BRAILLE
Quem durante dois meses trabalhou na revisão lingüística do texto de uma formanda em Direito sobre tema relacionado ao consumidor deficiente visual no mercado de consumo, aprende muito. De tanto ler e reler.
Ler o texto da Lei nº 8. 078, de 11 de setembro de 1990 (CDC) enche de esperanças todos os envolvidos no mercado de consumo, principalmente quando tais envolvidos exercem o papel de consumidores.
O mais interessante, entretanto, é o foco da pesquisa voltado para o deficiente visual. Sabe-se de situações em que fornecedores sem ética e sem moral se aproveitam do ser humano portador dessa deficiência, por exemplo, no momento de dar-lhe o troco para um produto adquirido.
Qualquer um de nós, mesmo gozando das melhores condições de sua visão, pode repentinamente, por um ou outro motivo, tornar-se cego. Uma contemporânea de faculdade nem sequer usava óculos e, amanheceu um certo dia totalmente nas trevas. Conheci um motorista, casado, pai de quatro filhos, que passou oito dias de sua vida totalmente desprovido da visão. Depois de vários exames a causa foi apontada como de natureza psicológica. A minha avó paterna aos oitenta anos estava cega. Motivo: glaucoma.
A minha visão já foi de tal forma excelente que se poderia comparar à das águias. Faz aproximadamente quinze anos que comecei a usar óculos de graus inicialmente tímidos: “para descanso”! E, de lá pra cá, os graus foram aumentando até que o médico me anunciou a visita do mesmo mal que acometeu a visão da minha avó. É como se alguém recebesse um decreto que lhe impossibilitasse de ver toda a beleza da vida. A partir desse momento decretado, o recebedor da visita começa a ter obrigações de horário com o uso de colírios e visitas periódicas ao oftalmologista.
Ontem estava abrindo o PC para as atividades diárias: ler e-mails, passear no Recanto das Letras, pesquisar, escrever e revisar textos.Tentei acionar a entrada na net. Baixei a cabeça, senti algo estranho, uma leve tontura. Vi o mundo diferente. Pensei que os óculos estivessem embaçados, tentei limpar. E a sensação continuando. Lavei os óculos, tudo igual do lado direito. Resolvi entender. Uma mancha cinzenta passeando na minha frente por onde eu andasse. Só podia ser a visitante. Comecei a briga, tentei expulsá-la. Olhei-a em sua cinza, fiz caras e bocas, convidei-a a sair. E ela insistente. Ficando mais próxima, mais evidente, mais ousada. Comecei a pedir ajuda. A Cristo, claro. Só estávamos eu e Ele em casa. De joelhos implorei. Lembrei-me de seus gestos e palavras no Evangelho quando curou um cego. Repeti o gesto. Pedi também à Santa Luzia. Deitada, cobri o rosto e orei a mais não poder. Tinha medo de olhar e ver aquela miserável em seu vestido cinza, em sua cara irônica. E pensei em tantas coisas. Na família, amigos, alunos, trabalhos, escrever, ler, ver o mundo. Ai, quem anotará meus poemas?
Levantei o lençol do rosto, a mancha dançava, agora menor, mas lutando para ficar. Fiquei mais tempo sem olhá-la. Quando voltei a enfrentá-la era esverdeada e, agora, arredondada. Foi ficando azul e com um leve contorno róseo. Foi embora. Vejo o mundo. Agora tudo mais bonito: o azul do céu, as nuvens, o sol, as pessoas, as coisas. Tudo.
Espero não ter que um dia recorrer ao CDC por uma situação de completa vulnerabilidade. Acredito que não serei capaz de dominar o Braille. Convém ser justa e dizer que cada um de minha família seria mais que fiéis e amorosos cães a me guiar, mas espero em Deus não ter que envolver-lhes numa situação dessas. Desejo luz para todos.