PELA ÉTICA PLANETÁRIA




Ética da resistência/ética da aceitação/ética da compreensão/ética da religação/autoética






          O século XX é considerado o marco histórico do avanço científico/tecnológico e nunca houve em toda história humana, tantas mudanças de comportamento como na sua segunda metade. Este desenvolvimento acelerado proporcionou a integração de diferentes culturas, estabelecendo um mundo globalizado inter-relacionado e interdependente. Mas toda a tecnologia e o conhecimento desenvolvidos nesta época não foram capazes de promover uma vida digna a todos.
          A superação destes problemas exige uma mudança de mentalidade, um repensar o bem, ou seja, a própria ética. E é isto que propõe Edgar Morin, uma ética da diversidade, uma ética planetária consolidada no respeito pelo outro com todas suas diferenças; na solidariedade com o outro com a plena satisfação das necessidades de sobrevivência e transcendência tanto individual quanto coletiva; como também na cooperação com o outro na preservação dos patrimônios natural e cultural de todos os povos e do próprio planeta.
          Edgar Morin nasceu em Paris, em 1921. Formado em História, Geografia e Direito, se especializou em Filosofia, Sociologia e Epistemologia, após ter participado da Resistência ao nazismo, na França ocupada, durante a Segunda Grande Guerra.
          Pensador crítico, reflexivo e muito produtivo, dedica-se ao estudo da complexidade, termo que apropriou da cibernética e incorporou à sua obra desde a década de 1960. Em suas reflexões sobre ciência e filosofia, Morin contrapõe-se ao pensamento reducionista, linear e simplificador.
          Autor de mais de trinta livros, Morin se tornou um dos pensadores mais importantes do século XX, mas precursor da nova mentalidade para o século XXI, propiciando uma nova visão de Natureza (cuidado com o Planeta), do ser humano e sua ação no mundo, em uma vivência de cultura de paz e valores humanos frente a um mundo globalizado, mas fundamentado no respeito à diversidade.
          Segundo Morin, é preciso criar um pensamento consciente de pertencer a uma comunidade planetária e, enquanto cidadão terrestre, de participar de processos múltiplos e distintos, mas solidários entre si. A união planetária é a exigência racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência e um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à nossa Terra, considerada como primeira e última pátria (MORIN, 2003, p. 75).
          Ou seja: todas as ações e omissões afetam nosso planeta de algum modo, bem como os seres humanos e é necessário desenvolver a capacidade de pensar o contexto terrestre, o global, o multidimensional e o complexo, amenizando os conflitos e ensinando a ética da compreensão planetária. Para tanto é preciso viver e comungar nas - e através das - culturas singulares, na integração de valores ao invés da aculturação.
          A condição humana é o ponto central para a compreensão de uma ética planetária, e para conhecer o humano, é preciso encontrar seu lugar no universo. Não há espaço para o reducionismo. Somos indivíduos de uma sociedade e fazemos parte de uma espécie. Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte de uma sociedade, temos a sociedade como parte de nós, pois desde o nosso nascimento a cultura nos imprime. Portanto, a realidade humana é trinitária: indivíduo-sociedade-espécie; um gera o outro e vice-versa. Somos indivíduos singulares, somos um fragmento da sociedade e da espécie Homo sapiens.
          Morin salienta que, ao mesmo tempo em que o ser humano é múltiplo, ele é parte de uma unidade. Sua estrutura mental faz parte da complexidade humana.           Portanto, ou vemos a unidade/singularidade e esquecemos a diversidade das culturas e dos indivíduos, ou vemos a diversidade das culturas e não vemos a unidade/singularidade do ser humano, sendo que precisamos ver a parte, o todo e a totalidade. Nós temos os elementos genéticos da nossa diversidade mas também os elementos culturais da nossa diversidade. Isso nos permite entender a nossa realidade, nossa diversidade e singularidade.
          Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano.           Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno (MORIN, 2003, p. 55).
          É o princípio hologramático, que representa o paradoxo de que a parte está no todo assim como o todo está na parte. É a totalidade do patrimônio genético que está presente em cada célula. Compara à imagem física do holograma, que concentra em si todos os pontos e é projetada no espaço em três dimensões. A quebra de uma imagem hologramática não apresenta imagens mutiladas ou fragmentadas, mas imagens completas multiplicadas.
          Outro ponto importante que ele expõe é que existe, neste momento, um destino comum para todos os seres humanos. O crescimento de uma ameaça letal se expande: a ameaça ecológica e a degradação da vida planetária. Não há uma tomada de consciência efetiva de todos esses problemas e tampouco o alcance de que a humanidade é uma comunidade de necessidades comuns a serem atendidas. Por isso, faz-se urgente a construção de uma consciência planetária.
          Mas para atingir este objetivo, é necessário superar o espírito reducionista do ser humano, onde este reduz a multiplicidade da personalidade a um único traço, por exemplo, qualificar o outro por um crime, uma idéia ou mesmo uma fé, sem ver os outros traços deste indivíduo.           Deve-se buscar a ética da compreensão entre as pessoas, relacionada à ética planetária que suscita uma mundialização da compreensão. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. É compreender mesmo aquele que é incapaz de nos compreender (MORIN/2003, p. 98).
          A noção de uma comunidade planetária aponta para a necessidade de uma ética para a Humanidade. Faz-se necessário desenvolver, ao mesmo tempo, a ética e a noção de responsabilidade pessoal e social, visto que os seres humanos compartilham um destino comum.
          Tudo deve estar integrado para permitir uma mudança de pensamento, transformando a concepção fragmentada do mundo, que impede a visão total da realidade, sendo que essa visão fragmentada faz com que os problemas permaneçam invisíveis para muitos.
          “A ética se manifesta em nós de maneira imperativa, como exigência moral” (MORIN, 2005, p. 19). Esse imperativo origina-se de uma fonte interior ao indivíduo, que se manifesta como um dever; outra fonte externa, constituída pela cultura e que tem a ver com a regulação das regras sociais ou de convivência e, também de uma fonte anterior, originária da organização viva e transmitida geneticamente.
          A ética, no entanto, só faz sentido na sua aplicação prática. Nossas atitudes devem ser amorosas, implica cuidar do que temos na vida em suas diversas dimensões: nós, o planeta e o outro. Exercemos nossa cidadania quando agimos e participamos de tomadas de decisão, quando somos efetivamente políticos e democráticos, quando tomamos partido e nos posicionamos criticamente no espaço que ocupamos.
          O sujeito é compreendido então como um organismo complexo capaz de pensamento. E que pensa a partir de uma tensão estabelecida entre o princípio de exclusão e o princípio de inclusão.
          O princípio de exclusão é antagônico e responsável pela identidade singular de cada sujeito. Este princípio se expressa como egocentrismo, o qual pode vir a se tornar egoísmo, favorecendo a origem de muitos atos eticamente condenáveis.
          O princípio de inclusão rivaliza com o de exclusão e é ele que faz o indivíduo sentir-se parte de uma coletividade. Ele transforma o "eu" em "nós" e pode se expressar na forma de altruísmo, favorecendo atos eticamente desejáveis. O sujeito moral vive, então, oscilando entre o caráter vital do egocentrismo e o potencial existente em cada sujeito para a prática do altruísmo.
          Oscilamos permanentemente entre razão e afetividade; e conseqüentemente entre o princípio de inclusão, que responde pela consciência do “nós”, propiciada pelo coletivo e próximo (mãe, família, partido, grupo ou pátria) e com o princípio de exclusão, que garante nossa identidade singular (eu mesmo) e egocêntrica.
          Para Morin, é possível distinguir, mas não isolar os domínios individuais, sociais e biológicos que juntos configuram o paradigma aberto e inacabado da espécie humana, do sujeito e da ética. Se oscilamos entre razão e afetividade, entre egoísmo e altruísmo, entende-se que a ética é complexa por ter sempre de enfrentar a ambigüidade e a contradição; por estar exposta à incerteza e por se situar no limite entre o bem e o mal. Assim como o pensamento complexo, a ética complexa não escapa ao problema da contradição. Há sempre incerteza escondida sob a aparência do bem e do mal.
          O pior e o melhor do mundo estão no ser humano. Os seres humanos são um misto de barbárie e de bondade. E mesmo em um mundo onde o mal parece predominar, não denota um pensamento derrotista, ao contrário, Edgar Morin conclui que, mesmo que a crueldade e a barbárie sejam majoritárias, é preciso de forma obstinada e incansável apostar na bondade humana (que ele chama de “ilhas de bondade”). A ética de resistência à crueldade do mundo é também ética de aceitação do mundo (Aquilo que une a ética da compaixão à ética da compreensão é a resistência à crueldade do mundo, da vida, da sociedade e à barbárie humana.           Existem múltiplas ilhas de bondade entre nós. Tudo deve começar com elas. (MORIN/2005, p. 200).
Morin retoma bases metafísicas da moral, onde uma cosmologia se estende como base de sua teoria ética. Uma cosmologia fundamentada na ciência, mas que confere um caráter místico às forças do universo. Como exemplo, a expansão e contração dos espaços cósmicos, explosões, colisões de partículas nucleares, interações eletromagnéticas, etc., são tomadas aqui como forças de dispersão e destruição ou de regeneração e religação.           Estas forças constituem tudo o que existe e estariam presentes também no espírito humano.
          Para Morin, a crença numa ética superior com finalidades libertadoras universais toma, quase sempre, ilusões por verdade. Daí a necessidade da vigilância ética e do exercício do "pensar bem". O bom pensamento toma a condição humana em sua complexidade e nutre, dessa forma, a capacidade de julgamento ético do sujeito. Seu princípio de religação orienta os sujeitos na direção da solidariedade. O ato moral é, neste sentido, um ato de religação do indivíduo com a sociedade e com a espécie humana, um ato capaz de provocar regeneração nas relações humanas, ou seja, o elo que liga o sujeito, a sociedade e a espécie. A ética da religação exige manter a abertura ao outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum, consolidar e tonificar a compreensão do outro. A religação é um imperativo ético primordial que comanda os demais imperativos em relação ao outro, à comunidade, à sociedade, à humanidade (MORIN/2005, p. 103 - 104).
          O "pensar bem" leva à religação, que liberta o conhecimento da fragmentação disciplinar. Busca o método complexo e transdiciplinar de entendimento e reconhece a multiplicidade na unidade e a unidade na multiplicidade, superando assim o reducionismo. Concebe a racionalidade aberta ao mesmo tempo em que enfrenta as incertezas e contradições. "Trabalhar pelo pensar bem reconhece os imprintings e as normalizações que uma cultura grava nos espíritos dos indivíduos e considera necessariamente isso nos seus julgamentos éticos" (MORIN, 2005, p. 63).
          Para Morin, existe uma barbárie interior que é própria do espírito humano e que exige esforço para ser vencida. Daí a necessidade de procurar conhecer a si próprio, suas motivações, valores e fraquezas, desenvolvendo uma cultura psíquica individual, mas permeada pelo cultural. Para este pensador, o autoconhecimento pode evitar as estratégias do espírito humano para justificar atos moralmente questionáveis, como as "auto-ilusões", as mentiras para si mesmo como esforços de auto-justificação. Ele convida então a compreender a incompreensão, investigando as razões pessoais e socioculturais e estudar as possibilidades de compreensão, no sentido de abordar de forma complexa os conflitos.
          Isto significa que é absolutamente necessário à auto-ética um trabalho constante de autoconhecimento, de auto-elucidação e, eu diria mesmo, de autocrítica. (...) Eis aí o longo caminho, o difícil caminho que nós devemos percorrer. A auto-ética não nos é dada. Precisamos construí-la, e eu penso que este problema de construção implica um problema de educação fundamental, talvez desde o início da escolaridade... (MORIN, 2003. p. 44).
          Morin chama de auto-ética, aquela prática que se dá num trabalho constante de autoconhecimento; e se contribui para a formação da auto-ética quando se coloca a discussão dos valores pessoais pautados na construção de uma consciência de valores universais. Deixa de ser unilateral e passa a respeitar a todos com eqüidade. A autocrítica surge, então, da disposição de abertura para ouvir o outro e a si mesmo, e este processo só se torna possível por meio do diálogo.
          Assim o método dialógico já se apresenta como uma postura ética na construção da auto-ética. O respeito às opiniões de cada um se expande para o respeito pela humanidade, sem separar o indivíduo da espécie e os dois dentro de um contexto mais amplo que é o planeta. Define como ético o indivíduo que incorpora o conhecimento de si próprio, de sua posição no universo e de suas responsabilidades planetárias.
          É esse procedimento que torna possível uma vontade, uma força de fraternidade na direção do outro. A sócio-ética é feita dessa relação entre o indivíduo uno e o outro múltiplo. Ela precede e ultrapassa a auto-ética, posto que o indivíduo já nasce em uma comunidade repleta de outros sujeitos e inserida em uma cultura e em um contexto já existente e fundamentado em valores e costumes próprios.
          A incerteza ética depende não somente da ecologia da ação, das contradições éticas, das ilusões do espírito humano, mas também do aspecto trinitário pelo qual a auto-ética, a sócio-ética e a antropoética são, ao mesmo tempo, complementares, concorrentes e antagônicas.           Deve-se em cada ocasião estabelecer uma prioridade e fazer uma escolha (MORIN, 2005, p.57).
A antropoética, ou a ética propriamente humana, está pautada na tríade individuo/sociedade/espécie, de onde provém nossa consciência e humanização. Esta é a base para a ética do futuro. A antropo-ética assume a condição humana na complexidade do ser, humaniza a Humanidade, desenvolve a ética da solidariedade, da compreensão e ensina a ética do gênero humano.
          A antropo-ética compreende, assim, a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspiração e vontade, mas também aposta no incerto. Ela é consciência individual além da individualidade (MORIN, 2002, p 106).
          Para Morin, somente com as mudanças de cunho político, com a reforma do pensamento e com a antropoética é que se torna possível o verdadeiro humanismo, que nada mais é do que a busca da humanização por meio da consciência de comunidade planetária. É claro que ele não garante que com isso os problemas da humanidade estariam solucionados, mas aponta que, embora a barbárie e a ameaça de autodestruição estejam sempre presentes, a antropoética pode se colocar como uma melhora possível.
          A obra de Morin vem contribuindo para alguns dos mais importantes temas de debate na atualidade, entre eles o multiculturalismo e as formas de apreensão do mundo, os efeitos da fragmentação do saber e a estagnação dos projetos pedagógicos da modernidade.
          É o começo de um novo estágio civilizatório, onde a mentalidade atuante vigente não mais responde às necessidades não só de ordem material como principalmente emocional e espiritual. A modernidade tem gerado angústia e despropósito de vida. Há uma verdadeira banalização dos valores que são essenciais; sendo que se não valorizamos a própria família biológica, o que dirá da grande família planetária.





Imagem: dialogosuniversitarios.com.br








SIMONE SIMON PAZ
Enviado por SIMONE SIMON PAZ em 14/11/2009
Reeditado em 07/11/2010
Código do texto: T1923985
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