Um cão com coleira
UM CÃO COM COLEIRA
A questão de uns dez anos, ou mais, eu escrevi uma matéria para jornal, (publiquei aqui em 2005) que ganhou um prêmio nacional de crônicas, chamada “Um cão perdido sem coleira”, que enfeixava duas idéias: primeiro um cachorrinho (sem coleira) que eu vi numa manhã em Garopaba e que julguei perdido, e que logo depois encontrou seu dono, um garoto surfista.
Chamou-me a atenção, na época, a aflição do pequeno animal, com olhos fixos no mar, e sua alegria quando o dono saiu da água. A outra idéia, sobre a qual discorri no mesmo artigo veio de uma música, uma valsa francesa, gravada por diversos artistas e orquestras, com gravação original em musette (aquelas gaitas parisienses de som inconfundível) cujo título se aproximava do quadro do cachorrinho a espera de seu dono: “chien perdue sans colliére” (cão perdido sem coleira).
Pois bem. Há dias tomei conhecimento de um fato real e próximo de nós, em que uma mulher lamentava o desaparecimento de seu pequeno cão. Até aí nada demais. Diariamente cães fogem, são roubados ou desaparecem. Eu já passei por isto, já perdi alguns cachorros que se evadiram debaixo dos meus olhos.
O curioso, e porque não dizer inusitado foi o desespero da mulher ante a perda de seu bicho de estimação. A reação dramática, segundo soube, foi algo nunca visto, com direito a chiliques, desmaios, muito choro e depressão. Acamada, a mulher não cansava de contar seu drama, pintado com as cores mais funestas, a todas as pessoas amigas que a visitavam. A perda do bicho (com a devida coleira) foi lamentada igual ou pior que a perda de um familiar.
A mesma pessoa que me contou o fato do sumiço do cachorro comentou a desproporção do sofrimento da mulher. Quando lhe perguntei por que desproporção, ela me disse que não acreditava na dor ora demonstrada, pois a dona, há alguns anos não titubeou em abandonar o marido e uma filha adolescente para correr atrás de uma aventura.
Ora, se não lamentou abandonar a casa, a família e especialmente a filha, numa indigência afetiva, porque deveria agora chorar a perda de um cachorro. Mesmo que a aventura, com tempo tenha se convertido em uma união estável – prosseguiu a minha interlocutora – o simples fato do abandono não pode ser apagado nem justificado.
Eu não vou entrar aqui em julgamentos, a priori nem a porteriori, mas para a observação de um cronista um fato desses não deixa de trazer suas questões e, sobretudo, não pode passar despercebido dentro do quadro de valores sociais.
É o caso de tantos que lamentam a fome na Etiópia e não fazem nada pelos famintos daqui, bem próximos e tão carentes. Não condeno quem chore a perda de um cachorro, mas questiono a frieza com que alguns abandonam valores reais para correr atrás de fábulas, sucedâneos e ilusões. O meu direito de ser feliz e viver uma alegria não me permite passar por cima das expectativas dos outros. Especialmente da família.