De Baudelaire a Sholokhov e Borges

Cada livro lido é uma aventura ímpar. Um livro é mil livros. Para o leitor, uma releitura será uma escritura diferente; ele cria com o escritor em função do que tem na mente, do que está vivendo, da época em que se encontre. Um livro pode ser mil livros para mil leitores diferentes.

Qual a mágica da leitura? Que profundo mistério envolve a literatura para a qual tantos são atraídos? Seria apenas um prazer da solidão? Um exercício da reflexão? O que ocorre de fato conosco ao ler um bom livro?

Vem-me à recordação o Don Silencioso de Mikail Sholokhov, odisséia de uma família russa com a qual tomei contato na adolescência; três volumes que encheram algumas semanas de minha vida de expectativa e emoção. O que aconteceu com aquele adolescente que se viu transportado para as estepes russas num salto para o passado, percorrendo com os cossacos as planícies geladas numa epopéia histórica de séculos?

Qual mistério envolve a boa leitura? Seria uma fuga, um alheamento da própria vida e dos problemas?

Deve haver algo mais profundo neste ato. Talvez ali o nosso mundo interior conecte-se ao do escritor; talvez ali vislumbremos um outro mundo que transcenda o dia-a-dia rotineiro que nos envolve; o prazer da leitura confundindo-se com o prazer de viver e a literatura transfundindo-se com uma forma de fazer o bem. Então deveríamos ler o que há de bom na literatura para confirmar a prédica que diz vivermos sob a luz de um sol invisível e mágico que brilha dentro de nós.

Há certas leituras que se gravam espontaneamente em nossa memória. Há muito tempo li um poema de Baudelaire e alguns versos ficaram gravados. Muitas vezes, caminhando por alamedas ensolaradas, os versos vinham à minha mente como se outra pessoa os tivesse pronunciado: “A natureza é um templo onde pilares viventes murmuram palavras confusas. O homem atravessa-a em meio a uma floresta de símbolos que o contemplam com olhares familiares.” Esta interpenetração entre o físico e o metafísico, onde único e verdadeiro templo mostra-se ao ser humano como um grande livro, celeiro de conhecimentos sem-fim, pôde ser captada pela sensibilidade do poeta atravessando o tempo através de poucas palavras. Eis aí o mistério da poesia, a jóia da literatura.

É possível que leiamos para nos encontrar; que este seja o sentido oculto da leitura. E é possível que nos encontremos numa passagem, num pensamento, numa personagem, numa metáfora.

Sim, a natureza é o único e verdadeiro templo em cujos pilares viventes poderemos sempre extrair ensinamentos para nos orientar. E nesta outra floresta de símbolos e metáforas que são os livros, criações humanas, poderemos nos perder ou nos orientar seguindo o caminho invisível do sol que brilha em nossos corações.

Por detrás das palavras escritas estão os pensamentos do autor que, caso os tenha criado, vive neles. E se estes pensamentos têm a virtude de orientar o leitor, ajudando-o a compreender melhor a própria vida, então o escritor que vive em sua obra é credor de nossa maior gratidão.

O escritor não existe sem o leitor. E o primeiro leitor é ele próprio. Escreve para si mesmo, para entender-se, para chegar a compreender o mundo.

Entender é enxergar com a inteligência. Compreender é sentir e viver o que a inteligência vislumbrou, enxergou, entendeu.

A compreensão é um exercício vivencial, mental e sentimental.

Certa vez Borges escreveu que não se jactava dos livros que havia escrito, senão dos que havia lido, pois o escritor argentino era, antes de tudo, um leitor apaixonado pelos livros e pela história humana.

Deus escreve homens, escreve o Universo. Os homens escrevem livros e destinos e lêem as próprias escrituras procurando decifrar a Obra Universal.

Escritor e leitor fundem-se no momento da leitura, cada qual criando a sua parte. Naquele místico instante, o leitor recria o escritor que dormia em comprimidas paginas numa esquecida prateleira e, com o toque mágico de seu olhar inteligente, desperta o escritor, que voltando à vida extasia-se com o olhar atento e maravilhado do leitor. Momento sublime em que os dois olhares que se encontram compreendem, por que sentem, que não há presente, não há passado, não há futuro, senão uma eloqüente eternidade.

Nagib Anderáos Neto

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Nagib Anderáos Neto
Enviado por Nagib Anderáos Neto em 11/07/2006
Reeditado em 25/07/2006
Código do texto: T191964