Assis Brasil: entre Literatura e História
A voz calma, o semblante tranquilo e o discurso didático escondem a intensidade da força criativa de Luiz Antônio de Assis Brasil, uma pancada de livros editados, de artigos publicados, de cursos ministrados, coordenador da oficina literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Iniciada em meados de 1970, sua carreira literária pode ser dividida em dois períodos, sendo o primeiro compreendido entre a estréia – “Um quarto de légua em quadro” (1976) – e “Concerto Campestre” (1997). Com este livro, encerra uma tradição de frases longas, parágrafos intermináveis e capítulos compridos, provavelmente inspirada em Eça de Queirós, de quem é admirador confesso.
A publicação de “O pintor de retratos” (2001), “A margem imóvel do rio” (2003) e “Música perdida” (2006) refletem as tentativas de economia frasal, de essencialidade e de pontualidade, características da nova fase.
Tomando emprestado seu raciocínio, o bom texto seria aquele do qual “se tiramos uma palavra, a frase fica sem sentido. Se excluímos uma frase, o parágrafo perde a razão de existir. Se eliminamos um parágrafo, o capítulo se desestrutura. E, finalmente, se extraímos um capítulo, o romance se lança no ininteligível”.
Em “Concerto Campestre”, acontecem conflitos violentos entre passado e presente, rural e urbano, antigo e moderno, barbárie e civilização. Tendo o Rio Grande do Sul como ambiente predominante em suas obras, o enredo se passa numa estância cujo proprietário cria um conjunto musical denominado Lira Santa Cecília, abrigando maestro e músicos em sua propriedade rural.
O fio central da trama se concentra nas relações amorosas do maestro com Clara Vitória, filha do estancieiro. Gravidez descoberta, a Lira se dissolve e Clara Vitória é isolada numa casa no pântano. Serenados os ânimos, as tentativas de reconstrução do passado se dão pela convocação dos antigos músicos para recomposição da Lira. Apesar de retomadas, as atividades e as apresentações caem no esquecimento e se isolam socialmente. O ápice do isolamento manifesta-se quando, ensandecido, o fazendeiro arrasta escravas para danças patológicas.
Numa análise da alegoria, a morte do coronel e a iniciativa (mesmo tardia) do maestro de resgatar Clara Vitória do pântano representam o rompimento entre o arcaico e o moderno, marcado pela sobreposição da civilização (música, instrumentos musicais, organização hierárquica, aquiescência, reconsideração e reparação da transgressão da conduta) sobre a barbárie (sentida no ambiente do campo, na figura autoritária e machista do patriarca, respeitada e obedecida por todos). A imagem da vitória feminina sobre o machismo e a distensão do preconceito racial simbolizam a ascensão do diálogo.
“O pintor de retratos” narra as aventuras de Sandro Lanari, pintor imigrante em busca de fama que resiste à modernidade representada pela fotografia. A insistência em praticar uma atividade que perde prestígio e a recusa em aceitar uma nova profissão de captura de imagens compõem o jogo dialético no espírito de Lanari para quem a arte se restringiria à pintura. De prestigiado pintor passa a requisitado fotógrafo nos tempos de guerra.
Provavelmente a parte mais lancinante se concentre na descrição da carnificina da loucura bélica. Obrigado a fotografar a degola de um prisioneiro, o conflito entre o moderno (fotografia) e o arcaico (pintura) se transfere ao questionamento da intolerância, da compaixão e do altruísmo.
A elegância do fragmento de “O pintor de retratos”, abaixo reproduzido, alça o romancista gaúcho ao patamar de escritores de estilo marcante, fluido e límpido na medida em que imortaliza uma cena de sutil e singular intensidade dramática:
“Traziam mais um para ser morto. Era um homem forte, apolíneo. Seus músculos rasgavam as costuras. Mandaram que se abaixasse. Como relutasse, sujeitaram-no, colocando-o de joelhos.
Latorre se preparava.
- Não! – Sandro destapou-se, levantou o braço, gritou. – Não!
Latorre suspendeu o movimento. Hirto de terror, o prisioneiro fixava a câmara.
Deu-se uma aberta de sol. Sandro tirou o obturador, fechou-o. E num único gesto, Adão Latorre degolou o prisioneiro.
A última imagem, aquela que o desgraçado levaria para a eternidade dos séculos, foi a de Sandro Lanari, o braço erguido, na atitude de quem deseja impedir algo”.
A linguagem escorreita de Assis Brasil não apenas rende homenagens à Literatura, preocupando-se com seus elementos peculiares, mas também conversa com a música, a história, a filosofia, as ciências políticas, a sociologia, a psicologia, fazendo com que sua obra se transforme igualmente em poderoso instrumento pedagógico de incentivo à intertextualidade ou, como pretendem alguns estudiosos, à multidisciplinaridade. Assis Brasil? Leitura imprescindível!
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de novembro de 2009.