A leitura orante da Bíblia - Sermo LIX

A LEITURA ORANTE DA BÍBLIA

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

Depois de refletirmos sobre o vigor e a ternura da oração, podemos aprofundar mais nosso estudo, buscando alguns subsídios a respeito daquilo que os místicos chamam de “leitura orante da Bíblia”, também conhecida como lectio divina, que nada mais é que um aprofundamento a partir da espiritualidade que provém da leitura e da meditação das Sagradas Escrituras.

Muitos traduzem Lectio Divina por leitura divina, outros por leitura orante. O que nos importa é o valor que esse método tem para nossa vida espiritual. A Lectio Divina é resultado da prática da leitura que os cristãos faziam e fazem da Bíblia. Essa prática usada pelos cristãos, é um resquício da tradição das comunidades do Antigo Testamento. As comunidades liam os textos sagrados, cuja essência era passada de geração em geração.

Trata-se de uma leitura atenta e sem pressa. Cada dia é meditado e contemplado um texto escolhido e preparado de antemão. Tal leitura não tem apenas a finalidade de satisfazer a curiosidade intelectual do leitor. Ela tem como objetivo alimentar a vida de fé do cristão, fortalecer a união com Deus e animar o apostolado. O Vaticano II, na Constituição Dogmática “Dei Verbum”, sobre a Revelação Divina diz que: “A Lectio Divina é a escuta religiosa e piedosa da leitura sagrada da Escritura” (DV 10). Pressupõe sempre uma atitude de fé orante e abertura de coração. Leitura orante é espiritualidade.

O Concílio Vaticano II já dizia que “só pela luz da fé e meditação da Palavra de Deus, pode alguém, sempre e por toda a parte, reconhecer Deus, em quem vivemos e nos movemos e somos (At 17,28), procurar em todo o acontecimento a Sua vontade, ver Cristo em todos os homens” (AA 4).

A partir deste trecho, podemos deduzir que a leitura e a meditação da Palavra de Deus se tornam fundamentais para quem está em busca da própria vocação e do próprio chamado. É a Palavra que forma e dá vida ao Cristo em nós, que aos poucos irá nos revelar o plano e o projeto de Deus em nossa vida.

Tratando-se de um chamado divino, a vocação é algo de sobrenatural, que não pertence ao humano. É Deus quem chama, Foi ele que pensou em nós desde a fundação do mundo para colaborarmos com o seu Reino. Quando Jesus diz “não foram vocês que me escolheram, mas fui eu que os escolhi” (Jo 15,16), queria justamente sublinhar isso.

A leitura orante da Bíblia, portanto, torna-se um meio, um instrumento para aprofundar o que Deus quer da minha vida dia após dia. Trata-se de um exercício que me ajuda, aos poucos, a interiorizar as mesmas atitudes e comportamentos que foram do próprio Jesus, que obedeceu ao Pai até o último momento da sua existência.

A coisa mais importante será encontrar um tempo durante o dia, para dedicar-se à leitura e à meditação da Palavra de Deus. O lugar pode ser a igreja ou até mesmo um quarto da casa ou um lugar sossegado, como nos sugere o próprio Jesus quando nos diz: “...quando orares, entra no teu quarto e, fechando a tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo...”. (Mt 6,6)

O texto a se refletir ou meditar pode ser o Evangelho ou a leitura do dia, ou qualquer leitura da Bíblia que relate uma vocação, um chamado a partir de Abraão, os profetas... até chegar ao Novo Testamento, com a vocação de Maria, os apóstolos etc.

INICIANDO

Antes de começar a “lectio divina”, fazer um momento de silêncio pensando que vou encontrar o Senhor. Peço a Deus perdão pelas minhas ofensas porque a pureza do coração e a humildade são características fundamentais para entrar na leitura do texto bíblico. É imprescindível orar ao Espírito Santo pedindo (“Veni creator Spiritus...”) suas luzes.

Num segundo momento, coloco-me na presença de Deus, rezo um Pai Nosso tentando olhar-me como Deus me olha. No fim, peço ao Pai o dom do Espírito Santo porque a Bíblia é um livro inspirado por Deus e, portanto, deve ser lido e interpretado com a ajuda do Espírito Santo.

PRIMEIRO PASSO

A leitura do texto

A leitura consiste em alimentar-se da Palavra. Ela deve ser feita com atenção, com serenidade, sem subestimar o que pode parecer secundário, interpretando corretamente o sentido histórico. É importante ler e reler o texto, tentando compreender o que se acabou de ler, procurando questionar-se sobre o sentido das palavras e prestando atenção sobre o que elas querem nos dizer. É preciso tomar a Bíblia e ler com convicção de que Deus nos fala. Em atitude de interiorização, silenciar para ouvir Deus.

Faça-se em mim segundo a tua Palavra.

Ao iniciar a Leitura Orante da Bíblia, você não vai estudar; não vai ler a Bíblia para aumentar conhecimentos nem preparar algum trabalho apostólico; não vai ler para ter experiências extraordinárias. Vai ler a Palavra de Deus para escutar o que Deus lhe tem a dizer, para conhecer a vontade dele e viver melhor o Evangelho de Jesus Cristo. Em você devem estar a pobreza e a disposição que o velho Eli recomendou a Samuel: “Fala, Senhor, que teu servo escuta!” (1Sm3,10). Deve estar a mesma atitude obediente de Maria: "Faça-se em mim segundo a tua Palavra"(Lc 1,38).

Poder escutar Deus não depende de você nem do esforço que fará, mas só e unicamente de Deus, da sua decisão gratuita e soberana de entrar em contato com você e de fazer com que possa ouvir a sua voz. O ponto de partida da Leitura Orante deve ser a humildade. Saber recolher-se à sua própria insignificância e dignidade.

Abrindo a Bíblia, você deve estar bem consciente de que está abrindo um livro que não é seu, mas da comunidade. Fazendo a Leitura Orante, você está entrando no grande rio da Tradição da Igreja, que atravessa os séculos. A Leitura Orante é o barquinho que o carrega pelas curvas deste rio até o mar. O clarão luminoso que nos vem do mar já clareou a “noite escura” de muita gente. Mesmo fazendo sozinho a Leitura Orante da Bíblia, você não está só, mas unido aos irmãos que, antes de você, procuraram “mediatar dia e noite na lei do Senhor” ( Sl 1,3). São muitos! Por isso “permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo. Você sabe de quem o aprendeu!” (2Tm 3,14).

SEGUNDO PASSO

A meditação

Através da meditação se examina a Palavra, se guarda no coração como fez Maria, que “conservava cuidadosamente todos os acontecimentos e os meditava no seu coração” (Lc 2,19). O objetivo deste passo é chegar ao conhecimento da verdade que está contida na Palavra. O termo usado por muitos autores aqui é “mastigar e ruminar” o texto bíblico para aprofundar e penetrar nas palavras e mensagens. Atrás de cada palavra está o Senhor que me fala. Meditar é ter uma correta atitude interpretativa diante da Bíblia.

A leitura atenta e proveitosa da Bíblia deve estar marcada, do começo ao fim, por uma atitude interpretativa que tem alguns passos básicos: a) Leitura, b) Meditação, c) Oração, d) Contemplação. Estes quatro aspectos sempre formaram a espinha dorsal da verdadeira espiritualidade.

O passo ou atitude fundamental aqui é conhecer, respeitar, situar. Antes de tudo, você deve ter a preocupação de investigar: “O que texto diz em si?” Isto exige silêncio. Dentro de você, tudo deve silenciar, para que nada o impeça de escutar o que o texto tem a dizer, e para que não aconteça que você leve o texto a dizer só aquilo que gosta de escutar.

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

Passo ou Atitude: Meditação: ruminar, dialogar, atualizar. Você também deve ter sempre a preocupação de se perguntar: “O que o texto diz para mim, para nós?” Neste segundo passo, você entra em diálogo com o texto, para que o sentido se atualize e penetre a sua vida. Como Maria, rumine o que escutou (Lc 2,19.51), e assim descobrirá que “a Palavra de Deus está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30,14).

O passo ou atitude que cabe aqui é: orar, suplicar, louvar, recitar. Além disso, você deve estar sempre preocupado em descobrir: “O que o texto me faz dizer a Deus?” É a hora da prece, o momento de vigiar em orações. Até agora, Deus falou para você; chegou a hora de você responder a ele. Aqui é importante recordar outros passos bíblicos paralelos, a compreender e confrontar o texto com a minha vida ou com experiências do passado, estimular o desejo de saber o que Deus quer de mim...

TERCEIRO PASSO

A oração

Vou ofertar na oração o que a leitura e a meditação do texto me fizeram conhecer e desejar. Neste momento falo com o Senhor de amigo para amigo sobre aquilo que o Espírito me inspirou. A oração, portanto, se torna uma entre as possíveis respostas ao apelo do Senhor, é uma reação que segue ao toque que Deus operou no meu coração através da sua Palavra.

E assim a Palavra de Deus se torna uma Luz para o meu caminho, é algo que orienta os meus passos, o meu viver. Conforme estou vivendo a minha vida, posso pedir neste diálogo com Deus que ele me oriente, posso pedir-lhe perdão pelas minhas ofensas, louvá-lo e agradecer por todos os auspiciosos benefícios recebidos.

Se estiver pensando no meu futuro, posso aproveitar este momento para pedir ao Senhor a luz necessária para fazer a sua vontade e encontrar o caminho que ele desde sempre traçou para mim. É a hora de nos colocarmos em suas mãos amorosas. Às vezes nos perguntam qual a diferença entre orantes e “rezadores”. Eu costumo dizer que está em trocar a qualidade pela quantidade. Quem são os “orantes”?

• pessoas que fazem da oração sua própria identidade

• estilo de vida (espiritualidade)

• o caminho do bem-estar espiritual-físico,

• equilíbrio emocional.

Os “rezadores” são aqueles que, por conta da repetição de orações decoradas e proferidas sem muita consistência, acham que vão ser ouvidos ou atendidos.

QUARTO PASSO

A contemplação

Colocar-se sob o julgamento da Palavra é o meio eficaz para chegarmos à contemplação. O resultado, o 4º passo, o ponto de chegada da Leitura Orante é a contemplação: enxergar, saborear, agir. Contemplação é,

• ter nos olhos algo da “sabedoria que leva à salvação”

(2Ts 3,15);

• começar a ver o mundo e a vida com os olhos dos pobres,

com os olhos de Deus;

• assumir a própria pobreza e eliminar do seu modo de

pensar aquilo que vem dos poderosos;

• tomar consciência de que muita coisa da qual você pensava

que fosse fidelidade ao Evangelho e à Tradição da Igreja,

na realidade nada mais era do que fidelidade a você mesmo

e aos seus próprios interesses e idéias;

• saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas

as coisas;

• mostrar pela vida que o amor de Deus se revela no amor

ao próximo;

Não esqueça de dizer sempre: “faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38). Esta é uma “atitude-chave” que ilumina os grandes orantes.

Resumindo:

• A leitura responde a pergunta: O que diz o texto?

• A meditação responde: O que diz o texto para mim,

para nós?

• A oração responde: O que o texto me faz dizer a Deus?

• A contemplação ajuda a responder: Estou pronto para

a missão?

Para que a sua Leitura Orante não fique entregue só às conclusões dos seus próprios sentimentos, pensamentos ou caprichos, mas tenha firmeza maior e seja realmente fiel, é importante você levar em conta três exigências fundamentais:

1ª. Exigência: confrontar com a fé da Igreja. Confronte sempre o resultado da sua Leitura com a comunidade a que você pertence, com a fé da Igreja viva. Do contrário, pode acontecer que o seu esforço não o leve a lugar algum (cf. Gl 2,2).

2ª. Exigência: confrontar com a realidade. Confronte sempre aquilo que você lê na Bíblia com a realidade que vivemos. Quando a Leitura Orante não alcança o seu objetivo na nossa vida, a causa nem sempre é falta de oração, falta de atenção à fé da Igreja ou falta de estudo crítico do texto. Muitas vezes, é simplesmente falta de atenção à realidade que vivemos. Quem vive na superficialidade, sem aprofundar sua vida, não pode atingir as verdadeiras fontes da espiritualidade.

3ª. Exigência: confrontar com o resultado da exegese. Confronte sempre as conclusões da sua leitura com os resultados da exegese bíblica que investiga o sentido do texto. A Leitura Orante – é verdade – não pode ficar parada na Letra; deve procurar o sentido do Espírito (2Cor 3,6) . Mas querer estabelecer o sentido do Espírito sem fundamentá-lo na Palavra é o mesmo que construir um castelo no ar. É cair no engano do fundamentalismo. Hoje em dia, quando tantas idéias novas se propagam, é muito importante ter bom senso. O bom senso se alimenta do estudo crítico da Palavra.

Essa forma de leitura orante da Bíblia nos qualifica, obviamente, de modo muito vivo para anunciar esta Palavra aos outros e cria em nós o elã missionário, o impulso de levar outros a encontrarem-se com Jesus Cristo vivo, no Espírito Santo. E Jesus nos conduzirá ao Pai.

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

Meditação realizada em um retiro de religiosas, realizado em maio de 2007, no interior do Rio Grande do Sul.