"O visitante": uma análise sobre a alteridade e a construção de uma "família" não parental
“O visitante” sobre a alteridade e a construção de uma nova “família” não parental
Nalumag
Em nosso estilo de vida contemporâneo a hostilidade urbana é um fenômeno de presença tão marcante que já o naturalizamos. A simples proximidade de estranhos, dividir o espaço com outros, compartilhar, é sempre considerado difícil, podendo chegar a insuportável e até repugnante. Esta constatação na vida de todo dia tem demonstrado crescentes níveis de intolerância no convívio urbano, com sintomas que Z.Z.BAUMAN nomeia pelo neologismo “mixofobia”, “uma sensibilidade alérgica e febril aos estranhos e ao desconhecido”.(p. 139, 2004) O diferente passa a ser visto como suspeito, indesejável, assim, afastar-se dele, segregá-lo, pode conferir a momentânea sensação de uma segurança perdida. Negociar com a diferença, embora seja um exercício cada vez mais raro em nosso convívio social, pode ser uma saída fecunda para o impasse que a intolerância, a exclusão e as ilhas de semelhança causam na paisagem urbana.
O filme de Thomas McCarthy “O visitante” enseja alguns pontos para a ancoragem de uma reflexão sobre a alteridade.
Ficha técnica: Título- “O Visitante”
Diretor e Roteirista – Thomas McCarthy
Elenco principal - Walter Vale – Richard Jenkins
Tarek Kali - Haaz Sleiman
Zainab – Danai Gurfira
Moluna Kali – Hiam Abbas
Em “O visitante” o encontro entre o casal de refugiados clandestinos, Tarek e Zainab e o professor Walter Vale é apresentado, de início, com indiferença por parte de Walter e constrangimento pelo casal. O fato de que, equivocadamente, invadiram o apartamento do professor gera sentimentos de vergonha e subserviência nos clandestinos, situação que precisa logo ser resolvida pela saída da dupla. O professor vê a saída deles como uma solução lógica, afinal, são estranhos, ocupavam o espaço que era legitimamente dele. Não precisou reivindicar esta prerrogativa pois o casal, pacificamente, desocupa o imóvel, desculpando-se pelo engano.
Um homem americano branco, professor acadêmico, literato, com emprego fixo, boa situação financeira, proprietário de uma confortável casa em Connecticut e deste apartamento em Nova York, de um lado da questão. A alteridade é marcada pela desigualdade da situação. Do outro lado, um casal de ilegais não brancos, ela, Zainab, senegalesa, já foi presa pela imigração e só foi solta pelo fechamento da prisão, quando libertaram as mulheres prisioneiras. Artesã, cria e fabrica bijuterias que vende, numa situação de camelô, numa banca na rua. Ele, Tarek Kalil, é sírio, músico percussionista, compõe e toca djembê, um tipo de tambor africano, apresenta-se em alguns shows e toca nas ruas. Compareceu ao serviço de imigração, pediu o visto de permanência como refugiado e aguarda resposta estando agora na situação de clandestino. A diversidade dos estatutos sociais de cada um deles demarca a intransitividade nas relações.
Passaram a morar no apartamento de Walter através de um “aluguel”, sem contrato, arranjo feito por um amigo. Lá já estão há dois meses, quando chega Walter e ao abrir a porta percebe que algo estranho está acontecendo, até ir ao banheiro e dar com Zainab dentro da banheira. O susto de ambos é grande, aumentado com a chegada de Tarek que agride Walter, pensando ser ele o invasor. Esclarecido o equívoco a saída do casal é a via normal.
Até então, além do susto, Walter é a imagem da indiferença sobre o futuro do casal. Não demonstra nenhum sentimento e aceita, sem hostilidade mas também sem condescendência, o engano e a saída da dupla. Walter é um sexagenário enviuvado, com uma vida tediosa, não gosta do que faz, leciona apenas um curso ao qual não se dedica, justifica suas parcas atividades docentes pelo tempo que precisa para escrever seu quarto livro, mas também não usa o tempo livre para isto. Como revelará mais tarde finge que está ocupado, finge que trabalha, finge que escreve. Tenta estudar piano, sua esposa era pianista, mas não tem nem aptidão nem apetência por esta atividade. Sua quarta professora propõe até lhe comprar o piano, porque ele parece propenso a desistir. É significativa a metáfora usada por ela para mostrar a posição correta das mãos no teclado “dedos dobrados como um túnel (...) dê espaço para o trem passar através do túnel”. Walter não entende a metáfora, ele é um homem pouco propenso a qualquer fluidez, suas mãos não abrem passagem, seus dedos estão esticados sobre o teclado. Foi a Nova York, a contragosto, para apresentar um trabalho que,aparentemente, teria escrito com uma colega, agora impossibilitada de ir. Ele titubeia, procura desculpas para evitar esta viagem porque, na verdade, não o escreveu, apenas assinou junto com a colega e se sente incompetente para fazê-lo. Seus argumentos, todavia, não são convincentes e ele se vê obrigado a ir.
Nos é revelado então um homem envelhecido que não se interessa nem mesmo pela sua própria vida, que não tem nenhuma razão para lutar por ela. Como esperar dele sensibilidade para se preocupar com a vida de seus semelhantes, sobretudo, quando estes outros não são assim tão semelhantes? O que ocorre neste encontro é apenas um incidente de percurso. Esperava Walter chegar ao seu apartamento de Nova York, cansado da viagem, encontrar um lugar onde pudesse dormir e na manhã seguinte rumar para o malfadado congresso. É de incômodo e de desconforto o encontro inesperado com o casal. Problema que se resolve rapidamente frente a nenhuma resistência dos clandestinos em reconhecerem o erro, providenciarem a imediata arrumação de seus poucos objetos e deixarem o apartamento.
Todavia, esquecem para trás um portarretratos, com uma foto dos dois. Walter, sabe-se lá movido por que razão, talvez até para se ver livre das tralhas do dois, vai até a rua para entregar o porta retratos, vê que eles estão ao léu e convida-os a permanecerem no apartamento até conseguirem outro lugar. A partir desta iniciativa, aparentemente filantrópica, a indiferença e o incômodo de Walter começam a se transformar em empatia. Zainab faz o jantar, e convida Walter a jantar com eles. É cerimoniosa a partilha dos espaços.
Tarek ensaia sua percussão e é surpreendido por Walter que retorna de mais uma seção do evento. O músico se desculpa por estar tocando e sem calças e Walter lhe diz que não precisa parar de ensaiar, demonstrando que está assegurado a Tarek um território, não só físico, mas também simbólico. Interessa-se pela atividade do músico que como Walter aprecia a música clássica. Uma primeira experiência comum–a música - estabelece aquilo que pode ser chamado de “união em pontilhado”, uma tênue redução das idiossincrasias. Tarek o convida a pegar um tambor e também experimentar tocar. A princípio receoso Walter arrisca-se a uma percussão, batendo forte, ao que Tarek orienta para que seja mais leve, pois ele “não está com raiva do instrumento”. Walter esboça um primeiro sorriso. Ele acompanha Tarek numa parceria meio desajeitada e, aos poucos, vai sendo seu companheiro pelas ruas, já se soltando mais, tocando nas praças, carregando nas costas o instrumento, embora ainda de terno e gravata.
A relação estabelecida já não é só de generosidade, mas sim de camaradagem. Pode-se reconhecer, entre eles, uma certa familiaridade que torna a vida mais tolerável. Zainab, é ainda muito arredia, intimidada pelo convívio recente com Walter. As diferenças existem e não são ignoradas pelo trio. Sabem-se diversos, a assimetria é marcante, mas agora não apenas se suportam. A alteridade os aproxima num caráter complementar. Tarek e Zainab tem abrigo e um amigo. Walter percebe que o piano pode não ser seu instrumento ideal. Tocar com Tarek está imprimindo mais leveza e cor à sua pesada vida desbotada. Walter batuca o compasso da percussão no carro, quando está na escola, marca com o corpo, numa gestualidade que dispensa o verbal. Já se pode notar certo investimento afetivo na relação do trio, uma partilha afetual que alicerça uma arquitetura social.
Tarek é preso ao atravessar com Walter uma roleta de metrô. Ambos carregam tambores, estão juntos, mas Walter é um americano branco e Tarek um tipo não americano. Todas as tentativas de intervenção de Walter junto aos guardas são rechaçadas e ele é avisado para não se meter ou vai preso também. Os atributos de Tarek denunciam, obviamente, sua estranheza na sociedade americana. Embora Walter tenha características que podem ser percebidas como desejáveis e integradoras, o fato de estar ao lado de Tarek, procurar intervir para evitar o constrangimento e a prisão, são suficientes para colocá-lo do lado estigmatizado. O estigma espalha-se, respingando também naquele que está próximo e solidário. Daí a ameaça que Tarek representa, também para seu pretenso protetor.
Começa a cruzada de Walter para libertar Tarek. Ele conserva, de início, a calma que lhe é própria. Visita Tarek na prisão, contrata um advogado especialista em causas de imigração, consola Zainab que está assustada e, finalmente, vai abrigar e proteger Mouna Kalil que, sem notícias do filho, empreende uma viagem de Michigan para Nova York.
O tempo vai passando sem que Tarek seja libertado. Toda a insensibilidade do sistema demonstra a inutilidade dos esforços de Walter e as restritas informações concedidas às visitas são exasperantes. Tarek reclama com Walter das condições do centro de detenção, do isolamento, do silêncio sobre as razões de sua prisão e da falta de expectativas de ser libertado. O excluído não tem direito a voz, não se faz dele uma escuta, porque o estígma reduz o indivíduo àquilo que se convencionou chamar de imperfeição. A presença de Tarek nos Estados Unidos, sem documentação adequada, faz dele uma espécie de negação da ordem social. Uma vez que não cumpre as exigências para o convívio social legal, também não é reconhecido o seu direito de exercício de sua diferença, mas convêm lembrar que “toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem cria monstros”. (BAUMAN, 2004, p,158) Agora, dentro de uma “instituição de sequestro”, como Foucault se refere às prisões, formalmente excluído de uma sociedade onde habitava irregularmente, em nome da normalização é categorizado como ilegal, portanto, inapto ao convívio naquela sociedade. Assegurar a normalidade dentro do sistema, é oposto ao desafio da diferença. Em que Tarek pode ser visto como uma ameaça social ? Esta questão não se coloca, não é relevante. Dentro de um sistema de paranóia persecutória depois do 11 de setembro a xenofobia é o comportamento padrão.
Mouna demonstra toda a determinação e dignidade em só aceitar, diante da insistência de Walter, o abrigo em seu apartamento. Ela não admite a idéia de sair de Nova York enquanto o filho não for libertado, mesmo não podendo ir visitá-lo. Envia bilhetes que Walter mostra para Tarek durante as visitas, fala com ele algumas vezes por telefone e vai conhecer Zainab. Demonstra surpresa pela namorada de Tarek ser “tão negra”! Os atributos de Zainab, negra e senegaleza, também ensejam a exclamação de Mouna. A negritrude se coloca como uma singularidade que gera a estranheza mesmo naquela que também sofre a segregação. Mouna convida Zainab para um chá, mas não há ninguém para ficar na banca de bijuterias... Esta tarefa sobra para Walter que nada conhece do ofício, mas até arrisca algumas informações, aos compradores, sobre as mercadorias. Já não se trata só de uma manifestação de empatia ou solidariedade. Neste microcosmo relacional os quatro compõem, com suas diversidades, um “cimento social” que funda uma unicidade, um “nós”. Apesar de todas as diferenças ou, talvez em razão delas, estão irmanados no apoio mútuo e na libertação de Tarek. Quando Zainab diz a Walter que nenhum homem tinha sido libertado da prisão que ela conhecia, Walter lhe assegura: “Nós vamos libertá-lo.”
O espírito de proxemia que caracterizava, na Grécia antiga, acolhimento e hospitalidade pública prestado ao estrangeiro, inaugurado na partilha do espaço-tempo, cria um enraizamento antropológico que agora os une com mais força do que laços de consanguinidade. Eram estranhos, diversos em tantas particularidades, atravessaram as suas dissemelhanças para um ser-estar-juntos, fundando a negociação com a alteridade.
Esta agregação social, formada por estas quatro pessoas, nasceu de uma efervescência circunstancial – o equívoco da ocupação do apartamento. Deste fato é possível observar uma importante regra sociológica: toda efervescência é estruturalmente fundadora, mesmo quando caótica. Juntos eles estão, cada qual em maior ou menor grau, inaugurando uma nova família não parental.
Um código de honra nesta nova “tribo” é a ajuda mútua, as vezes não dita, a selar o laço social. O constrangimento é ritualizado em diversos momentos onde podem ser observado: Zainab faz o jantar e convida Walter a partilha-lo; Walter cuida da banca de bijuterias para que Zainab possa ir tomar um chá com Mouna; Walter compra comida chinesa e convida Zainab que não aceita, mas ele diz que vai deixar na geladeira, para no caso dela mudar de ideia; Mouna limpa os vidros das janelas do apartamento enquanto Walter esta viajando, organiza o espaço e compra o jornal para Walter; este traz para Mouna o jornal sírio, juntamente com o seu; Tarek empresta o tambor e estimula Walter a tocá-lo, lhe dá as primeiras lições, convida-o para almoçar um churrasco grego, lhe presenteia com um CD de percussão, propõe a Walter tocarem juntos numa estação do metrô e dividirem os lucros, pede a ele que não se esqueça dele na prisão; Mouna pede a Zainab que a leve a lugares onde ela e Tarek gostavam de ir; Walter arrasta pelas ruas o carrinho com as bijuterias de Zainab para que ela possa conversar mais livremente com Mouna. É com muita animação que Zainab mostra para Mouna a Ilha de Manhattan, o lugar das Torres Gêmeas, a estátua da Liberdade. Mouna se interessa pelo trabalho de Walter, lhe faz perguntas sobre o evento e mesmo longe, já em Connecticut, Walter telefona para Mouna para se inteirar se tudo vai bem. Pequenos e grandes gestos de cortesia, atenção e afeto a demonstrar que “os jogos da proxemia se organizam como nebulosas policentradas”, (MAFFESOLI,1987, p.196) que ora aproximam ora distanciam, num ritual que, com toda a dinâmica da difratação, constrói um território simbólico de pertencimento.
Walter propõe sair com Mouna. Quer fazer-lhe uma surpresa – levá-la para ver o Fantasma da Ópera, que ela tanto se interessa. A partir daí a ritualística entre eles já se põe como uma aproximação romântica, cerimoniosa. No jantar que se segue é interessante notar na confissão de Walter sobre suas pretensas ocupações, quando se desculpa com Mouna pelo embuste e ela lhe pergunta o que faria se não fosse professor. Walter diz não saber e ela reconhece “que é excitante o não saber o que fazer”.Ele, ainda intransitivo, apesar das últimas experiências, se coloca como a porta fechada, sem saída, entre o afeto desejado e a tensão da insegurança. Ela é a ponte que pode ligar o domesticado ao estranho, contida mas não temerosa. (Simmel,1991) Esta, como tantas outras pequenas tribos, são efêmeras, mas nem por isto deixam de amalgamar um forte investimento afetivo, num estado convivial que parece destinado a ser perene. É assim que Walter agora desconstroi o esteriótipo de sisudez, licenciado das funções acadêmicas, distante de sua nova “família”, anda mais solto pelas ruas carregando o tambor que toca em Broadway-Lafayette St.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2004.
FOUCAULT,Michel. Microfísica do poder. 3a ed. Rio de Janeiro. Graal. 1982.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos – o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro. Forense-Universitária, 1987.
SIMMEL, Georg. Sociologie et épistémologie. Paris. PUF, 1981.