A Simbologia do Fruto Proibido em 4 Canções de Caetano Veloso
A Simbologia do Fruto Proibido em 4 Canções de Caetano Veloso
Prof. Dr. Jayro Luna
A capacidade de letrista de Caetano Veloso só é comparável a sua capacidade de músico compositor. Engenhoso como um poeta neobarroco com a palavra, Caetano tem a sensibilidade e a inteligência para extrair significados e significantes das palavras além de uma riqueza de vocabulário e de construções sintáticas que faltam à grande maioria dos compositores populares. Autor de livros em prosa de refinada escrita como Verdade Tropical (1997) e O Mundo Não É Chato (2005).
Acerca da poesia concreta, Caetano Veloso em dado momento escreve no seu Verdade Tropical:
“Agora, eu absorvia com grande presteza o sentido do trabalho deles. Gostava de reconhecer nos poemas a complexidade que, muitas vezes, à primeira vista eles não pareciam ter. Pequenos ovos de Colombo, eles poderiam parecer ao mesmo tempo demasiado óbvios e demasiado artificiosos, mas em muitos deles tinha-se de fato a experiência, defendida teoricamente pelo grupo (segundo Mallarmé), de ‘subdivisão prismática de uma idéia.’”
(VELOSO: 1997, p. 218)
A aproximação com os concretistas deu-se após o período de surgimento do Tropicalismo e não são poucas as canções em que se percebe um experimentalismo advindo desse contato nas músicas de Caetano, notadamente após o disco Araçá Azul. Na sua prosa também, como podemos notar nesse fragmento inicial do texto “Não Verás Um País Como Este”:
“Cremúsculo. O sol, a só, despe de si, digo, despede-se, desce pé ante pele, descalço, dá-se e sobe, digo, sob, ou melhor, sobre as bandas cremoças das mulheres alfíssimas do hemisferno nhote. Kolinas sonrisam no horizontre. Mastros desdesenham-se no ocidonte.”
(VELOSO: 2005, p. 350)
Alcyr Pécora e Paulo Franchetti comentando as “características do autor” para o volume Literatura Comentada: Caetano Veloso da Abril Cultural (1981) num texto que buscava fugir do óbvio desses tais “características do autor” em dado momento escrevem acerca de como parece se dar a questão da individualidade na obra de Caetano:
“(...) mostrando a existência indescartável de um eu que percebe e exibe a sua própria individualidade, há vários textos em que se aponta para o eu em contato com o outro, no momento sensual do encontro. E, como atitude mais abrangente, há ainda aqueles em que o eu apenas se define pela relação com o outro, pelo seu desdobramento: ‘um filhote de leão raio da manhã / arrastando meu olhar como um ímã / o meu coração é o sol pai de toda cor / quando ele me doura a pele ao léu’ (O Leãozinho); ‘eu sou um leão de fogo / sem ti me consumiria / a mim mesmo eternamente / e de nada valeria / acontecer de eu ser gente’ (Terra)/ ‘quando eu te vejo eu desejo o teu desejo’ (Menino do Rio.”
(PÉCORA & FRANCHETTI: 1981, P. 105)
O que buscarei destacar é uma questão desdobrada desse relacionamento com o outro e dessa sensualidade que é o tópico do fruto proibido. O símbolo do fruto proibido tem importância capital para a religiosidade cristã. O momento em que Eva, convencida pela Serpente - personificação de Lúcifer - opta por pegar o fruto proibido da Árvore da Ciência é o momento que define a queda do homem, sua conseqüente expulsão do Paraíso, o surgimento da morte.
John Milton em O Paraíso Perdido trabalha isso de maneira muito imagética e cinematográfica (em se lembrando que se tratava de um poeta cego):
“Encontro neste fruto tão divino,
De lindo aspecto, de atraente aroma,
E de virtudes que a sapiência outorgam.
Colhê-lo, e por igual a mente e o corpo
Com ele alimentar, quem me proíbe?
Assim dizendo, a mão desatentada
Ergue Eva para o fruto em hora horrível;
Ela o toca, ela o arranca, e logo o come.
A Terra estremeceu com tal ferida;
Desde os cimentos seus a Natureza,
Pela extensão das maravilhas suas,
Aflita suspirou, sinais mostrando
Da ampla desgraça e perdição de tudo.”
(O Paraíso Perdido, trad. de Antônio José Lima Leitão, Clássicos Jackson, p. 269)
Na parte final de “Litanias de Satã”, Baudelaire (já cerca de um século depois de Milton) sob outra ótica, escreve uma “Oração” a Satã em que fala acerca dessa árvore:
“Glória e louvor a ti, Satã, pelas alturas
Do Céu em que reinaste, e nas furnas obscuras
Do Inferno em que vencido és sonho e sonolência!
Faze que esta alma um dia, à árvore da Ciência,
Repouse junto a ti, quanto em tua cabeça,
Tal qual um templo novo os seus ramos floresça!”
(Flores do Mal, trad. Pietro Nassetti, p. 146)
Caetano Veloso é um artista que tem uma visão crítica do Brasil, sua participação decisiva na Tropicália já deu provas mais que suficientes desse envolvimento com essa crítica da nossa sociedade e cultura. Polêmico, não raras vezes, amado por muitos, odiado por outros, incompreendido ainda por alguns. Em “Jóia”, música que parece ser o carro-chefe conceitual do disco homônimo, embora não seu hit, é uma canção de experimentalismo. Atentando para a letra concisa:
“Jóia
Beira de mar
Beira de mar
Beira de mar na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor
Copacabana
Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca a coca-cola na boca
Um momento de puro amor
De puro amor”
Temos duas cenas correlatas que podem ser sucessivas ou até mesmo sobrepostas. Na primeira num local de praia não nomeado especificamente (“Beira do mar”, pode ser qualquer praia do litoral da América do Sul), “um selvagem levanta o braço / Abre a mão e tira um caju”. Esse ato de pegar o fruto (ou ainda de fazer aparecê-lo, pois não se diz que ele pegou o fruto da árvore, mas que abriu a mão e tirou um caju) é definido como “um momento de puro amor”, oposto ao momento em que Eva, em ação análoga causava a queda do homem. Observemos ainda que é “um selvagem”, isto é, além de ser indefinido pelo artigo, o é, no entanto, definido enquanto gênero, o masculino. Assim temos mais uma oposição com Eva, aqui a ação é feita pelo elemento masculino. O caju, a fruta citada, tem na aparência uma forma na castanha ao final do fruto que se assemelha na forma à genitália masculina. A sensualidade é assim colocada sobre a ação natural de se tirar o fruto. O “amor” aqui citado é erotizado assim como a Natureza. Na cena correlata, o cenário é nomeado pelo substantivo próprio “Copacabana”, lá é “a menina muito contente” que “Toca a Coca-cola na boca”, e se diz, definindo a ação, como “um momento de puro amor”. Aqui a menina (elemento feminino) possui não um fruto, mas uma garrafa de Coca-cola (lembremos que à época da composição da música a garrafa era mais usual do que a lata). O “tocar” ainda pode ter um sentido musical, de fato, assoprando-se a borda de uma garrafa se extrai um som característico. A sonoridade se desenvolve em assonâncias e aliterações: “Copacabana / Louca total e completamente louca / A menina muito contente / Toca a Coca-cola na boca”.
Esse tocar é também erotizado, porém, agora sob o estigma do pecado. Pecado de amplos e variados sentidos. Coca-cola é uma marca do domínio comercial e cultural dos Estados Unidos no Mundo e no Brasil. O selvagem foi substituído pela menina, a praia sem nome agora é Copacabana, o Caju natural foi trocado pela garrafa de Coca-cola. O paraíso edênico que serviu como imagem para a Natureza tropical antes do descobrimento agora é a cidade urbana, o Rio de Janeiro, e onde a ação era a erotização da Natureza, aqui é outro sentido, o “tocar” a garrafa com a boca insinua o falo e o sexo oral. O pecado, porém, que se destaca não é esse, antes, o que Caetano quer mostrar é que a sensualidade característica da Natureza Tropical permanece apesar do pecado da submissão cultural e da importação de elementos. A atitude da menina é assim antropofágica, no sentido mais lato que Oswald de Andrade poderia requerer.
A questão da exuberância da Natureza tropical brasileira dá pano e papel para muita coisa. Brevemente podemos lembrar dos barrocos baianos Manuel Botelho de Oliveira (Ilha da Maré) e Frei Manuel de Santa Maria Itaparica (Descrição da Ilha de Itaparica). No “Descrição da Ilha de Itaparica”, por exemplo, há um momento em Frei Manuel descreve o caju:
“Inumeráveis são os cajus belos,
Que estão dando prazer por rubicundos,
Na cor também há muitos amarelos,
E uns e outros ao gosto são jucundos;
E só bastava para apetecê-los
Serem além de doces tão fecundos,
Que em si têm a brasílica castanha
Mais saborosa que a que cria Espanha”
(“Descrição da Ilha de Itaparica”, LVI)
Santa Rita Durão também mostra uma natureza rica, exuberante e envolvente em várias cenas do seu Caramuru, notadamente na descrição que o herói do poema faz ao rei da França. Silva Alvarenga, na contradição entre forma e conteúdo, entre Brasil e Europa, não pode deixar de se equiparar como poeta ao caju:
“Cajueiro desgraçado,
A que Fado te entregaste,
Pois brotaste em terra dura
Sem cultura, e sem senhor!”
(“O Cajueiro”, Rondó III)
O hoje esquecido Frei Francisco de São Carlos no seu poema épico religioso A Assunção da Santa Virgem, não deixou de transformar todo o paraíso celestial em cópia da natureza brasileira. E estes são apenas exemplos da literatura colonial, há muitos outros.
Na questão do fruto proibido, Santa Rita Durão chega a propor que o fruto que representa o elemento proibido é a banana e não a maçã, como é tradição européia:
“As bananas famosas na doçura,
Fruta, que em cachos pende e cuida a gente
Que fora o figo da cruel serpente.”
(Caramuru, C. VII, est. XLIV)
Em outra canção, « Cá Já », Caetano Veloso apresenta novamente a cena da colheita do fruto coroada de sensualidade:
Cá já
Vejo que areia linda
Brilhando cada grão
Graças do sol ainda
Vibram pelo chão
Vejo que a água deixa
As cores de outra cor
Volta pra si sem queixa
Tudo é tanto amor
Esteja cá já
Pedra vida flor
Seja cá já
Esteja cá já
Tempo bicho dor
Seja cá já
Doce jaca já
Jandaia aqui agora
Ouço que tempo imenso
Dentro de cada som
Música que não penso
Pássaro tão bom
Ouço que vento, vento
Ondas asas capim
Momento movimento
Sempre agora em mim
Esteja cá já
Pedra vida flor
Seja cá já
Esteja cá já
Tempo bicho dor
Seja cá já
Doce jaca já
Jandaia aqui agora”
O rico trabalho com a sonoridade das palavras mais simples confere uma grande musicalidade à letra. O advérbio de lugar (cá) e o de tempo (já), monossílabos tônicos ficam ressoando no refrão e vão criar a expectativa do nome “cajá”, conhecida fruta tropical brasileira, porém, considerada de pouco valor comercial e regional. Mas o que se ouve é ao final do refrão: “Seja cá já / Doce jaca já”. Jaca é o anagrama de Cajá, ambas as palavras, resultado da união dos dois advérbios. Ambas tropicais, características da exuberância de nossa natureza. A necessidade imperativa que faz Caetano utilizar o verbo no imperativo no início do refrão (“Esteja cá já”) se explica pelo desejo de encontro: “Vejo que a água deixa / As cores de outra cor / Volta pra si sem queixa / Tudo é tanto amor”. O Sol e areia reafirmam o cenário já colocado em “Jóia” e a “Jandaia”, enquanto ave é utilizado como forma de se ligar aos imperativos criando um duplo sentido de caráter erótico que poucos ouvintes e leitores até agora perceberam: “Jan / dai / aqui / agora”.
Como observou Romildo Sant’Anna, em Caetano Veloso:
“(...) se evidencia, toda contextura sonora é formatada para a concepção subliminar de um sentido de absorção do espaço e tempo do personagem que diz, e seu ouvinte, em impulsos progressivos. E coaduna e se harmoniza com a contextura semântica dos versos.”
(SANT’ANA, Romildo. Caetano: Um Artista na Mídia, O Sensíval, O Erudito, O Popular)
O verso “pedra vida flor” (bem ao modo modernista oswaldiano e drummondiano, sem pontuação) se completa com “Tempo bicho dor”, marca simbolicamente a passagem da dor para o prazer, da negação da sensualidade para o amor prazeroso, consubstanciado na metáfora do “Cá já / Jaca”, inversos, mas semelhantes, masculino e feminino, pois é “o cajá” e “a jaca”.
Em “Cajuína” temos novamente o fruto do caju. Agora detendo-se mais na sua forma, na sua aparência, Caetano vai trabalhar esses aspectos com vistas a tratar não propriamente da questão da sensualidade, do amor e do sexo, mas do seu inverso, a dor, a separação, a ausência:
“Cajuína
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina”
Assim, esta letra, como está escrita, é um poema de uma oitava em versos dodecassílabos com uma rima em eco (“ina”). A Cajuína é uma bebida extraída do suco do caju, em geral gaseificada, muito popular no Nordeste por ser barata e adocicada. Dois personagens criam a relação eu X outro: O homem lindo e o menino infeliz. As três primeiras palavras terminadas em “ina” (10 ao todo) criam um campo semântico marcado pela idéia de separação e de dor: destina / pequenina / sina. As três seguintes (ilumina / nordestina / fina) reforçam a idéia pelo seu contrário (“não se nos ilumina”, “a lágrima nordestina”, “a matéria vida era tão fina”), a palavra terminada em “ina” seguinte (retina) cria um belo efeito plástico, pois é um olhar múltiplo, de um para o outro e do outro para o um: “E éramos olharmo-nos intacta retina”, esse reconhecimento do eu no outro, esse “homem lindo” e esse “menino infeliz” descobrindo-se como seres humanos tão somente, condição que exige enquanto tal a necessidade da solidariedade, do apoio, da compreensão. O verso final, com o eco constante da terminação em “ina” (“A Cajuína cristalina em Teresina”) fecha essa identificação, ou melhor, essa revelação, a visão agora é cristalina, ainda que haja uma “resina” diante do desvelamento da realidade.
Em “Araçá Azul” música que também nomeia um dos discos mais conceituais e experimentais de Caetano Veloso, a bela capa, que traz uma foto do misterioso fruto, temos uma letra concisa mas cheia de significados, que ao nosso ver, contém o sentido geral de fruto proibido na obra de Caetano:
“Araça Azul
Araçá Azul é sonho-segredo
Não é segredo
Araçá Azul fica sendo
O nome mais belo do medo
Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo
Araçá Azul é brinquedo”
A fruta inexistente na Natureza com essa coloração transforma-se em símbolo de uma visão de tropicalidade e de brasilidade marcada pelo contraste entre o exótico e o Natural, entre o civilizado e o selvagem, entre o amor enquanto prazer e sensualidade o pecado, de caráter cristão: “Com fé em Deus / Eu não vou morrer tão cedo”. Antítese do verso do músico de rock inglês, Pete Townshend, do The Who, que na voz de Roger Daltrey cantava: “I hope I die before I get old”.
O “sonho-segredo”, binômio que contém a gênese da psicanálise, pois é no sonho que se revelam parte dos segredos do inconsciente, e aqui o segredo desvelado está materializado nessa exótica fruta; “Araçá Azul é brinquedo”. O fruto proibido transformado em sabor do paraíso (a cor azul da religiosidade, da espiritualidade, do céu) transmutada em casca de fruta que deve conter pela aparência uma espécie de “maná”, que há pouco é dado conhecer: “Araçá Azul fica sendo / o nome mais belo do medo”. O medo do desconhecido, do mistério, da epifania, da agnição.
Como se diz no interior da capa dupla do disco de vinil (não sei se a versão atual em cd tem esse dizer, creio que tenha): “um disco para entendidos”. A fruta exótica está conotando sensualidade e sexualidade, a começar pela foto de Caetano, de sunga vermelha, tirada de baixo para cima que se relaciona com a foto da contracapa, a do “Araçá Azul”.
Observando as iniciais da letra da canção e notando a repetição contínua dos versos num círculo que se volta sobre si mesmo temos uma revelação acerca da cor e do sentido do “Araçá Azul” assim como as fotos todas ligadas à praia, ao Sol, ao Mar:
Araçá Azul é sonho-segredo
Não é segredo
Araçá Azul fica sendo
O nome mais belo do medo
Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo
Araçá Azul é brinquedo
Essa seqüência de letras iniciais vai formando um eco a partir do meio para o fim e deste para o começo da canção: O / C / E / A / A / N / A, de tal modo que a imagem sonora do oceano vai vibrando pela canção. Outro aspecto importante nessa imagem é a condição do verbo Ser. Primeiro o verbo com o sentido designativo afirmativo na ligação entre sujeito e predicativo (“Araçá Azul é sonho-segredo”), depois como negativa da predicação anterior (“Não é segredo”), donde se conclui que “fica sendo” apenas “sonho”, já que não é mais “segredo”. A canção termina novamente com o verbo ser no sentido afirmativo: “Araçá Azul é brinquedo”. A rima constante em “edo” (segredo, se/n/do, medo, cedo, brinquedo) ainda ecoa no verso “Com fÉ em DeUs”. Brinquedo e Medo são os conceitos opostos, um conotando inocência, familiaridade ou outro mistério, repulsa, assim na consonância desses dois opostos se concretiza essa fruta exótica: brinquedo e o nome mais belo do medo. O nome “Araçá Azul” começa com vogais abertas e termina numa sonoridade fechada e ressonante: A - A - A - UL, nesse jogo aberto e fechado está colocada analogamente a condição das características opostas mas unidas da fruta exótica que representa, ao fim e ao cabo, a conceituação de fruto proibido.