Culpa de quem?

Wilson Correia*

Não são poucas as manifestações, de recantistas e não recantistas, comentando meus textos que envolvem assuntos interligados como escola, banheiros, sexo, universidade e violência.

Há a tendência nesses comentários que é a de culpar “só a escola”, “só a universidade”, “só os profissionais da educação” ou “só os estudantes” por desavenças registradas (quando me refiro aos estudantes da Uniban, estou falando de seres socialmente criados, formados, bem ou mal, educados).

Acontece que a coisa é contextual, no qual o todo é bem mais que a soma das partes. Não é possível abordar a escola e a universidade como se elas fossem instituições que estão fora da sociedade.

Escola e universidade são socialmente referenciadas. Elas participam da grande rede que é formada pelas instituições sociais: família, igreja, escola, empresa, organizações variadas, clubes, associações, ongs, universidades, entes estatais, entre outros.

Claro que essa rede de instituições não se sustenta no ar, não paira sobre nossas cabeças. Os pilares dessa rede podem ser compreendidos por economia, política, cultura e ideologia.

Uma representação metafórica disso é a árvore. Veja!

COPA-----Família----- Forma a subjetividade e

! ----Igreja Escola---- a identidade humanas

!---Empresa Organizações Várias--- !

!--Clube Associação Ong Universidade-- !

! -Entes Estatais Entre Outros- !

TRONCO -Ser Humano- Processo de individuação

! -Trabalhador- e socialização !

! -Indivíduo- !

! -Cidadão- !

! -Pessoa- !

RAÍZES -Economia Política- Fornece os valores éticos

! -Cultura Ideologia- !

-Nota porque quem coloca a “família” ou a “escola” como a “base da sociedade” não vê o que vem “antes” da escola e da sociedade?

-Sem a economia, sem a política, sem a cultura e sem a ideologia essa rede e os sujeitos que nelas se acomodam (ou não) subsistiriam?

-Entende o motivo pelo qual os aspectos econômicos, políticos, culturais e ideológicos “atravessam”, “influenciam” e realizam “injunções” diuturnamente sobre toda a rede de instituições sociais e, por consequência, afetam a família e a escola?

-É possível compreender o que estamos dizendo quando somos (sujeitos e instituições criadas por nós) histórica, econômica, política, cultural e ideologicamente configurados?

-Dá para entender a razão pela qual vivemos em um modelo societário (criado por nós) e porque vivemos um estilo existencial que configura uma identidade e uma subjetividade para cada um de nós?

-É possível compreender que o processo de individuação e socialização das pessoas não se faz ao largo das instituições sociais em seus contextos conjunturais (o cotidiano) e estruturais (raízes)?

- É possível entender a razão pela qual não dá para culpar só a família, só a escola, só os professores e só os estudantes pelo que são, fazem ou não são, deixam de fazer?

-Diante de um aquário, você pode “focar” o peixe ou a “água” em que ele se encontra, mas pode, o que é desejável, visualizar o “contexto” o que inclui, num primeiro momento, peixe + aquário, mas, num segundo momento, vê-lo acrescido do ambiente externo e suas várias instâncias ou dimensões ou níveis, como queira.

-É possível notar que a rede de instituições sociais nada mais faz do que escavar as bases (raízes) para delas extrair os valores éticos e morais que farão com que essa rede (dinâmica, contraditória, antagônica) funcione de um modo, e não de outro?

Então, quem diz que a família é a base da sociedade, não diz tudo. Quem afirma que a escola é tudo, não diz toda a verdade. Quem culpa os professores pelas mazelas sociais em que vivemos, não faz justiça com os professores. Quem diz que os alunos é que são os culpados também não enxerga o contexto histórico, social, econômico, político, cultural e ideológico que estamos vivendo.

Então, se nessas raízes aí foi plantado o conjunto de valores (de onde emanam regras de conduta, normas éticas e jurídicas, entre outras) que afiançam que o egoísmo, o individualismo, o materialismo rústico, a competitividade, o consumismo, a acumulação é que devem reger nosso modelo societário e nosso estilo existencial, quanto poderá contra esses valores tanto a família quanto a escola? Poderão fazer transformações conjunturais, mas não mudanças significativas nos “valores pétreos” voltados para a destruição, e não para a construção, a manifestação de vida.

Então, nesses debates sobre meus textos, sugiro observar que eu os elaboro pensando no conjunto do que compõe nossa sociedade e nossa vida em meio a ela, sabendo que a sociedade é o que nós somos, mas sabendo que o que nós somos brota dos valores e princípios que elegemos como norteadores de nossa maneira de ser, estar e agir no mundo.

Um exemplo. Nas últimas décadas, a expansão do ensino universitário, feito pela iniciativa privada, deu-se de maneira avassaladora (sob a égide de valores de mercado que já afetam o ensino público). Com esse crescimento, o enfoque da educação universitária, desprovida de valores humanistas de cunho ético, transmite um conhecimento líquido, seco, não qualificado pelo “quê”, pelo “porquê” e pelo “para quê”, sempre voltados para questões relativas à carreira profissional, mercado de trabalho e para o êxito individual advindo unicamente do ato de produzir bens. Aí, então, o pauperismo humano, a miséria cultural e ética de nossos estudantes.

É claro que a especificidade da escola e da universidade é a de lidar com o conhecimento sistematizado (ciência, filosofia, artes). Mas, exatamente por lidar com o que de mais refinado e elaborado pelo espírito humano a humanidade produziu ao longo da história, acredita-se que os sujeitos aí inseridos possuem facilidade de adotar uma postura ética e até de etiqueta mais refinada, mas humana, educada, fina e polida. Ledo engano! Conhecimento (e pobre, como estamos vendo nas ultimas décadas, por se resumir a um amontoado de meras informações) não melhora os seres humanos. São os seres humanos, com valores voltados para uma educabilidade que privilegia a vida (ser, e não apenas o ter) que podem melhorar-se a si mesmos mediante o emprego consciente, livre, responsável e equinânime do saber. Aliás, penso eu, é esse entendimento que justifica o 'quefazer' docente.

Mas, enfim, temos de indagar: Até quando vamos manter esse modelo societário? Até quando vamos formar para o estilo existencial egotista? Até quando vamos suportar uma sociedade e um modo de ser no mundo contrários aos valores que possam formar uma sociedade e um ser humano mais "humanizado" de fato?

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br