DEUS ESTÁ MORTO

A religiosidade atual não passa da confirmação da constatação que dela foi feita já há muito tempo por Nietzsche, a de que Deus está morto.

Cabe aqui um esclarecimento, se porventura o leitor não conhecer o conceito nietzschiano da morte de Deus.

A morte de Deus não é uma morte física, definitivamente, não.

E de modo algum poderia ser, pois tal entidade metafísica de fato nunca existiu.

O que morreu, e Nietzsche constatou essa morte de maneira muito perspicaz, é o conceito de Deus como valor absoluto, como base para o estabelecimento de todos os outros valores.

E quem matou Deus?

Nós mesmos. Nossos antepassados o mataram, mais precisamente na Idade Moderna, com o advento da indústria e da crescente tecnologia.

Em um mundo dominado por máquinas, computadores, Internet e por avanços significativos na medicina e nas ciências em geral, não há mais sentido fazer uma oração para Deus esperando que ele resolva sozinho os nossos problemas.

No caso de uma pneumonia em seu filho (a), você que crê piamente em Deus, faria orações para curá-lo ou procuraria um médico para prescrever-lhe um antibiótico especifico para essa doença?

Ora, se Deus é todo poderoso, por que a sua ação isolada não é suficiente? Necessita ele do auxílio da tecnologia criada pelo homem para curar uma simples doença?

Ele, o criador do universo, não é auto-suficiente?

Esses fatos, e a religião atual, a cristã por excelência, confirmam a tese nietzschiana de que Deus está morto.

Por que surgiu, por exemplo, dentro de um catolicismo consolidado, uma Teologia da Libertação?

Porque a sociedade muda constantemente, e sem um amoldamento aos anseios desta, não é possível para uma religião sobreviver. O mesmo, e até com mais propriedade, pode ser dito das seitas evangélicas, o neopentecostalismo, por exemplo.

O que eles são?

São contorcionistas sociais hábeis no trato com as massas. Empresários capitalistas ávidos por dinheiro e poder, antenados no sentido de captar os desejos e as angústias do povo e respondê-los com os remédios desejados por este; quais sejam, os valores da sociedade capitalista de massa. Valores estes não eleitos conscientemente pelo indivíduo, mas incutidos sem a ciência deste que vive como um errante.

Você, caro leitor, escolheu conscientemente seus valores de vida?

A ênfase da religião cristã atualíssima não é mais na salvação da alma ou no comportamento do fiel, mas na sua realização pessoal em todos os sentidos, aqui e agora, nesta vida.

É óbvio que ainda se fala sobre o céu, sobre o paraíso, promete-se a vida eterna, mas não como foco, não como doutrina principal. A outra vida virá como bônus, depois de gozar tudo quanto for possível nesta.

Os evangélicos tradicionais, que vão na contramão das seitas neopentecostais, são ainda um tipo mais pernicioso de cristianismo.

Como?

Isso porque enfatizam justamente aquilo que os novos crentes esqueceram; a moral e a salvação da alma.

Incutem um sentimento que corrói a alma do homem e faz dele um escravo, um ressentido, uma besta ridícula, moralmente atormentada pelo inútil sentimento de culpa.

O sentimento de culpa, como observam os psicanalistas, não tem função nenhuma a não ser o castigo auto-imposto, a rememoração constante dos pecados e das faltas cometidas, como se este suplício expiasse algum erro ou consertasse alguma injustiça eventualmente cometida.

Sentimento que de fato não faz o homem parar de pecar, não tem o poder de frear seus fortes instintos naturais. Instintos e natureza que o cristianismo tenta há dois milênios em vão retirar do homem.

Nietzsche diz que para memorizar a "dívida" na relação com o credor, nossos primórdios utilizavam o fogo para queimar a carne daquele que "deve".

O sentimento de culpa é esse fogo que marca o indivíduo fazendo-o lembrar de todos os pecados que cometeu. O que dói faz lembrar o tempo todo, potencializa a memória.

Tudo somente para tortura, para controle das ações dos fieis, para que a vigilância sobre o seu agir possa ser exercida por ele mesmo, por sua má-consciência constante, quando seus "irmãos" não estiverem por perto.

Os psicanalistas relacionam também o sentimento de culpa com uma espécie de onipotência humana. O culpado sente que o destino pode ser totalmente controlado por ele e que as coisas acontecem ou deixam de acontecer pelas suas ações, omissões e até mesmo por seus pensamentos.

O que o cristianismo fez pela humanidade senão instaurar o sofrimento e a dor gratuita?

Pois, não há um fim para o homem, não há um ideal de humanidade, não há um dever-ser absoluto. Aqueles que instauraram esse dever-ser o fizeram baseados em seus próprios critérios do que venha ser bem e mal. Do que venha a ser moral.

Um homem realmente livre cria os seus próprios valores, não compactua com valores de rebanho que nunca foram conscientemente escolhidos por ele mesmo.

Se houver alguma virtude no neopentecostalismo, esta é o fato deste deixar de lado a forte preocupação moral das seitas tradicionais. O crente neopentecostal vive mais inocentemente, menos aflito, sem o fardo da culpa tão pesada, do sofrimento inútil auto-imposto.

É claro que devemos considerar também que as bestas neopentecostais, em geral, não possuem uma capacidade intelectual muito apurada. Isso já está claro somente pelo fato de aderirem a essa fé de massas, de rebanho.

A constatação da morte de Deus se dá e pode ser percebida inconscientemente por todos, inclusive os crentes mais convictos, que na vida atual não há espaço para este ser metafísico.

O homem não troca a certeza tecnológica pela fé, não troca a prosperidade por uma vida prosaica, não troca o medicamento alopático pela oração.

Ou seja, os valores de nossa sociedade não são compatíveis com os valores cristãos e uma vida cristã, vida esta, se levarmos o cristianismo a sério, impossível. Disso vem também a outra constatação nietzschiana de que “O evangelho morreu na cruz”.

Somente aquele que morreu na cruz levou uma vida cristã de fato.

Deus, Jesus, oração, fé, salvação, pecado - percebam que são todas palavras abstratas - hoje possuem uma conotação mais mercadológica, marqueteira, comercial do que o seu valor sagrado.

Aqui o valor sagrado se mistura às modernas técnicas de marketing para se padronizar procedimentos e fazer daquilo que um dia quis ser algo transcendental uma perfeita empresa prestadora de serviços da fé.

Vendem-se curas, milagres, prosperidade, sorte no amor, saúde e tudo quanto o ser humano comum mais deseja.

Tudo, em se falando de religião, é antropologia.

É o homem construindo mundos para ele mesmo, procurando soluções para seus próprios problemas. Em religião tudo é humano, demasiadamente humano.

Vale aqui reproduzir a frase imortal de Protágoras:

“O homem é a medida de todas as coisas”, inclusive das coisas de Deus. No fim, quem faz, quem fala, quem cria, quem destrói é o homem.

Deus e Jesus, principalmente, são palavras fortes que sobreviveram ao tempo. Palavras que carregam entre os ignorantes o valor de sagradas, mas que os astutos padres e pastores converteram em valores de mercado, aliás conversão muito bem feita, pois os mais bem-sucedidos chegam a construir verdadeiros impérios empresariais em cima dos nomes abstratos citados.

Confirmando ainda mais que os valores cristãos estão mortos e Deus definitivamente está morto.

Chego até a pensar que os neopentecostais, seus líderes mais especificamente, sabem conscientemente que estão além de bem e de mal e são criadores dos seus próprios valores.

Pois não há escrúpulo, não há moral no agir deles. O que confirma mais uma vez a morte de Deus.

Na verdade são pessoas que também assumiram os valores da sociedade capitalista, o de acumular bens e dinheiro como fim em si.

O poder é o outro valor muito difundido pela sociedade de massas e que acabou por se tornar também um valor em si mesmo.

No fundo são decadentes. Quem elege o dinheiro como valor em si é porque sua vida espiritual de fato é muito pobre.

Quem diria que aquilo que no início buscava por uma transcendência acabasse como a mais pura e decadente expressão da corrupção humana.

A religião é o antropocentrismo elevado à estratosfera.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 19/11/2009
Reeditado em 19/11/2009
Código do texto: T1933097
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