir a contento, para nós e para os demais, as premissas contidas em nossas proposições. Nos muitos momentos de ócio de que atualmente desfruto deixo-me inundar por pensamentos das mais variadas espécies, a maioria deles formados da incomodativa categoria dos que se referem a nossa capacidade e qualidade de percepção. Vou tentar definir melhor o que entendo como capacidade de percepção, evitando criar um conceito sem fundamento, pouco substancial. Ao longo de minha jornada sempre lidei com pessoas que pareciam deter uma maneira toda especial de interagir com a vida: algo assim como se conseguissem viver sem ar, sem respirar; como se fossem feitos de cortiça, não de carne, ossos, músculos e sangue. Teríamos de presumir, caso queiramos nos manter numa análise lógica, que pessoas assim constituídas teriam de vibrar, atirar-se com sofreguidão as diversas nuances do viver. Há de se arregimentar em defesa de quem se comporta de modo tão apático, as necessárias diferenças de comportamento, de modo de pensar e de capacidade de lidar com as ferramentas que a Natureza disponibiliza cada um de nós, argumentação pejada de validade, mas que em nada diminui a minha estranheza a esse respeito. A bem da verdade, devo esclarecer que tenho, também, os meus momentos de apatia, de vontade de nada fazer, de me ausentar da convivência de meus semelhantes, enfurnando-me em algum lugar distante apenas acompanhado pelo meu inseparável e viageiro pensar. Não é este sentimento de isolamento que vejo presente nos meus concidadãos de cortiça, é algo mais análogo ao um viver sem participar, um egoísmo tardio que afeta tanto o culto como o inculto, homens e mulheres, sendo que nestes seres de cortiço viver, bem mais impactante que o medo da morte, é o medo da vida.
Poderíamos ainda trazer em defesa desses nossos contemporâneos a massificação de que somos vítimas e agentes, ora conscientes, ora não. No entanto seríamos obrigados a bater em retirada apressada, protegendo nossa desastrada peça de defesa embaixo de encabulados braços, já que a mesma não resistiria a um minguado jorro de luz, luz que mostraria de imediato com quanto gosto nos atiramos às rações da modernidade, tendo nos olhos o encanto pueril das crianças. Enfrentar esse nosso mundo de cortiça sem estarmos munidos de suficiente munição me traz a memória a derrota de Napoleão Bonaparte, não no campo de batalha de Waterloo, mas bem antes, ainda no auge de seu poder, quando sucumbiu à tentação de se coroar imperador de França, a convalidar, ingenuamente, o status quo que pretendia mudar. Temos outras derrotas bem mais recentes para deixar bem patente o quanto o oceano de cortiça pode ser ameaçador para uma ilha de pensar; dentre muitos pinçarei dois, aqui mesmo em terra brasílica: Jorge Amado, escritor baiano, vociferava contra a Academia Brasileira de Letras, a qual ironizou em um livro que escreveu, “Farda, fardão, camisola de dormir”, para depois, em idade avançada, gozar do merecido aplauso de ser mais um acadêmico, o mesmo acontecendo em outra área com o cantor Caetano Veloso, um cáustico crítico da breguice que não resistiu ao apelo de vender milhares de discos com a impagável música “Sozinho”, do compositor Peninha, alegando que precisava curtir o gosto do sucesso.
É imenso o cipoal de Waterloos a enredar desavisados em seu incessante e quixotesco guerrear contra o império de cortiça, restando ao pensador impenitente agarrar-se com firmeza em seu fio condutor, sem temer seu livre - pensar, salvo conduto seguro para não se prender nesse labirinto luminoso, tão atraente quanto mortífero. O perder-se do precioso fio condutor da busca do conhecimento tem como conseqüência o certeiro estatelar-se nas lúbricas lâmpadas da vida sem sentido, alvos de pálidos e insinceros salamaleques em feéricos salões, cemitérios de incontáveis mariposas deslumbradas.
Vale do Paraíba, manhã do terceiro domingo de Novembro de 2009
João Bosco