Produção dispersa
Dica de leitura:
Livro: OBRA DISPERSA
Título original: OBRA DISPERSA
Autor: MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA
Reúne-se neste volume – pela primeira vez, 130 anos depois de sua morte – a produção dispersa de Manuel Antônio de Almeida, o romancista das MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS.
O legado é numericamente reduzido: sete crônicas, oito ensaios de crítica textual, dois artigos sobre ética e funções da imprensa, alguns versos na convenção romântica, uma imitação de drama lírico italiano.
Será um equivoco, entretanto, medir o significado deste conjunto de textos pelo critério estatístico ou mesmo por uma leitura formal e descontextualizada de seu valor literário.
Antes de tudo, este material esparso – produzido em sua maioria para o CORREIO MERCANTIL, no Rio de Janeiro, na militância de jornalista profissional – desmente um dos mais reiterados artifícios com que a historiografia literária despistou a surpresa e a inquietação em face da habilidade mimética, do despojamento narrativo e do humor crítico das MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS: a de ser obra apenas da inconsciência, escrita descuidadamente por um jovem autor desinformado dos códigos ideológicos, literários e lingüísticos.
A leitura dos textos desmentirá, com provas nítidas, este tipo de argumento. Mais que isso, porém, ignorá-los – persistindo num erro a que se pode atribuir, em grande parte, o adiamento de uma tarefa anunciada e iniciada por Machado de Assis e Quintino Bocaiúva, em 1862 – será negar-se o conhecimento de uma das histórias mais exemplares e instrutivas de extemporaneidade na cultura brasileira: uma extemporaneidade acirrada pela crise individual entre a opinião manifestada e a conveniência conservadora. Tanto nas convenções imperantes na literatura quanto na vida, como jornalista e funcionário público, seja por deliberada rebeldia, seja por simples incapacidade de cifrar o seu inconformismo, Manuel Antônio de Almeida personifica, como poucos, esta crise.
É o que se tenta, nesta edição, oferecer ao juízo do leitor, através não só dos escritos dispersos, mas de três antologias complementares: a correspondência ativa, descoberta entre os recentes anos 50 e 60, dirigida a Quintino Bocaiúva, Francisco Ramos Paz e José de Alencar; os depoimentos de contemporâneos, como Francisco Octaviano, Machado de Assis, Augusto Emílio Zaluar, Felix ferreira, Joaquim Manuel de Macedo, e, por fim, uma mostra das hesitações críticas nas leituras pré-modernistas das MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS.
Espera-se que surja deste painel, sem o direcionamento de uma narrativa biográfica ou de um estudo crítico fechado, não apenas a verdade sobre um legítimo precursor do espírito moderno, mas outra – de maior abrangência e flagrante atualidade – sobre uma modernidade adiada.
INÍCIO DO LIVRO:
CIVILIZAÇÃO DOS INDÍGENAS
DUAS PALAVRAS AO AUTOR DO MEMORIAL ORGÂNICO
Um grito de guerra, bem pouco generoso, contra as raças indígenas do Brasil, acaba de ser levantado pelo autor de um trabalho intitulado MEMORIAL ORGÂNICO – publicado nas páginas do GUANABARA; um grito de guerra, que parece ser o eco daquele que ao pôr pé no território brasileiro fora soltado pela cobiça do Portugueses.
Julgávamos que a questão relativa aos nossos indígenas se achava de muito resolvida; julgávamos que não havia mais filosofo de qualquer seita, político de qualquer cor, que não acreditasse que o único meio de fazer servir esses homens à humanidade, a Deus, e ao Estado, é acabar para sempre com esse sistema de tirânica opressão, que tanto tem pesado sobre eles, que tem conseguido esmagar-lhes famílias inteiras; pensávamos que todos aqueles meios estúpidos, atrozes, inconseqüentes, com que se pretendia outrora domar o nosso gentio, haviam acabado com a barbárie dos tempos coloniais; que dessa época só havíamos guardado para esse fim a cruz de Anchieta e a palavra de Nóbrega. Enganávamos-nos! Ainda há quem venha restabelecer os hábitos da barbaridade passada, adoçados ou esquecidos pela civilização presente; ainda há alguém que, descrendo impiamente da força da palavra, do poder da região, do influxo da civilização, ouse ir desenterrar a espada de Mem de Sá, o Devastador dos Tamoios, e dizer-nos: “Eis aqui a civilizadora das raças indígenas”.