E o palhaço o que é? É ladrão de mulher...
E o palhaço o que é?: É ladrão de mulher...
“O estado genial do homem é aquele em que pode, simultaneamente, amar uma coisa e rir-se dela". F.Nietzsche.
Para entendermos a figura do palhaço nos reportaremos a commedia dell”arte que foi forma de teatro popular surgida entre os séculos XV e XVI, na Itália e, veio a se opor a comédia eurudita. Também foi chamada de comédia all”improviso.
Suas apresentações eram feitas pelas ruas e praças públicas, ao chegarem a uma cidade pediam permissão para se apresentar, em suas carroças, pois eram raras as possibilidades de conseguir um espaço cênico adequado. As companhias de commedia dell’arte eram itinerantes e possuíam uma estrutura familiar, excepcionalmente contratando um profissional. Muito parecida com a estrutura original dos circos.
A commedia dell”arte se fundamenta na ação cênica ocorria no improviso dos atores, onde também passavam a ser os autores dos diálogos apresentados, seguiam apenas um roteiro prévio, que se denominava “canovacci”, possuindo total liberdade de criação e os personagens eram fixos. E, curiosamente muitos atores desta estética de teatro viviam seus papéis até a morte.
Os personagens da commedia dell’arte possuíam duas categorias distintas, que eram os patrões e os criados. Os personagens mais importantes eram: Arlequim, Pantaleão, Capitão, Polichinelo, Colombina e o Pagliaccio. Permanecendo até hoje como figuras típicas do carnaval.
Interessante é analisar as máscaras da commedia dell” arte pois encarnavam a representação geral da maioria das classes sociais existentes( patrões e velhos, capitão, servos, a colombina, os enamorados( inamoratti), dentre outros) e revelavam as distâncias, problemas e as relações sócio-econômicas da época.
Cada um dos personagens simbolizava uma coletividade representativa de certo período histórico, traçando as principais características da personalidade de cada grupo tal como a avareza, a gula, a preguiça, a habilidade acrobática e agilidade, a beleza e ternura, o intelecto, a fome, o virtuosismo , a atrapalhação do desastrado.
Assim podemos analisar superficialmente cada personagem:
O Arlequim possuía habilidades acrobáticas, era um servo astuto e ignorante, um pouco ingênuo, e estava sempre envolvendo as pessoas em confusões. O Pantaleão era um comerciante idoso e, apesar da idade avançada, costumava se apaixonar facilmente, no entanto era avarento.
O capitão era um militar que gostava de festa, um fanfarrão, mas com uma enorme insegurança, bem peculiar aos covardes. O Polichinelo era um criado simples e gracioso, apreciador de uma boa macarronada. Já a Colombina era uma criada ágil, esperta e inteligente, que costumava aferir maior proveito de todas as situações.
A maioria dos personagens da commedia dell’arte foram incorporados pelo teatro de fantoches.
A commedia dell” arte acabou por utilizar o modelo do bobo da corte para criar seus espetáculos, utilizando máscaras divertidas e diferentes, roupas largas e coloridas e sapatos engraçados além das piadas que iam do sarcasmo até romantismo.
Sua teatralidade extrapola os limites das convenções de sua época, com figurinos coloridos, alegria e espontaneidade nas cenas, e ainda o domínio dos personagens por cada ator e atriz emprestar sua própria vida a arte.
A commedia dell’arte esbarra, de forma paradoxal com à liberdade de criação, com a limitação de interpretação, pois como o ator ficava especialista restrito em sua personagem, fazendo apenas um determinado papel, se tornava repetitivo e “pobre” em relação a maior característica da arte que é a inovação.
Mesmo assim, a commedia dell’arte marcou o ator e a atriz como sendo a base do teatro.
No século XVIII a commedia dell’arte entrou em declínio, tornando-se vulgar e licenciosa, então alguns autores tentaram resgatá-la criando textos baseados em situações tradicionais deste estilo de teatro, mas a espontaneidade e a improvisação textual lhe era peculiaridade central, então a commedia dell’arte não tardou a desaparecer. Um dos autores que muito trabalhou para este resgate foi o dramaturgo italiano Carlo Goldoni (1707-1793).
Pagliacci que significa palhaço em italiano, é também uma ópera de Ruggero Leoncavallo representada pela primeira vez no Teatro dal Verme de Milão, em 21 de maio de 1892 com direção de Arturo Toscanini.
A ópera de Leoncavallo conta com os seguintes personagens: Canio(irritadiço líder de meia-idade dos atores e que faz o papel de Pagliaccio, o palhaço e marido traído. Representado por um tenor.
Havia ainda :Nedda ( a jovem esposa de Canio, que representa a esposa de Pagliaccio na peça da trupe, cansada de Canio e suas viagens constantes e que se apaixona por Silvio, um jovem da aldeia). Representada por uma voz de uma soprano.
Tonio (Um amargo e irritado corcunda que é atormentado por sua paixão por Nedda. Ele representa a personagem de Taddeo, um criado na peça da trupe.) Representado pela voz de um barítono.
Beppe (Um ator que representa o papel romântico do amante de Columbina, Arlecchino, na peça.). Representado pela voz de um tenor.
Sílvio (aldeão amante de Nedda) representado pela voz de um barítono.
Na ópera bufa temos um palhaço que é ridicularizado pois é traído e provecto em relação a jovem esposa. É tem a famosa ária de ridi pagliacci! Aliás, a comédia é finita por uma tragédia aonde o palhaço mata a esposa e o amante.
Mas a pergunta insiste, o que é o palhaço? O palhaço é o anti-herói, é o escracho pois traz para as crianças os risos, graça e para os adultos a comicidade ... mas fundamentalmente o palhaço é triste, vive dos paradoxos prolixos que se eternizam no comportamento humano.
Os palhaços segundo alguns autores tais como os bufões surgiram através da exclusão social no período medieval e como os bobos da corte que divertiam a realeza.
A lógica absurda e ilógica do palhaço traz uma realidade centrada na verdade pessoal, e sua visão permite distorcer essa realidade e criar outra realidade paralela que é fruto de imaginação, brincadeiras, ludicidade e lirismo.
O palhaço vê o mundo ao contrário, sua lógica é invertida. Por isso, consegue denunciar a ordem vigente... assim o palhaço erra aonde não esperamos e, acerta igualmente quando não esperamos...
Contar a história do palhaço é igualmente narrar a história do circo que é a arte de entretenimento mais antiga existente no mundo.
Sérias pesquisas atestam que cerca de cinco mil anos atrás na China, já existiam figuras circenses como acrobatas e equilibristas. O que reforça a tese do circo ter nascido em terras chinesas.
Já a figura do bobo da corte é igualmente antiquíssima e há registros do Ministério dos Palhaços na dinastia do faraó Dadkeri-Assi( há 2.500 a.C.) quando começou a exercer suas atividades cômicas como profissão.
A fusão entre o bobo da corte e os atores da Commedia dell” arte e o circo acabou dando origem ao palhaço que conhecemos hoje, então sua história e origem é um misto de criatividade, evolução e lirismo.
Os palhaços não costumam desejar boa sorte a outros palhaços, no lugar disso utilizam expressões como “quebre a perna!” ou “merda”, significando boa sorte... Pois se um palhaço disser boa sorte ao outro, é considerado como “olho grande” ou até má sorte.
É de grande relevância o treinamento de palhaço para se atingir o corpo cênico e cômico proposto na época, pois o palhaço encerra uma crítica social aos comportamentos vigentes e, vai além dos conceitos culturais, sociais e rótulos atingindo o cerne da criação e propondo reflexão sobre o estado ridículo de seu corpo e de seu comportamento.
O palhaço ridiculariza a verdade e propõe com lirismo brincadeiras e diversão. O palhaço faz com que todos riem da verdade. Talvez porque saiba que estas são provisórias e errantes...
“O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são” (Nietzsche, 1987, p.34).
Enquanto o equilibrista e o trapezista lidam com o sublime com a perfeita habilidade, o palhaço traz à cena o grotesco, o estúpido e o inaceitável.”
O palhaço traduz a grande metáfora que põe à prova o contexto vivente, as posiçõe sociais, as burguesias, as certezas sobre a a estética óbvia e o chamado “comportamento civilizado” que cada vez mais animaliza os sentimentos humanos.
Mas, afinal: palhaço e clown são a mesma coisa?
Segundo Roberto Ruiz, a palavra clown vem de clod, que se liga, etimologicamente, ao termo inglês ‘camponês’ e ao seu meio rústico, a terra (Ruiz, 1987, p.12 apud Burnier, 2001).
Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha em italiano), material usado no revestimento de colchões, porque a primitiva roupa deste cômico era feita do mesmo revestimento dos colchões: um tecido grosso e listrado, e afofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro ‘colchão’ ambulante, protegendo-o das constantes quedas.
Na verdade palhaço e clown são termos distintos para se designar a mesma coisa. Existem, sim, diferenças quanto às linhas de trabalho cênico. Como, por exemplo, os palhaços (ou clowns) americanos, que dão maior valor à gag( ou chiste), ao número, à idéia; para eles, o que o clown vai fazer tem um maior peso.
Por outro lado, existem aqueles que se preocupam principalmente com o como o palhaço vai realizar seu número, não importando tanto com o quê ele vai fazer; assim, são mais valorizadas a lógica individual do clown e sua personalidade; esse modo de trabalhar é uma tendência mais pessoal. (grifos meus).
Concluimos então que os clowns europeus seguem mais essa linha. Também existem as diferenças que aparecem em decorrência espacial em que o palhaço trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema etc”.
O clown remonta à renascença, do teatro popular, da commedia dell’arte – representando a primeira manifestação de ofício cômico, de teatro profissional (Barni, 2003, p.19), quando artistas criavam seu universo particular junto do público, obedecendo a uma estrutura própria e apoiando-se, por meio do improviso, nas situações corriqueiras da vida (naquela instância, as fronteiras entre o sano e o louco, a arte e a vida, eram por demais permeáveis: o tráfego entre tais polaridades culturalmente construídas ainda mantinha-se mais permitido).
Os clowns brincavam e/ou criticavam-nas de forma visceral e profunda, amparados sempre pelo contraponto entre o oficial e o popular.
Nessa manifestação cênica, aquele que assiste e aceita a relação, o jogo, deixa de ser mero espectador e, passa a fazer parte do espetáculo, agora na qualidade de convidado do cômico ( o chamada “escada”), de seu mundo, absurdo que pareça. A lógica,pueril e infantil ou mesmo irônica e sarcática, do clown, busca ser sedutora e contagiante, a fim de abrir intimidade com a identificação artística e humana.
Assim, o clown pode tudo! Sua tarefa também é a de conquistar e espalhar a permissividade social, nonsense ou um afrouxamento dos padrões de comportamento, obtida em negativo, em espelho, pois é a partir da ridicularização dos costumes que a ampliação da noção acontece.
Para os que captam a extroversão surgem as gargalhadas enquanto que para os mais sensíveis, é possível extrair até as lágrimas ( por mais internas que sejam). Enfim, para qualquer um, as formas de movimento interior são despertadas pela mesma figura estranha ao ordinário, o palhaço.
O ofício cômico sempre teve lugar evolutivo por excelência, encarnada pelo seu sujeito principal (o bobo, o louco, o bufão, o poeta, o palhaço, o clown e o coringa), por se tratar de uma obra de arte viva, exposta, em meio ao povo ou platéia: se não há (e nem pode haver) garantia artística de uma alteração coletiva de estados pessoais ou humores, em um primeiro momento (como nos atuais programas de auditório, por exemplo), há o estabelecimento de relação humana, ao menos, particular - seja de simpatia ou de antipatia (a presença do clown não assegura o riso, mas a incerteza do porvir).
Caso contrário, sem empatia, o clown deixa de ser clown, e, como vapor, some e desaparece, restando apenas um insignificante personagem caricato (como aqueles que se vestem externa e instrumentalmente de palhaço, espalhados pelos semáforos urbanos, a serviço de produtos ou promovendo campanhas com uma convicção incapaz de convencer a si mesmos).
O artista doa-se continuamente, “perdendo-se” de si mesmo - “perder-se é um achar-se perigoso” (Lispector, 1998, p.102), a ponto de distribuir tomates para a platéia, colocando-a em posição de controladora “dos fios da marionete” (Bergson, 2001, p.12), anonimamente de início. A platéia mesma como a “diretora da cena” passa a se mirar no espelho e no espanto diante do palhaço.
A linha de distinção entre um clown em ação e o insano, o louco e o sadio, torna-se difusa e imprecisa. A diferença, simplista, é que a “viagem” clownesca materializa técnica e artisticamente impulsiva e as manifestações do inconsciente, com um retorno voluntário.
“A deseroização é o grande fracasso de uma vida é refletida no palhaço”. O afastamento das pessoas dotadas de sensibilidades, percepções e reações diferentes e diferenciadas da normalidade conclamada e as portadoras das inúmeras classificações da loucura.
Aliás, só a loucura é capaz de dar liberdade suficiente para avaliar as experiências e as possibilidades diversas do universo engessado das práticas sociais e bem aceitas que estão em determinados níveis e sociedades.
O palhaço contemporâneamente é totem que faz rir e refletir sobre o que há de burlesco e torpe no mundo. Pode ser o desastrado ou o mal-amado mas sempre evidenciará as misérias humanas. Alimenta-se do próprio constrangimento e o converte em substância poética e lírica.
O palhaço permite a quebra de couraças cotidianas. É obra de arte que se modifica diante dos olhos atentos e livres da platéia, trazendo a reflexão como um espelho ou como tema.
Na sociedade disciplinada e organizada, o palhaço é um estranho, com hábitos estranhos, que destoam daqueles que são chamados de hábitos “normais”, só que ensopado em uma atmosfera de consentimento e licença.
Assim o palhaço se traduz em ser o próprio coringa entre reis, rainhas e números ordenados: encaixa-se em qualquer lugar ou posição e, instituíndo a des-ordem, convence o encaixe do “cubo na estrela” e do “cilindro na lua”. Para tanto, nutre-se de coragem para poder embriagar-se (e embriagar) com os próprios medos, que são conhecidos e comuns a todos, mas escondidos.
Traz o inconsciente para a linguagem consciente traduzindo em alegria as melancolias, aflições, medos e enganos da rotina.
O palhaço através de sua lógica poderá encarar todos os personagens sociais que quiser ou precisar, pois veste o estereótipo da troça de si mesmo e de todos ao mesmo tempo.
O louco por sua intromissão social é vetor transformador e diferente, por isso, não por acaso existiu durante muito tempo, o louco do rei capaz de compensar as pressões sentidas em momentos de agruras tais como a decisão sobre uma sentença de morte, a execução de um traidor ou simples veredicto sobre um furto ou a sonegação de impostos.
No Brasil, o dia 10 de dezembro é o Dia do Palhaço. E começou a ser festejado em 1981 pela companhia Abracadabra Eventos em São Paulo, passando também a ser comemorado em outras capitais brasileiras. Mas não tem conotação internacional, pois no Reino Unido, por exemplo, comemora-se em junho.
É referência fundamental o trabalho de grupos de palhaços mais novos tais como o festejado Parlapatões, Patifes e Paspalhões. “Picolino é grande mestre dos palhaços. Ao meu tempo de infância, era o palhaço Carequinha. Mas podemos citar muitos outros como: Piolim, Arrelia, Tic-Tac, Atchim e Espirro.
Então, minhas sinceras homenagens aos palhaços famosos brasileiros, aos anônimos e a nova geração de palhaços que ainda está por vir... por significarem muito e, por propiciarem os melhores momentos de nossas vidas.
No universo cultural brasileiro temos figuras cômicas nas Folias de Reis, ou grupos de Bumba-meu-Boi ( ou Cavalo Marinho em Pernambuco) e o velho do pastoril profano que são genericamente chamados de palhaços.
E, todos enfeixam a busca da alegria e da reflexão sobre as contradições vivenciadas e traduzem o lirismo da brincadeira e da esperança de mundo de menores abismos sociais e maior humanidade.
E o palhaço, o que é? Ao contrário do velho jargão, o palhaço não é ladrão de mulher. É sempre alegria para quem vier...
Refereências bibliográficas
DE OLIVEIRA, José Regino. Dramaturgia da atuação cômica: o desempenho do ator na construção do riso. Dissertação apresentada na Pós-Graduação do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília – UnB para obtenção de grau de mestre em processos composicionais da cena., 2008.
LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1998.
NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. São Paulo. Editora Nova Cultural, 1987.
BERGSON, Henri. O Riso – O ensaio sobre a significação do cômico. Martins Fonseca, 2001.
BURNIER, Luis Otávio. A arte do ator: Da técnica à representação. São Paulo, UNICAMP, 2001.
FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, Editora 1996.
PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. Editora Experimento. São Paulo, 1996.
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo, Editora UESP,2003.
FEDERICI, Conrado Augusto Gandara. De palhaço e clown : que trata de algumas das origens e permanências do ofício cômico e mais outras coisa de muito gosto e passatempo/Conrado. Augusto Gandara Federici. -- Campinas, SP: [s.n.], 2004. Orientador : Eliana Ayoub.Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.
PANZINI, Alfredo. Dicionário moderno. Dizionario Moderno. Editora Ulrico Hoepli. 1923. Suplemento Al Dizionari Italiani, quarta edizione. Tradução da autora.