A comparação entre a mulher e o amanhecer, no poema "O amanhecer das criaturas", de Lêdo Ivo.
O amanhecer das criaturas, de Lêdo Ivo
O dia forma-se
de quase nada:
um seio nu
por entre pálpebras,
o sol que raia
e a luz acesa
no arranha-céu
que a aurora lava.
A mão incerta
deixa na rósea
carne dormida
o gesto equívoco.
Tudo é lilá
na luminosa
e vã partilha.
No dia imenso
nascem tesouros:
curvos, redondos.
O pão à porta,
depois o leite,
e o erguer dos corpos
No poema “O amanhecer das criaturas” existem dois aspectos relevantes: o primeiro refere-se ao uso recorrente de imagens e o segundo, à sua sonoridade bastante expressiva. Além desses dois aspectos, nota-se, também, a presença de verbos predominantemente no presente do indicativo e metonímias.
A primeira estrofe já apresenta, de maneira sutil, o tema do poema – o amanhecer – por meio de imagens: “O dia forma-se / de quase nada: / um seio nu por entre pálpebras”. Esta imagem “um seio nu por entre pálpebras” pode representar tanto o sol despontando no horizonte, quanto o próprio corpo feminino ao amanhecer, ou seja, é uma imagem de duas vertentes, sendo que a imagem do sol nascendo é estabelecida metaforicamente (o nascer do sol é como um seio nu por entre pálpebras), já a da mulher é apresentada por meio de uma metonímia (o seio representando a mulher em si – parte pelo todo).
Na penúltima estrofe do poema, surge uma nova imagem, que confirma o paralelo que há entre o amanhecer da natureza e o do ser humano (este representado pela mulher): “No dia imenso / nascem tesouros: / curvos, redondos”. Podemos dizer que existe uma progressão entre a primeira imagem citada nesta análise e esta. “Um seio nu por entre pálpebras”, como já foi dito, transmite a idéia do sol despontando, o homem acordando, enfim, o amanhecer; já nesta imagem “nascem tesouros: curvos, redondos”, novamente o sol e o corpo feminino estão representados, porém nota-se que, agora, eles mostram-se de maneira mais completa (é o sol do dia já formado, com sua curvas, redondo, assim como o corpo feminino já acordado, de pé, visto de maneira completa).
Faz-se necessário compreender o porquê da mulher simbolizar o amanhecer do ser humano, formando um paralelo com o amanhecer da natureza. O processo do amanhecer ocorre de maneira suave, delicada, assim como a idéia que se tem do corpo feminino, da mulher em todos os seus gestos. Na quarta estrofe há um verso que exprime bem esta idéia de suavidade: “Tudo é lilá / na luminosa / e vã partilha”. A cor lilás é suave, porém a palavra “luminosa”, que aparece logo após, se contrapõe à idéia de suavidade. Estabelece-se um paradoxo: apesar do sol já estar quase em seu auge (daí a palavra luminosa) ainda existe a suavidade própria do dia formando-se.
No que diz respeito à sonoridade, existe a presença marcante de diversos sons, que exprimem uma progressão no poema. Já na primeira estrofe há uma aliteração das sibilantes /s/ e /z/, que podem representar um barulho suave, quase um murmúrio, isto é, os primeiros sons do amanhecer. Depois, na segunda estrofe, há a assonância da vogal oral aberta /a/, transmitindo a idéia de “claridade”, do sol que começa a iluminar o dia: “O sol que raia / e a luz acesa / no arranha-céu / que a aurora lava”.
No decorrer de todo o poema há a aliteração das consoantes constritivas vibrantes /R/ e /r/, que podem representar o som de algo deslizando, fluindo: “O sol que raia / e a luz acesa / no arranha-céu / que a aurora lava”. Portanto, elas aparecem em todo o poema como uma forma de marcar o fluir do amanhecer. No entanto, a partir da quarta estrofe, estes sons tornam-se menos freqüentes, quando a aliteração das consoantes constritivas laterais /l/ e /lh*/ - que também expressam a idéia do “fluir” – tornam-se mais marcantes, dando uma sensação de aceleramento no processo de formação do dia: “Tudo é lilá / na luminosa /e vão partilha”.
Na quinta estrofe, a assonância das vogais orais fechadas /o/ e /u/ marcam a idéia de “redondez”, confirmando ainda mais a imagem anteriormente citada do sol no pino do dia e das “curvas” que compõem o corpo feminino.
Por fim, a última estrofe conclui o processo descrito em todo o poema: o dia amanhece. Isto fica claro, inclusive, pela sonoridade expressa pelas consoantes oclusivas surdas /p/ e /t/ que produzem ruídos duros, de pancadas, passos pesados, representando, pois, o barulho do cotidiano, das pessoas no decorrer do dia.
Além da questão sonora, substantivos comuns como “pão”, “leite” e o deverbal “erguer” transmitem ainda mais a idéia de que o dia finalmente começou, com tudo o que faz parte de seu cotidiano.
Tendo em mente todos os aspectos descritos nesta análise, é possível afirmar que existe no poema uma descrição (esta marcada pelos verbos predominantemente do presente do indicativo) do processo do amanhecer da natureza e do ser humano: “A mão incerta / deixa na rósea / carne...”. Essa descrição é feita simultaneamente, isto é, por meio de imagens que se desmembram em metáforas e metonímias. Além disso, este processo descrito metafórica e metonimicamente, representa a própria fragmentação característica da formação do dia.
A linguagem que compõe todo o poema reflete a própria idéia que o mesmo quer expressar: o amanhecer como um processo “sugestivo”. Por isso o uso de tantas imagens, metáforas, metonímias, enfim, uma linguagem que apenas sugere.