As revoltas de escravos da Roma antiga e o seu impacto sobre a ideologia e o discurso da classe dominante sobre a escravidão: os casos das revoltas da Sicília e de Espártaco
Introdução
A revolta de Espártaco tem despertado por gerações a imaginação e o interesse de artistas e cientistas sociais, além de se configurar num símbolo da luta pela liberdade, inspirando, inclusive, movimentos políticos modernos. A relevância deste estudo de caso é evidente, na medida em que a figura de Espártaco e o movimento liderado por ele tornou-se tão popular com a formação da Liga Espartaquista ou Liga Spartacus em 1915, fundada por Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin, na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial e intervindo na crise revolucionária nascida desse processo dramático e inspirada pela Revolução Russa de 1917, uma revolução socialista feita pelos trabalhadores operários e camponeses, liderados pelos bolcheviques e, em especial, Lênin e Trotsky. Isso serviu para popularizar esta revolta de escravos da Antiguidade principalmente no movimento socialista, tendo sido objeto de estudo de vários historiadores soviéticos, desde o período stalinista. Ainda foram escritos romances como o Espártaco, de Howard Fast, escritor de diversos romances de conteúdo político, publicando em 1952 a história dos escravos rebeldes contra Roma, depois de ter atuado junto de sindicatos e movimentos antifascistas e de ter sido preso durante o McCartismo, recebendo o Prêmio Stálin da Paz em 1953. Em 1960, a história da luta do exército espartacano contra a República Romana chegou a Hollywood, com o filme épico de Stanley Kubrick – Spartacus. Em 2004 foi feita uma refilmagem do clássico numa versão para a TV. A figura do herói, do libertador, do símbolo de coragem na luta pela liberdade contra a escravidão está no nosso imaginário. Por si só já estaria justificado um estudo científico sobre um fato histórico tornado um mito não só antigo, mas para o mundo moderno. Mas ainda temos diversos estudos históricos sobre o tema, o que nos permite estabelecer um diálogo fecundo no interior da própria comunidade científica, desmistificando alguns dos elementos que foram popularizados.
A doutora Sônia Rebel apresenta-nos um balanço dos trabalhos desenvolvidos pela historiografia soviética acerca do tema e tenta em sua tese A visão dos letrados sobre rebeliões de escravos no mundo romano: uma abordagem semiótica de fontes literárias discutir os elementos ideológicos presentes nesses trabalhos publicados durante o regime stalinista na URSS. Junto a isso, analisa as fontes de época na tentativa de discutir a contradição da figura do escravo tratado socialmente como coisa e ser humano, sendo, ao mesmo tempo, um ser humano e uma mercadoria. O trabalho de Sônia Rebel servirá de base para as nossas análises em confrontação com o estudo elaborado e publicado pelo historiador soviético Serguei Ivanovich Kovaliov em sua Historia de Roma, discutindo as divergências e as complementaridades dos dois textos.
O presente trabalho, no entanto, pretende ir além da revolta de Espártaco comparando-a com outra grande revolta de escravos da Antiguidade a revolta da Sicília, neste caso, a primeira revolta, que foi liderada por Euno. A partir das fontes, apresentaremos como os autores retrataram essas duas lideranças e comparando assim a sua atuação, o seu papel enquanto líderes militares, políticos e religiosos. Perceber as semelhanças e diferenças entre essas duas revoltas é fundamental, principalmente no que diz respeito à atuação da classe dominante da República Romana que, apesar da gravidade da Primeira Revolta de Escravos da Sicília, onde os rebeldes tomaram o governo da ilha e estabeleceram um novo governo, chegando a escravizar os seus antigos senhores, não agiu da mesma maneira que da Revolta de Espártaco. Ao derrotar os espartacanos, Crasso mandou crucificar os prisioneiros, seis mil segundo as fontes, ao longo da estrada que vai de Cápua a Roma para que servissem de exemplo aos demais escravos que por acaso pensassem em aderir a uma nova rebelião. Bem diferente da revolta de Euno, quando, apesar da gravidade, a classe dominante teve o cuidado de não destruir forças produtivas desnecessariamente, reconduzindo os rebeldes derrotados novamente à produção. A aristocracia romana utilizou uma lógica econômica e foi cautelosa até mesmo no que refere à aplicação de uma punição na justa medida. Na revolta de Espártaco, o medo que o exército rebelde provocou sobre os proprietários ao percorrer a Península Itálica e quase conseguirem escapar por duas vezes, primeiro pelo norte e depois pelo sul o que levaria milhares de escravos para fora da Itália, ameaçando o próprio sistema escravista pelo exemplo ou o mau exemplo do ponto de vista da aristocracia para os demais escravos do império, gerando novos focos de rebelião e tentativas de fuga em massa, tendo acontecido algo parecido durante a revolta da Sicília, sendo que, neste caso, os resultados poderiam ser absolutamente imprevisíveis. As fontes apontam para a existência de um plano do exército rebelde, em determinado momento da guerra, de marchar sobre Roma. Enfim, neste caso, era muito mais importante reprimir com o mais absoluto rigor para a manutenção da dominação política e econômica da nobilitas e para a sobrevivência do Império Romano que, além de seus conflitos internos, tinha vários inimigos externos que poderiam se aproveitar de uma grave crise. Desse modo, o massacre do exército espartacano não foi uma loucura, obedecendo, antes de mais nada, a um cálculo de riscos.
É sempre importante lembrar a escassez de dados que temos à nossa disposição e sua natureza. Na verdade, trabalhamos aqui com os escritos dos ideólogos da classe de proprietários de terras e de escravos da antiga Roma. Falar do ponto de vista dos escravos, operando com as fontes produzidas pelos escravistas é, sem dúvida alguma, um desafio enorme. Mas é essa a nossa proposta e que exige trabalho árduo, espírito crítico, uma metodologia adequada, o recurso à teoria como forma de projetar luz sobre o objeto e uma abordagem inteligente, criativa e erudita, além de imaginação. Aqui não se trata de inventar como na arte, mas também não podemos trabalhar com uma concepção cientificista, no sentido positivista, nem com uma abordagem empirista. Einstein já dizia: “Imaginação é mais importante que conhecimento”. Com essa sentença ele não pretendia negar o caráter objetivo e de busca da verdade presente na ciência ou dizendo de outra forma de uma explicação convincente e coerente com a realidade, pelo menos da forma mais aproximada possível. No entanto, faz-se necessário entender que devemos sempre tentar abordagens originais e no caso das ciências sociais trabalhar de forma associada com a filosofia, como já alertava Lucien Goldmann. Temos que ir além dos fatos aparentes e levantar mais e mais questões que explorem as possibilidades das fontes, sem em nenhum momento imputar-lhes questões que não podem ser nelas encontradas. Perceber as nuanças do texto para tentar apreender a realidade na qual aquele texto foi produzido e a realidade dos sujeitos que as produziram e os que não as produziram, mas que estão a elas relacionados.
Outro problema existente no nosso caso é o fato de não termos um corpo que comprove o crime por nós investigado e se não há crime sem corpo, torna-se bastante difícil não só a comprovação das hipóteses e problemas formulados, mas a comprovação da existência de um problema, porque a primeira coisa que é preciso ser comprovada é se estamos tratando de ficção ou de realidade. O corpo de Espártaco nunca foi encontrado. Não temos registros arqueológicos sobre o objeto por nós investigado. Não temos dados estatísticos e arquivos disponíveis em abundância como é bastante comum para a confecção de um trabalho de História Moderna ou de História Contemporânea. O que temos são unicamente os textos. E os textos foram escritos por homens que falavam de um lugar social determinado. E diante da inexistência de textos produzidos pelos próprios escravos relatando aquelas revoltas para que pudéssemos comparar e chegar às nossas conclusões a partir da confrontação das diferentes visões acerca dos eventos que pretendemos investigar, só nos resta olhar atentamente e criticamente as fontes que temos em mãos e dissecá-las, analisar cada dado apresentado no texto, tentando perceber a intencionalidade por trás da sua presença ou raciocinar sobre o porquê das escolhas feitas, dos fatos lembrados e registrados e daquilo que é admitido e que se confronta com os valores dominantes, o que aparece mesmo que de relance. Isso foi muito importante na elaboração das hipóteses levantadas neste trabalho. Sobre a realidade ou não do acontecimento relatado para o qual não temos provas materiais que o confirmem, podemos inferir sobre o seu acontecimento a partir do medo provocado na classe dominante romana, não só pelo que aparece nos textos, como também pelas suas conseqüências como as reformas do Principado que regulamentavam as relações entre senhores e escravos, agora arbitradas pelo Estado e com a concessão de certos direitos aos escravos. Não parecem ser textos moralizantes, tendo sido sim um fato que se inseria num contexto específico de crise da República Romana, com as disputas entre as distintas frações da classe dominante, com as lutas políticas, e as guerras externas, sendo um ambiente que favorecia o surgimento de revoltas de escravos na proporção dos casos estudados.
Dissertar sobre o tema com a qualidade e originalidade pretendidas mostra-se bastante difícil, devendo-se tecer cada palavra, cada frase com cuidado e zelo, confeccionar o texto com a habilidade de um artesão para que tenhamos como produto final não só uma pesquisa de qualidade como também um trabalho bem elaborado, composto de um belo texto. Beleza e elegância devem ser objetivos a serem perseguidos em nossa empreitada. A uma pesquisa histórica não basta ter dados ou teses; tem que ter sangue. A ciência histórica é a ciência do homem. É a existência humana no tempo, suas lutas, seus sonhos, suas lágrimas, seus pensamentos, seus sentimentos. A história só estuda aquilo que realmente aconteceu. Mas faz parte do drama humano aquilo que poderia ter sido também, o que deixou de ser, o que se deixou de fazer. Se nos propomos a fazer uma história dos vencidos, temos que ser mais audazes, porque a história escrita é efetivamente escrita pelos vencedores. Se nos propomos a falar do ponto de vista dos de baixo, das bases, dos explorados, dos oprimidos, temos que usar nossa crítica e nossa imaginação, sem jamais perder a objetividade, porque isso favorece muito mais a opção de se fazer uma história dos vencidos, pois, afinal, a história também é feita de mentiras. E quantas mentiras não foram cem, mil, cem mil vezes contadas até que chegassem para nós como a verdade mais genuína. O uso da teoria na análise histórica cumpre aqui um papel fundamental no sentido de desvelar o conteúdo social real presente nas obras e não aquilo que era pretendido pelo autor, orientado por sua ideologia, pela sua visão de mundo. Temos que saber interpretar as interpretações que chegam a nós na forma de fontes. É a partir da teoria que formulamos nossas perguntas, consciente ou inconscientemente. Melhor que seja consciente, então. No nosso caso, fizemos a opção teórica pelo marxismo, entendendo-o como uma ferramenta importante para ajudar a esclarecer alguns problemas, a partir do ponto de vista por nós explicitado, presentes nos textos. Queremos descamar o objeto abordado. Penetrar em cada camada e seguir numa sequência lógica o caminho a ser percorrido pelo nosso raciocínio, compreendendo passo a passo o tema escolhido, de acordo com o recorte feito. Começamos falando do símbolo que se tornou Espártaco. Aqui o desafio é chegar o mais perto possível do homem que foi Espártaco, do homem que foi Euno, do homem que foi Crasso, do homem que foi Pompeu, Júlio César, Otávio e os irmãos Graco. Os homens de carne, osso e sangue que fizeram essa história, que tomaram parte nessa tragédia, que protagonizaram o drama da existência humana numa luta de vida e morte, entre escravidão e liberdade, às margens do mar Mediterrâneo, com os pés banhados por esse mar, pelas praias e campos, pelas lavouras de trigo, entre os vinhedos e oliveirais, com os corpos repletos de sangue e suor e as mentes cheias de sonhos e esperanças, de objetivos e valores legados pela tradição. Uma história feita por idéias e músculos. Uma história feita de limites e possibilidades.
As fontes levantadas para esta tarefa hercúlea, que tivemos acesso até o momento são os textos de Apiano e Plutarco, presentes na coletânea de Thomas Wiedemann, Greek and Roman Slavery, onde temos Crasso, das Vidas Paralelas, de Plutarco, e Guerras Civis em Roma, de Apiano, sobre a revolta de Espártaco, e os relatos de Diodoro sobre a revolta de escravos da Sicília também presente nesta coletânea. Na tese de Sônia Rebel também podemos encontrar as mesmas fontes traduzidas, assim como no trabalho de Ciro Flamarion Cardoso, na coletânea de fontes e comentários críticos em Trabalho compulsório na Antiguidade. Na obra de Peter Garnsey, Ideas of Salvery from Aristotle to Augustine, encontramos fragmentos de Aristóteles e Sêneca, com suas posições divergentes sobre a escravidão, com a defesa de Aristóteles da teoria da escravidão natural e a reflexão de Sêneca, séculos mais tarde durante o Principado, sobre a necessidade de se estabelecer uma relação harmônica entre senhores e escravos, sem uma defesa do fim da escravidão, mas ponderando sobre a brutalidade excessiva empregada pelos senhores e condenando tal atitude, reivindicando, e isso é o mais importante, a humanidade dos escravos. Ao analisar as fontes, pudemos encontrar o reconhecimento da humanidade dos escravos nos textos de Apiano, mas principalmente em Plutarco. O autor de Crasso em um dado momento reconhece o valor dos escravos rebeldes, sua coragem na luta, igual a dos romanos, segundo suas próprias palavras. Essa breve observação do autor assume grande importância para a nossa pesquisa, levando-nos a conclusões interessantes e que parecem se confirmar se contextualizarmos o momento do texto, no início do Principado, e as mudanças ocorridas nos planos social, político e ideológico, sendo a filosofia estóica bastante difundida nos primeiros séculos do regime imperial, combinada com o reconhecimento de alguns direitos aos escravos. Sendo assim, desenvolvemos a nossa hipótese com base nessas observações.
A hipótese central desta pesquisa é de que apesar de terem sido derrotadas militarmente, as grandes revoltas servis da Roma antiga serviram para pôr em xeque a teoria da escravidão natural, a visão do escravo como simples animal ou coisa, representada no discurso oficial, provocando mudanças no discurso da classe dominante e na sua forma de perceber os escravos, produzindo mesmo uma fissura no plano ideológico, por se tratar, pela primeira vez, da afirmação patente na realidade da humanidade desses homens brutalmente escravizados, não podendo mais, apesar dos esforços feitos no sentido de reafirmar a inferioridade natural dos escravos pelos ideólogos da aristocracia romana, impedir que os escravos obtivessem essa importante vitória simbólica. Talvez não possamos falar de uma substituição em absoluto da teoria da escravidão natural de Aristóteles pelo discurso estóico, visto que os escravos continuaram a ser mercadorias e a serem encarados como tal, mas foi produzida uma fissura, talvez este seja o termo mais preciso, no discurso ideológico da classe dominante. E aquilo que já era percebido no plano individual, nas relações diretas entre determinado senhor e determinado escravo, nas relações concretas, particulares, que era que o escravo era um ser humano, com as vitórias do exército espartacano sobre o exército romano e a tomada do poder de Estado na Sicília pelos escravos rebelados e as demonstrações de coragem e inteligência de suas lideranças e em muitos casos, como afirmou timidamente e rapidamente Plutarco, a própria base desse exército, os soldados recrutados entre os homens mais brutos, da classe mais baixa, os trabalhadores das lavouras, os escravos dos ergástulos, e também os gladiadores que matavam e morriam para o divertimento dos cidadãos, sendo considerados seres inferiores e vis esses escravos que trabalhavam nos espetáculos. Ainda havia os escravos pastores que gozavam de uma liberdade de movimentos que os senhores e seus ideólogos não consideravam muito boa, até por não estarem submetidos ideologicamente à classe dominante da mesma maneira que os escravos domésticos ou dos escravos urbanos em geral, sendo, por isso mesmo, bastante pequena a participação de escravos de tipo urbano nas revoltas relatadas.
As pesquisas realizadas até o momento não nos permitem ir, de forma segura, muito além disso, mas podemos e faremos comentários acerca da relação dessas revoltas com o advento do Principado, tentando compreender o contexto geral no qual se insere o nosso objeto, relacionando as guerras servis com o surgimento do cesarismo e o impacto delas nas mudanças ocorridas na política e que levaram às reformas que cumpriram o papel de regular as relações sociais no Alto Império. Relacionar as revoltas com as disputas políticas entre optimates e populares em fins da República e com as guerras civis no todo e as guerras externas travadas por Roma naquele momento histórico específico. Entretanto, as fontes levantadas até o momento não nos permitem ir muito além de alguns comentários, da possibilidade e da necessidade de se levantar algumas questões relevantes para o nosso tema e da construção do contexto em que pretendemos investigar e comprovar a nossa hipótese central. Desse modo, queremos restringir nossa análise ou, pelo menos, privilegiar a análise do impacto dessas revoltas na ideologia dominante, no seu discurso e na sua efetividade. As rebeliões de escravos da Sicília e da Itália provocaram um terremoto na sociedade romana. É improvável que terremotos não deixem sequer rachaduras, sem falar no rastro de destruição e pavor que provocam. E esta fissura e a interpretação dos novos discursos acerca da escravidão no Alto Império como uma fissura e provocada precisamente pelo levante dos escravos rebeldes é o que pretendemos comprovar.
Retomando o que dissemos acerca da necessidade da teoria, apontamos os autores que consideramos essenciais para a discussão que pretendemos fazer e para a qual contaremos com a ajuda das elaborações e conceitos presentes em Finley, Marx, Gramsci, Lukács, Ciro Flamarion Cardoso, Theotônio dos Santos e Lucien Goldmann, além de vários outros autores, em sua maioria marxistas, que auxiliarão nesta difícil empreitada. A partir de uma ampla e profunda discussão teórica e conceitual, pretendemos aliar o empírico e o teórico, o particular e o geral, buscando enxergar além do que as fontes apresentam e fazer uma história que não é só uma coletânea de narrativas ou de peças de museu, mas que busca aprofundar a compreensão que temos de cada momento particular da história humana e a compreensão mesma do que vem a ser isso que chamamos de humano. Os laços que nos unem nisso que chamamos de humanidade através do desejo e da necessidade de sobreviver e de gozar da vida plena e da liberdade. A luta pela liberdade foi uma constante na história, sem dúvida, e talvez por isso a história da revolta de Espártaco ainda inspire homens e mulheres do mundo todo até os dias de hoje.
O diálogo com as fontes
Esta é a história de homens que lutaram contra as probabilidades. Homens e mulheres que apostaram suas vidas num lampejo de consciência e de esperança e fizeram uma escolha, diante da situação de extrema opressão e de superexploração, aproveitando uma oportunidade. A compilação dos relatos, sua contextualização e crítica têm por objetivo se não reconstituir exatamente a realidade vivida e da qual só restam impressões, interpretações e fragmentos, um quebra-cabeça com peças faltando, pelo menos dar uma visão aproximada do real, uma explicação mais plausível acerca daqueles eventos dramáticos. Queremos pintar um cenário que contemple nossas angústias e interrogações, com cores vivas e que reflitam o quadro desenhado pelas relações sociais existentes na Itália dos séculos II e I a.C. Queremos retratar o chão em brasa por onde passaram, caminharam e lutaram os Euno e Espártaco. Perceber a disposição das personagens nesse palco e fazê-lo com o diálogo das fontes com os nossos próprios pressupostos e buscando interrogá-las da maneira correta.
Partimos de uma premissa: a de que a ideologia escravista, tal como havia sido formulada por Aristóteles, perdeu sua eficácia enquanto instrumento de dominação dos proprietários sobre os escravos e enquanto instrumento de coesão social. Com isso, as idéias de Sêneca sobre a humanidade dos escravos ganha relevo enquanto discurso integrante de uma nova forma de dominação social, como parte do conjunto de novos instrumentos político-ideológicos desenvolvidos pela aristocracia romana, no regime do Principado, para assegurar o seu domínio de classe. Cito agora o fragmento que nos levou a essas conclusões:
“Esta foi a mais dura batalha de todas. Ele (Crasso) matou 12300, e apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas: todos os outros tinham morrido permanecendo em seus postos e lutando como romanos.” Plutarco, Crasso, Ch. 11.3 (WIEDEMANN, 1981, p.219)
“Permaneceram em seus postos como romanos”, é isso que diz Plutarco em seu relato. Esta não é uma declaração qualquer. Os escravos eram considerados inferiores por natureza. Quando que um escravo seria comparado a um homem livre, e ainda mais um cidadão romano? Mas a coragem desses escravos na luta fez com que eles merecessem o devido o reconhecimento. Além do mais, ainda existe o sincero espanto desses homens que estão escrevendo sobre as guerras servis ao se deparar com fatos que se coadunam com o seu sistema de crenças, mas que estão ali diante de seus olhos. É interessante quando o autor diz: “apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas”. Então, somente uma ínfima minoria acovardou-se e tentou fugir, enquanto todos os outros permaneceram lutando. E isto num momento em que Crasso teve de reintroduzir uma punição ancestral para os soldados que demonstrassem indisciplina, pois soldados romanos fugiram do exército de Espártaco ao serem derrotados em batalha. Ou seja, na verdade, eram os soldados cidadãos romanos que estavam com um terrível medo daquele exército de escravos, tendo que seu general mostrar-se ainda mais temível que o inimigo para manter a disciplina entre as tropas. A punição consistia na execução de um homem em cada dez a cada vez que fosse derrotado, era um castigo cruel, que estava em desuso na época, conhecido por dizimação, tendo sido dizimados cerca de 4 mil soldados do exército romano. Através das execuções, o general romano fez com que seus homens recobrassem sua coragem, diminuindo o número de deserções, conforme aumentava a pilha de cadáveres. Os escravos combatentes encontraram sua valentia na esperança de voltarem a viver como homens livres e, por isso, lutaram desesperadamente, com a coragem do desespero, com a coragem de quem luta quando está encurralado à beira do abismo. Morrer como homens livres ou viver como escravos; morrer como seres humanos ou sobreviver como animais; lutar e morrer livres ou viver uma vida inteira de torturas e sofrimentos; morrer empunhando a espada ou viver carregando as correntes. A única alternativa era vencer ou morrer; de uma forma ou de outra, romperiam os escravos rebeldes os seus grilhões. Assim, a tese da inferioridade natural dos escravos desmoronou com as grandes revoltas de escravos. Esta foi uma vitória simbólica de grande envergadura. No entanto, devemos ser menos apressados em nossas conclusões. Por isso, poremos em discussão outros autores e faremos a análise de outros fragmentos que sustentem ou neguem nossa hipótese.
O ponto do qual precisamos partir é o seguinte: os escravos eram mercadoria, comprados e vendidos como coisas, sofrendo castigos físicos iguais aos de animais e submetidos a um trabalho árduo até o seu esgotamento de suas energias para a maioria deles, eles não tinham direitos políticos nem cidadania, eles eram considerados inferiores aos cidadãos livres. Sendo assim, isso naturalmente deveria se refletir nos relatos dos autores antigos. O exército de escravos era retratado como sendo indisciplinado (em oposição ao ideal militar romano de disciplina, coragem, excelência), mas, ao mesmo tempo, o talento do general Espártaco era reconhecido, ainda mais na medida em que criava um distanciamento em relação aos seus comandados, o que mantinha a análise dentro do discurso escravista tradicional, pois homens que não fossem escravos por natureza poderiam ser escravizados por produto do acaso (o caso mais emblemático foi o do grande filósofo Platão, vendido como escravo por força das circunstâncias).
“Ao mesmo tempo, Espártaco, um trácio de nascimento, que no passado tinha servido como soldado com os romanos, mas tinha posteriormente sido aprisionado e vendido como gladiador, e estava na escola preparatória de gladiadores em Cápua, persuadiu aproximadamente setenta de seus companheiros a lutar por sua liberdade ao invés de divertir os espectadores. Eles dominaram os guardas e fugiram, armando-se com clavas e adagas e refugiaram-se no Monte Vesúvio.” Apiano, As Guerras Civis, XIV, 116 (ARAÚJO, 1999, p.212-213)
É importante notar a observação feita por Apiano de que havia sido Espártaco um soldado do exército romano, ou seja, aprendeu com os romanos as táticas de guerra e os valores romanos, como forma de explicar o seu talento enquanto soldado e general, e apresenta seu aprisionamento e venda como um escravo gladiador quase como um acidente de percurso em sua trajetória de vida. Isto é, um homem que fosse um escravo por natureza não poderia ser jamais um líder da envergadura de Espártaco, que foi, assim como Aníbal e Átila, dos poucos homens que realmente abalaram e aterrorizaram os romanos. Ele foi, sem dúvida, um dos maiores inimigos enfrentados pelo maior império da Antiguidade, tendo sido necessária a mobilização dez legiões romanas, comandadas por três generais – Crasso, Lúculo e Pompeu – para que chegasse a sua derrota definitiva. É importante lembrar que pouco antes da batalha final ocorreu uma das mais duras e sangrentas batalhas de toda a guerra, na qual os rebeldes lutaram com toda a coragem, como pudemos ver pelo fragmento do texto de Plutarco. Este último autor também irá destacar outra qualidade do general dos escravos, apontando-o como um líder militar e religioso:
“Depois de ocupar uma posição naturalmente forte, elegeram três chefes, o primeiro dos quais foi Espártaco, um trácio de raça nômade. Ele não era só inteligente e forte: pela sabedoria e pela moderação, ele valia mais do que a sua sorte e era mais grego do que a sua origem. Diz-se que, da primeira vez que o conduziram a Roma para vendê-lo, viu em sonho uma serpente enrolada em torno de seu rosto. A mulher de Espártaco, sua compatriota, que era advinha e sujeita a transportes inspirados por Dionisos, explicou-lhe que se tratava de um presságio importante: o de um poder grande e terrível que lhe daria um fim infeliz.” Plutarco, Crasso, 8 (ARAÚJO, 1999, p.215)
As qualidades de Espártaco são novamente destacadas. O líder dos escravos é considerado um homem inteligente e forte, o que não eram qualidades reconhecidas em escravos. O aspecto religioso não é secundário, na medida em que uma característica presente nas lideranças das sociedades tribais é o dom mágico. Aqui a revolta de Espártaco aproxima-se não só em seu conteúdo, como também em sua forma, da Primeira Guerra Servil, ocorrida na Sicília, e liderada por Euno, a quem eram imputados dons sobrenaturais, pois teria ele a capacidade de prever o futuro através de seus sonhos e fazia truques mágicos. Os autores ainda condenavam as atitudes dos senhores de escravos e das autoridades pelos excessos cometidos contra os escravos como um dos fatores geradores das revoltas.
“Devido ao seu caráter obstinado e selvagem, não havia um só dia em que esse mesmo Damófilo não torturasse algum de seus escravos sem uma causa justa. Sua esposa Matallis (Megalis) tinha igual prazer nesses castigos que estavam sob sua jurisdição com grande brutalidade. Em conseqüência desses castigos humilhantes, desenvolveu-se nos escravos um sentimento de bestas selvagens em relação aos seus amos, e achavam que nada do que pudesse lhes acontecer seria pior do que o mau estado em que se encontravam.” Diodoro, 37 (WIEDEMANN, 1981, p.203)
No que se refere ao caso dos rebeldes liderados pelos gladiadores de Cápua, uma vez mais, aparecem as injustiças do proprietário como um importante fator gerador da rebelião:
“(...) guerra de Espártaco, sua eclosão foi assim. Um certo Lêntulo Vátia, mantinha gladiadores em Cápua, em sua maior parte gauleses ou trácios; a causa de sua detenção não eram suas más ações, e sim, a injustiça de seu comprador, que os forçava a combater na arena. Duzentos deles resolveram fugir, mas foram denunciados. Os primeiros a saber da delação se adiantaram, em número de setenta e oito, armados com facas de cozinha e espetos roubados de um restaurante, deixaram Cápua” Plutarco, Crasso, 8 (ARAÚJO, 1999, p.213-214)
Além das injustiças e dos castigos excessivos, muitas vezes os senhores não forneciam o mínimo para a subsistência dos escravos, como acontecia na Sicília à época da revolta liderada por Euno, o que era condenado por Diodoro, que via a raiza da guerra servil nos vícios dos próprios senhores, que, na sua opinião, teriam caído na luxúria, sendo, além disso, orgulhosos e denunciava os exagerados maus tratos. A isso era somada a corrupção dos administradores que, diante do poderio dos grandes proprietários, não repreendiam esses excessos. O mínimo não era garantido aos escravos, que eram incentivados a roubar e a matar as pessoas que viajavam pelas estradas da Sicília. Nos escritos de Diodoro isso aparece de forma bastante nítida:
“Deram essa liberdade [de roubar] a homens que devido a seu poder físico eram capazes de pôr em prática qualquer coisa que planejassem fazer, (...) homens que devido à falta de comida eram forçados a empreitadas arriscadas, e isso logo levou a um aumento da taxa de crime. Começaram matando pessoas que estavam viajando só ou em pares, em lugares especialmente afastados. Depois reuniram-se em grupos e atacaram as fazendas (...) à noite, pilhando seus domínios e matando quem resistisse. Eles tornavam-se cada vez mais ousados e a Sicília deixou de ser passagem à noite para os viajantes (...) Todos os lugares foram atingidos pela violência e roubo e assassinato. Mas pelo fato de os pastores estarem acostumados a dormir ao ar livre e estarem equipados como soldados, estavam (não surpreendentemente) cheios de coragem e arrogância.” Diodoro, 28, 29 (WIEDEMANN, 1981, p.201)
O historiador Ciro Flamarion Cardoso destaca alguns fragmentos de Diodoro e Apiano, expondo o desenvolvimento das duas rebeliões escravas. De Diodoro, Cardoso retira o seguinte fragmento:
“...Pouco depois o pretor Lucius Hypsaeus chegou de Roma e encontrou-os numa batalha à frente de 8000 soldados mobilizados na Sicília. Os rebeldes, agora somando 20000, venceram, e dentro de pouco tempo seu exército cresceu para 200000 homens. E eles ganharam renome em muitas batalhas com os romanos e cometeram poucos erros. Quando a notícia disto chegou ao exterior, explodiram revoltas de escravos em Roma (onde 150 conspiraram contra o governo), em Atenas (acima de 1000 envolvidos), em Delos e em muitos outros lugares. Mas os funcionários governamentais logo as suprimiram nos diversos lugares com pronta ação e terríveis torturas como punição, de modo que outros que estavam a ponto de revoltar-se caíram em si. Mas na Sicília o mal continuava aumentando – cidades foram tomadas pelos rebeldes e seus habitantes escravizados, e muitos exércitos foram despedaçados pelos rebeldes –, até que o general romano Rupilius recuperou Tauromenium para os romanos depois de pôr-lhe estreito sítio... (...)” (CARDOSO, 1984, p.142-143)
Neste fragmento, podemos ver a dimensão alcançada pela rebelião servil da Sicília, ao ponto dos revoltosos tomarem cidades, derrotarem o exército romano em diversas batalhas e o mais importante: a revolta transbordou a ilha, alastrando-se para outras regiões, gerando, a partir do seu exemplo, outros focos de rebelião de escravos, que foram imediatamente sufocados. Isso nos dá uma dimensão do justo temor da classe dominante romana com relação à revolta de Espártaco que, ao contrário desta, se deu no continente, na própria Itália. A rapidez com que cresceu a revolta e a grande adesão que ela teve também são destacadas pelo autor. Logo em seguida, Ciro Cardoso apresenta-nos um quadro da revolta de Espártaco, conforme fora pintado pelo escritor grego, Apiano, na sua História das Guerras Civis Romanas, no livro I, capítulo XIV (116-120):
“...Crasso tentou de todas as maneiras dar combate a Espártaco, para que Pompeu não pudesse colher a glória da guerra. O próprio Espártaco, pensando antecipar-se a Pompeu, convidou Crasso a entender-se com ele. Quando suas propostas foram rejeitadas com desprezo, ele resolveu arriscar uma batalha, e como sua cavalaria havia chegado, avançou com todo o seu exército através das linhas do exército que lhe fazia cerco, e avançou para Brundusium com Crasso perseguindo. Quando Espártaco soube que Lúculo acabara de chegar a Brundusium da sua vitória contra Mitridates, perdeu toda esperança e trouxe suas forças, que eram então muito numerosas ainda, para perto das de Crasso. A batalha foi longa e sangrenta, como era de se esperar de tantos milhares de homens desesperados. Espártaco foi ferido na coxa por uma lança e ajoelhou-se, segurando seu escudo à sua frente e lutando assim contra seus atacantes até que ele e a grande massa dos que com ele estavam foram cercados e mortos. O resto de seu exército entrou em pânico e foi massacrado maciçamente. Tão grande foi a matança que se tornou impossível contar os mortos. Os romanos perderam mais ou menos mil homens. O corpo de Espártaco não foi achado. Muitos dos seus homens fugiram do campo de batalha para as montanhas, onde os seguiu Crasso. Eles se dividiram em quatro grupos, e continuaram a lutar até que todos pereceram, com exceção de seis mil que foram capturados e crucificados ao longo de toda a estrada de Cápua a Roma.” (CARDOSO, 1984, p.143-144)
Este fragmento é bastante revelador. Em primeiro lugar, nele podemos perceber as disputas políticas do período de fins da República, quando Crasso corre para acabar de vez com aquela guerra, que já estava sendo humilhante por ser contra um exército de escravos, antes que Pompeu, seu adversário político naquele momento, obtivesse ainda mais essa glória, pois trazia de volta a Roma o triunfo sobre Sertório na Espanha. Ele havia vencido uma guerra verdadeira e humilharia ainda mais Crasso por não conseguir derrotar sequer um bando de escravos. O texto parece apontar uma tentativa de Espártaco de aproveitar-se das contendas entre os membros da classe dominante da República Romana, onde fala da proposta de acordo de Espártaco para Crasso, antecipando-se a Pompeu, e tentando evitar a morte certa frente ao cerco de três generais romanos e nenhuma saída, nenhuma rota de fuga viável. É importante salientar que o objetivo da revolta sempre foi a fuga, nunca foi uma guerra em que se pretendia derrotar Roma, e estando as saídas bloqueadas, a diplomacia parecia um caminho viável. Mas no texto de Apiano aparece também um Crasso obstinado, concentrado em derrotar o mais rápido possível o exército de escravos, evitando uma humilhação ainda maior. O acordo com Espártaco provavelmente destruiria a carreira política do nobre general; afinal, para a opinião pública, Espártaco era um bandido que devastou fazendas, saqueou, favoreceu a fuga de escravos e espalhou o terror na Itália, desse modo, Crasso não poderia negociar com ele. Além das disputas internas da República, no texto aparece em sua integralidade o contexto no qual estava inserida aquela revolta ao comentar a chegada de Lúculo para reprimir a rebelião da sua campanha vitoriosa na guerra contra Mitridates. Assim, a guerra servil de 73-71 a.C. foi favorecida pelo momento conturbado de lutas políticas e guerras externas. Apiano ainda nos mostra um Espártaco que resolve encarar a impossível batalha diante da inexistência de qualquer outro subterfúgio e, principalmente, por ter sido frustrada a possibilidade de acordo com Crasso. No decorrer da batalha, os rebeldes lutaram bravamente, é o que indica pelo menos a menção em seu relato de uma batalha “longa e sangrenta”, visto que os rebeldes estavam em desvantagem em relação aos romanos. A explicação do autor é de que foi produto da luta empreendida por milhares de homens desesperados. Ao retratar a morte de Espártaco, que teria morrido heroicamente lutando junto com aqueles que estavam com ele, talvez os mais próximos do grande líder dentro exército rebelde e que lutaram bravamente, assim como ele, mas os demais, como os escravos que são, ficaram apavorados e fugiram. É claro que o autor teve de relatar que mesmo depois da fuga, os escravos seguiram na resistência, fazendo guerra de guerrilha contra o exército romano, até que fossem mortos ou capturados. A punição dada aos prisioneiros também é espantosa por causa do grau em que foi empregado o terror. Foram seis mil crucificados ao longo da estrada que vai de Cápua, região onde se iniciou a revolta, a Roma, a capital do império, para que servisse de exemplo para os demais escravos, pois muitos escravos da Itália aderiram aos rebeldes durante a revolta. O grau de perigo para a classe dominante, o medo sentido pela aristocracia, influenciou no grau em que foi empregada a tática do terror. O terrorismo de Estado romano foi empregado em larga escala e de uma maneira qualitativamente superior ao que ocorrera na primeira guerra servil.
Observando os relatos, podemos perceber as contradições presentes no discurso, com os autores alternando entre o reconhecimento dos valores dos escravos revoltosos, o reconhecimento de sua coragem e da coragem e inteligência de suas lideranças, e o reforço do discurso oficial de inferioridade natural dos escravos, ressaltando todas as suas características negativas. Apesar disso, insistimos na tamanha importância da fissura provocada no discurso da classe dominante. Isto pode ser percebido de maneira mais clara se comparamos os escritos de Aristóteles com os de Sêneca já durante o Principado. É importante situarmos os nossos autores no tempo e no espaço. Apiano era um grego de Alexandria e um cidadão romano, que escreveu seus textos no século II d.C. Plutarco foi outro intelectual grego, de Queronéia, viveu entre a segunda metade do século I d.C e a primeira metade do século II d.C. Ele foi sacerdote de Apolo em Delfos e era de tendência filosófica platonista. Diodoro da Sicília escreveu sobre a revolta de escravos liderada por Euno no século I a.C, um século depois do acontecimento daquela revolta. Os dois autores que seguem também foram intelectuais de grande envergadura. Aristóteles foi um dos maiores filósofos da Grécia antiga, o aluno mais brilhante de Platão e o preceptor de Alexandre, o grande. Já Sêneca era um filósofo estóico e foi o principal conselheiro de Nero. O estoicismo teve uma influência muito grande no pensamento e na política romanas no primeiro século do regime imperial. Comparemos agora o discurso aristotélico acerca da escravidão, a teoria da escravidão natural, e as novas concepções desenvolvidas pelos estóicos e que influenciavam fortemente os chefes de Estado romanos no Principado, em especial o próprio imperador. Aristóteles afirmava o seguinte sobre os escravos:
“Qualquer ser humano que, por natureza, pertença não a si mesmo mas a outro é, por natureza, escravo; e um ser humano pertence a outro sempre que fizer parte da propriedade, ou seja, uma parte da propriedade que é um instrumento para a ação de seu senhor.” Política 1254 a 4-18 (GARNSEY, 1996, p.108)
E Aristóteles segue em sua Política explicando as diferenças entre os que por natureza são senhores e os que por natureza são escravos:
“A natureza distinguiu os corpos do escravo e do seu senhor, fazendo o primeiro forte para o trabalho servil e o segundo esguio e, se bem que não útil para o trabalho físico, útil para as ocupações de cidadão. Contudo, o contrário muitas vezes acontece – isto é, escravos que tenham corpos de homens livres e homens livres que tenham as almas apenas”. Política 1254 b 28-34 (GARNSEY, 1996, p.108)
Por último, o filósofo justifica a própria instituição escravidão e considera justa a escravização de homens que sejam por natureza escravos:
“A arte da guerra é uma forma natural de aquisição de propriedade, na qual está incluída a caçada; e que esse modo deve ser usado contra as bestas selvagens e contra os homens que, por natureza, devem ser governados, mas se recusam a isso; porque esse é o tipo de guerra que é justo por natureza”. Política 1254 b 20-5 (GARNSEY, 1996, p.112)
Em oposição à teoria da escravidão natural de Aristóteles, os estóicos pregavam que “cada bom homem é livre, e cada mau homem é um escravo”, tendo se popularizado bastante essa tese no século I d.C, durante o Alto Império. O reconhecimento da humanidade dos escravos era parte integrante desse discurso:
“Eles são escravos”, as pessoas declaram. Não, eles são homens. “Escravos”. Não, eles são despretensiosos amigos. “Escravos”. Não, eles são seus camaradas-escravos, se refletir que a fortuna tem direitos iguais tanto sobre escravos como sobre homens livres.” Epistulae 47.I, IO (cf.17) (GARNSEY, 1996, p.67)
Os estóicos reconheciam a humanidade dos escravos e pregavam uma relação harmônica entre eles e seus senhores. Isso não quer dizer que os estóicos fossem antiescravistas. Eles defendiam a escravidão, não propunham a abolição desta instituição nem nada do tipo. Mas entendiam, e isso fica evidente nos escritos de Sêneca, que deveriam ser coibidos os excessos, devendo-se tratar os escravos de forma humana, mas exigir que cumprissem o seu papel. Na verdade, seria uma relação harmônica, de companheirismo, mas onde cada um cumpriria o seu papel, ocuparia o seu lugar na sociedade, assumindo uma postura humilde, no entanto, pois para os estóicos o fato de alguém se encontrar na condição de escravo não queria dizer que não fosse um homem livre em sua alma. As noções de liberdade e escravidão obedeciam aqui muito mais um caráter moralista, tinha a ver com virtude e com ser ou não ser escravo de suas paixões, como é apontado no fragmento a seguir:
“É um erro de quem acredita que a condição do escravo penetra em todo o ser do homem. A melhor parte dele é isenta disso. Apenas o corpo está à disposição do senhor. A mente, no entanto, é seu próprio senhor. De beneficiis 3.20.I (GARNSEY, 1996, p.66)
Conclusão
As grandes rebeliões de escravos do mundo antigo ocorreram num curto período de tempo, durante a crise da República Romana. Entretanto, seria praticamente impossível que eventos de tamanha magnitude não tivessem quaisquer conseqüências. Procuramos apontar as contradições presentes nos relatos acerca dessas revoltas e em que medida elas refletem não só o que representou para a classe dominante romana aqueles acontecimentos, o seu impacto sobre sua consciência, como as reformas do Principado no sentido de reconhecer certos direitos aos escravos, não podendo mais os senhores matar a qualquer momento os seus escravos sem o consentimento do Estado ou deixarem de prover o mínimo como roupas e alimentos, tal como ocorria na Sicília anterior á Primeira Guerra Servil.
Apontamos o espanto dos maiores intelectuais do Império Romano diante dos atos de bravura dos escravos rebeldes e como eles se esforçavam em tentar manter intacto o discurso escravista, sem sucesso, no entanto, tendo sido atropelados em suas concepções pela própria realidade social. É importante registrar, por outro lado, que estes intelectuais já refletiam os novos tempos e que informavam em seus relatos a parcela de culpa dos próprios senhores no surgimento das rebeliões, defendendo relações mais harmônicas e um tratamento mais justo e até mesmo humano em relação aos escravos.
O reconhecimento do valor dos líderes das revoltas tinha um elemento progressivo de reconhecimento de características de cidadãos em chefes de exércitos de escravos, mas também criavam um abismo cada vez maior entre a massa dos escravos e suas lideranças, apresentando os últimos quase como exceções.
As guerras servis foram tão grandiosas que forçaram a classe dominante romana – a nobilitas patrício-plebéia – superar as suas várias divisões entre ordens jurídicas, frações de classe e grupos políticos para agirem de forma unificada na repressão daqueles movimentos. E a nobilitas assim o fez para garantir o bom funcionamento do modo de produção escravista baseado na escravidão-mercadoria e no grande latifúndio, que teve um primeiro impulso com a Lei Petélia Papíria no século IV a.C. e que assumiu a forma de produção e de dominação existente no período das rebeliões servis, a partir da Segunda Guerra Púnica. Era o seu próprio domínio que estava em jogo e, naquele momento, sob o regime republicano. A República estava em perigo. A paz para os senhores gozarem tranquilamente dos frutos da escravidão estava em perigo. Por isso, as medidas mais duras foram tomadas pelo Senado e pelos melhores generais de Roma.
Ainda assim, o período em que ocorreram essas revoltas foi permeado por severos conflitos no interior da classe dominante. A Primeira Revolta da Sicília (135-132 a.C.) coincidiu com a disputa entre Tibério Graco e a oligarquia senatorial. E os conflitos entre optimates e populares seguiram e acompanharam a eclosão das rebeliões de escravos.
O objetivo deste trabalho é o de demonstrar o quanto que os levantes de escravos impactaram a sociedade romana, forçando a uma reformulação dos mecanismos político-ideológicos de dominação social, modificando o discurso sobre a escravidão no sentido de regular as relações entre os amos e os escravos e de coibir excessos que pudessem levar à eclosão e radicalização de insurreições de escravos. O novo discurso ideológico e as novas leis, acompanhados de um novo aparato político de Estado, surgido do conflito no interior da classe dominante, que configurou o regime do Principado, com o fim das disputas políticas encarniçadas e um período de relativa paz externa, o ambiente para aquelas revoltas deixou de existir.
Os escravos de Roma agiram de maneira profundamente humana, ao rejeitarem, por completo, a condição de animalidade à qual lhes foi relegado e com suas demonstrações de coragem frente ao perigo e de astúcia frente às dificuldades tornou-se impossível ignorar a sua condição humana. Os maus tratos e as torturas eram parte integrante do tratamento conferido aos escravos. Mas a ausência de quaisquer direitos, o arbítrio ilimitado dos senhores cessara, pelo menos, oficialmente, e, com certeza, atenuara-se de fato. Do fogo da luta nasceram homens. Homens que entraram para a história como tal e que afetaram o mundo em que viveram e assim provaram que existiram.
Bibliografia
 ARAÚJO, Sônia Regina Rebel. A Visão dos Letrados sobre Rebeliões de Escravos no Mundo Romano: Uma Abordagem Semiótica de Fontes Literárias. Volumes I e II. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1999.
 CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade, Crise Política e Discurso Histórico – Literário na Roma Antiga. In: Phoînix/ UFRJ. Laboratório de História Antiga. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
 _________________________e BIGNOLI, Héctor Pérez. El Concepto de Classes Sociales. San José, Costa Rica: Editorial Nueva Década, 1982.
 ________________________. “Economia e Sociedade Antigas: Conceitos e debates”. In: Sete Olhares sobre a Antiguidade. Editora UNB, 1994.
 FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Trad: Guarinello, Norberto Luiz. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1991.
 GARNSEY, Peter. Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. Nova Iorque. Cambridge University. Press, 1996.
 GOLDMANN, Lucien. Ciências Humanas e Filosofia. Tradução: Lupe Cotrim Garaude e J. Arthur Giannotti. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
 GRAMSCI, Antônio. Antología. Seleção, tradução e notas de Manuel Sacristán. In: Antologia de Textos Teórico-metodológicos sobre a Política. Org. Ciro Flamarion Cardoso.
 KOVALIOV. História de Roma. Tomo II. Buenos Aires: Editorial Futuro, 1959.
 MARX, Karl. Formações Econômicas pré- capitalistas. Introdução: E. Hobsbawn. Tradução: João Maia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1975.
Fontes primárias (seleção):
1 – Fontes disponíveis de forma impressa em Thomas Wiedemann. Greek and Roman Slavery. Diodoro Siculus, com os relatos da revolta da Sicília; Plutarco, em Crasso, que representa um dos principais relatos da revolta de Espártaco; e Apiano, em Guerras civis em Roma, outro importante relato de um contemporâneo da revolta de Espártaco.Baltimore, EUA: The Johns Hopkins Press, 1981.