CARA A CARA COM CRUZ FILHO
Era estudante de Letras. De repente, numa tarde, eis que estou sentado na sala do poeta Cruz Filho. Apesar de acanhado, eu, ilustre desconhecido do velho intelectual e autodidata, arrisquei-me à empreitada de ir até sua casa. E fui aperreá-lo, tocando-lhe à porta.
Calculo que a visita haja sido ali pelo segundo quartel de 1970, ano de lutas ao cabo do qual me puseram na mão o canudo de uma licenciatura. Pois, como aludi, fui bater à porta do consagrado homem de letras, poeta provinciano de escol, à busca de um livrinho raro, de sua autoria, chamado “O soneto”. O holocausto da minha ida deveu-se ao fato de ter eu que executar atividade de pesquisa, provável que atinente à disciplina ministrada pela D. Aglaeda Facó, grande mestra de Literatura – não me lembro bem –, senão pela empolgante professora Vanda Clotilde.
Diariamente, de volta do meu expediente matinal, num laboratório que ainda hoje fica na mesma rua do poeta, aí em torno de meio-dia e meia, fazia bastante tempo que eu já passava a pé defronte ao portal da residência do escriba. A casa dele, em rua central, situava-se à orelha sul da Praça José de Alencar e vizinha à casa do nacionalmente famoso, poeta e folclorista, Juvenal Galeno. À minha passagem, via-o de bruços, à janela, tomando ar poluído dos carros, pois é intenso o trânsito da Rua Gen. Sampaio. Cabelinho de algodão, alvo como as barbas de São Pedro, de olho esticado, talvez, na meditação de um verso; outras vezes, lá estava ele com o nariz enfiado nos livros, na prisão da escrivaninha. Invariavelmente, mesmo com o sol aberto lá fora, um quebra-luz sempre aceso sobre a mesa.
Às vezes, sem razão plausível, já premeditara ir-me ter com o macróbio, bater um papo literário, sem saber justo por onde iria começar. E glória minha seria parlamentar com um sujeito importante como aquele. Mas ia protelando, adiava a venturosa aventura, sem concretizar o afã de conhecer pessoalmente um titã cearense tão letrado e escolado. Assuntar com um mago da nossa aborígene literatura, ô tarefa espinhosa para um leigo chinfrim! Mas a NTI (nota de trabalho individual), por imperativo acadêmico, veio até mim por parte da Providência celestial. A chance me caiu de paraquedas. Assim, em clima de motivação dupla, empenhei-me em enfrentar o figurão ilustrado. E fui.
Enxovalhado de timidez, ao anunciar-me, expliquei o motivo da importunação à qual estava indo. Então a porta abriu caminho, o pincenê do velho escritor bem à ponta do nariz. E conversa vai, conversa vem, como introito, muito francamente o senhor anoso desfiou as suas verdades.
“– Olhe, só me resta comigo um único volume de “O soneto”. Emprestei outros e os perdi. Se você quiser utilizá-lo, aqui mesmo, muito bem. Pode copiá-lo. Esteja à vontade, àquela mesa” – e apontou-a para mim. “Mas não empresto para levar, que só tenho um tomo, e a edição dele faz muito que ficou esgotada.”
Aceitei o trato. Servi-me do opúsculo como pude. Anotei passagens – as mais importantes –, embora, de vez em quando, torpedeado pela fala às bordas da boca do insigne. Finda a transcrição (exígua, por conta das falações do escriba), os meus sinceros e efusivos agradecimentos. Agora, quem viu o homem querer libertar-me? Ele conversava de se estragar. Só papo de matizes literários. E eu ouvinte basbaque, feito uma plateia inteira.
Discorreu Cruz Filho, na viagem do bonde da tarde, sobre generalidades. Ressaltou ser um autodidata, sem curso superior, portanto intelectualmente com limitações – ele reconheceu isto, mas eu não. Contudo, era parnasiano, à Bilac. Cobriu de loas o Olavo e não admitia, por hipótese alguma, a “literatura piadista” que andava em voga. Coisa ridícula, na sua concepção. Criticou em cheio os “papas” do Modernismo brasileiro. E exemplificou, pondo nomes aos bois. De início, Manuel Bandeira, como cobaia. “Tosse, tosse, tosse. // Mandou chamar o médico...” E de moto próprio, revoltado, o poeta concluía: “– Isto é poesia, meu filho, isto é poesia?” Mas eu calado, que nem uma porta. Depois, nova birra, desta vez contra o Drummond. “Caio verticalmente” (do avião) “e me transformo em notícia.” E aí, outra vez, a machadada demolidora, como remate: “Isto é poesia, meu filho, é poesia?”
Nesse tom, em sessão de fala contínua, não me era dada a voz. E cadê coragem para eu refutar, opinar e dizer na rosca do nariz do poeta que a coisa não era bem assim? Também, eu era lá doido para contestar um camarada de fama, cobrão da Academia? De jeito nenhum. E ele não me deixava sobrar tempo nem para respirar, coçar-me ou ir embora. Discursando sem cessar, vez em quando Cruz Filho me digitava a cabeça do joelho, como se desejasse pregar-me à cadeira ou então dizer “fique mais um pouco”.
Cara a cara com o poeta famoso, antes que me fosse, ele não me cobrou, por papel passado em cartório, que eu fizesse profissão de fé estética, nem jura de fidelidade aos cânones do seu gosto conservador, todavia foi incisivo. Taxativo, então, concitou-me a defender com garras e dentes a “verdadeira arte poética de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto Oliveira”.
Quando o acadêmico mudou-se para o Além, e se fez presente no campo editorial, logo juntei uns cobres, adquiri na livraria o “Toda musa”. Este catatau enfeixa os versos completos do tradicionalista filho de Canindé, a cidade das grandes romarias de São Francisco. Mais tarde, pelo prefácio de outrem, no livrão danado de grande, fiquei ciente, também, que, além de letrado, o tal homenzinho tagarela e empolgado pelo Parnasianismo fora, em vida, nada mais e nada menos que o “Príncipe dos Poetas Cearenses”, sucessor do Padre Antônio Tomás, autor de maravilhosos e antológicos sonetos.
Fort., 27/10/2009.
(*) Não fosse um e-mail de Vitor Silva, confrade
do Recanto das Letras que me enviou um arquivo
contendo o livro “O soneto”, de Cruz Filho, já por
via do ilustrado poeta Glauco Mattoso, não teria
eu resgatado este artigo, esboçado tempos atrás.
Ao Vitor, pois, o meu mui agradecimento pelo
mino do presente.