O ano: 1988 – O local: Havana, Cuba – O personagem: eu próprio! Eu queria conhecer uma das fronteiras socialistas imaginando que elas acabariam rápidas. O mundo suspirava de saudade de tempos de paz e a modernidade insistia em contrariar o pragmatismo soviético e suas “colônias” seguidoras.
 
O que eu vi em Havana não era o que diziam os livros que apoiavam o modelo do regime; as notícias de Havana também contrariavam as propagandas de “O Granma”, o jornal de Fidel Castro. Quem viveu no Brasil naquela época, estava experimentando um sabor de liberdade; três jovens anos após o fato de um Presidente não militar fez a cabeça dos jovens politizados esquecerem o medo e assumirem seus ideais socialistas, revolucionários e sonhadores. Eu tinha de ir a Cuba!
 
Antes, porém, precisava me imbuir de circunstâncias que facilitassem minha ida e minha chegada, que era muito mais importante; foi então que brilhou a luz de conhecer a República Democrática Alemã; aquela mesma que nascera miserável no pós-guerra e se mantivera mentecapta até a sucumbência de seus ideais; a mesma que se rotulava “democrática”, mas impedia que seus cidadãos saíssem de lá, da mesma forma que Cuba; a mesma que em mais de quatro décadas, jamais produziu algo, senão o terror, pânico, medo e morte, mas que afirmava ser um paraíso terreno.
 
Fui visitar Messias Gonzaga, Sinval Galeão e Colbert Martins da Silva, todos com marcas profundas do período militar do Brasil, os dois primeiros, comunistas convictos e assumidos. A orientação do “partido” era para eu conhecer a Albânia; Gonzaga me disse certo dia, com brilho nos olhos e orgulho no timbre de voz: “A Albânia é o que há!”
 
Indeciso, agora entre Cuba, Alemanha e Albânia, começo a preparar os papéis secretamente, sem comentários entre os amigos para preparar a viagem de mais importante de minha vida. Se San Tiago de Compostela foi a “passagem” para Paulo Coelho, pisar em solo administrado pelo mais puro comunismo, a aquela altura da vida, seria o meu ritual pessoal de passagem; a admissão ou o repúdio a tudo que eu cultivei em anos de educandário.
 
1989 começa no Brasil com a grande expectativa de eleger o primeiro Presidente pós golpe militar; minhas cartas já transitavam entre amigos cubanos, autoridades alemãs e albanesas; todos os dias chegavam livros, cartas e panfletos que me ajudaram somente a confundir meu destino, mas a Alemanha do muro de Berlim era a minha preferida. Passar pelo Portão de Brandemburgo e cruzar o fantasioso, seria a minha realização.
 
Estava certo; eu iria à Alemanha Ocidental, RFA; conheceria os trâmites de visto para a Oriental e cruzaria com festa pelos tanques soviéticos para viver a experiência de Berlim, a Berlim da Cortina de Ferro e das histórias de humanismo, mas eis que veio a quase exigência de permanecer no Brasil para trabalhar nas eleições presidenciais; eu necessitava ficar; contribuir pela democracia do Brasil e em seguida, rumar para o meu tirocínio.
 
16 de Novembro de 1989, quando assistia ao noticiário da televisão, eis que me chega a mais inesperada cena; Berlim começava a perder seu muro e sem querer (ou de propósito), o mundo começava a viver o primeiro dia de globalização. O mundo inteiro via as cenas incríveis e chocantes de pessoas derrubando o muro da vergonha; pessoas atravessavam para o lado Ocidental, coisa que não faziam há décadas; era a cena mais frustrante e mais linda que eu já presenciara. Linda por ver um povo livre e frustrante porque eu queria estar lá, no meio do povo, bebendo champanhe e me emocionando com uma das partes mais belas da história recente.
 
A Alemanha que ficara de muletas, sem parte de seu território, voltava a movimentar seus membros e dava os primeiros sinais depois de Hitler, que voltaria a andar, correr e voar. Pouquíssimos alemães com menos de 40 anos na época conseguiu passar o “check point”, lugar que se concediam ou negavam os vistos de entrada, antes da derrubada do muro.
 
Muito mais do que a queda de uma barreira física, caíram os mitos, as máscaras, os superstições e os preconceitos; as mortes sevas praticadas por quem se dizia “pai do povo” ou se rotulava como República Popular estavam com os dias contados. Muito mais do que pedaços de concreto, caíram às vergonhas e os medos; os alemães que não puderam conhecer o mundo sem muros e arames farpados cruzavam a antiga fronteira com tanta vontade de ficar, que dizem que muitos se recusavam a voltar, mesmo sabendo que não havia mais a divisória imoral; também houve o contrário, gente que insistia em não sair da DDR por não acreditar no mundo de sonhos.
 
O caráter deste texto pode ser saudosista e impávido por eu ter desbravado tantas fronteiras do mundo e por querer tanto ter conhecido a DDR, mas não é só isso; escrevo com breve orgulho de poder ter vivido em uma época de transformações e por poder ter convivido com tanta gente interessante; gente que já não se nasce mais ou que já não as encontramos nos cafés para um bom papo, como fazia no passado.
 
Muito mais do que o muro da vergonha que caiu na Alemanha, fazendo com que a maior parte do povo germânico esquecesse de vez as cenas de horrores de Hitler, a parte preconceituosa e discriminatória daquele mesmo povo sucumbiu diante de tanta força de liberdade; eles sabiam que viviam numa prisão, mas insistiam em afirmar que aquilo é que era o modelo para o mundo, porque naquele modelo político nefasto se podia comandar o povo através da força da tirania e do amedrontamento pessoal. Assevera os historiadores que 15% da população da DDR, prestavam serviços voluntários a polícia secreta, delatando vizinhos, amigos e parentes; este era o povo da antiga Alemanha Oriental.
 
Mas quem pensou que aquela fosse à última barreira física a cair, pensou errado! Nem foi a última a cair, muito menos a última que houvera nascido! Naquela época já havia outros muros, visíveis e invisíveis e muito mais reforçados de dores e temores do que o Muro de Berlim. A própria história do mundo nos mostra uma série de muros separatistas de povos irmãos; a bíblia descreve Jericó e a própria Jerusalém, com seus enormes portões e muralhas intermináveis, que eram construídas sob o temor de invasão, mas que na verdade só servia para separar aquilo que os governos abalizavam por bons e ruins; há uma diferença enorme entre os muros que impedem a fuga daqueles que impedem a entrada; o da Alemanha impedia ambos...
 
A DDR não implantara um muro apenas por questões migratórias; o muro da vergonha era para impedir que os alemães do lado B não fugissem a escravidão que mantinha vivo o partido comunista que herdaram de Stalin da União Soviética; modelo em que as pessoas tinham garantido a educação, comida regrada e saúde e em troca disso, pagavam com suas próprias vidas, pagavam com a restrição total de suas liberdades físicas e psíquicas.
 
Muros invisíveis ainda existem como em praticamente toda África; recente quando estive no Marrocos, vi claramente que os espanhóis podem passar livremente para o Marrocos para fazerem turismo, comprarem gêneros mais baratos e se divertirem, mas os marroquinos não podem ingressar na Espanha, salvo por meio de rigorosos e burocráticos vistos; da mesma forma e modelo há a fronteira entre os Estados Unidos e México; o mesmo comportamento se observa entre a África do Sul e o restante do continente.
 
Os muros impeditivos invisíveis de saída são ainda vistos em Cuba, que insiste no mesmo molde aplicado pela DDR; Fiel Castro só não criou uma barreira física porque o país inteiro é uma ilha e ao seu redor há uma das maiores concentrações de tubarões e outras barreiras naturais do mundo; sair da ilha por via terrestre é impossível; por meio aéreo há o controle absoluto do Estado e por meio marítimo é uma odisséia arriscada.
 
A aberração dos absurdos está na Coréia do Norte, que também tem o seu muro; esta impede que seus escravos saiam e que os “normais” do mundo os vejam! Recente, Israel também aderiu a onde de separar; não bastasse o isolamento pleno de Gaza, resolveu criar o seu muro e para tal, disse que era para impedir a entrada de homens bombas; o mesmo está fazendo a Arábia Saudita com o Iraque!
 
Desde os tempos de Jericó, os muros se mostram inúteis, e as fronteiras são relativas. O mundo precisa ser pensando como a casa comum de toda a humanidade, respeitando-se obviamente os limites culturais que envolvem os povos. Esta é a convicção do fórum das migrações, com sua proposta de cidadania universal e direitos humanos para todos. Esta proposta é ainda uma quimera e será uma fantasia por séculos, todos sabem! Mas é preciso começar sonhando, para que se torne realidade um mundo em que seja possível viver com dignidade em todos os países, quando a migração não será mais necessária ou deixará de ser um drama.
 
Berlim foi apenas uma questão de honra para o começo da extinção da Guerra Fria; o mundo voltou seus olhos para a Europa, naquele muro que separou a Alemanha, porque tradicionalmente eles eram ricos e pujantes e poderiam ajudar a mudar tudo, como de fato ocorreu após a derrubada da barreira, mas e o restante dos muros, das prisões étnicas e dos bloqueios psicológicos; o que o mundo está fazendo para contribuir com o final destes?
 
Em 20 anos sem o Muro de Berlim, eu não sei se comemoro em nome da Alemanha ou se choro em pranto da desgraça dos outros!
 
Eu não vi os últimos dias da Alemanha Oriental, mas o meu pedaço enorme do muro, este me veio de presente e ficará comigo para provar que ele existiu!
 
 
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
www.irregular.com.br
CHaMP Brasil
Enviado por CHaMP Brasil em 10/11/2009
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