Valesca de Assis: habilidades múltiplas

O passeio entre dois gêneros literários ou entre suas nuances nem sempre se dá de maneira satisfatória. Seja pela limitação despercebida do escritor ainda imaturo, seja pelas tentativas frustrantes e sem resultados claros, adultos e jovens ou romances e crônicas parecem fronteiras mais do que suficientes para repensar as técnicas narrativas e descobrir caminhos que levam ao mesmo destino. Nesse ponto – em que as técnicas são repensadas antes de aplicadas – destaca-se o trabalho da escritora gaúcha Valesca de Assis.

Educadora, filósofa, autora premiada e ministrante de oficinas literárias no Rio Grande do Sul, Valesca de Assis desperta a atenção por duas características que, embora interdependentes, se complementam na busca dos efeitos que aparentemente pretendem alcançar. Se o ensaísta e escritor mexicano Carlos Fuentes define a Literatura como o exercício idiossincrático da imaginação e da linguagem, Valesca de Assis sabe desempenhar maduramente os artifícios de que dispõe para transformar a linguagem em degrau de uma escada consistentemente construída.

A verificação dessa afirmação ocorre em duas de suas obras. A premiada “Harmonia das esferas”, romance destinado ao público adulto, mas que não contém nenhum empecilho aos leitores de todas as idades, narra a história de um casal, passada na Porto Alegre dos anos de chumbo da ditadura. Quem ultrapassa as dez primeiras páginas e se adapta à linguagem trabalhada para causar, nos moldes semelhantes em alguns trechos de Clarice Lispector, uma angústia pela relação conturbada dos protagonistas, se atém aos amantes que, em momentos de loucura, são capazes de se valer de artifícios pouco ortodoxos para encerrar o passado e retirar suas faíscas do centro da memória.

Numa leitura superficial, o uso de explosivos para mandar pelos ares e pelas águas uma ilha do Guaíba parece inverídico, mas, em um segundo momento, as iniciativas e práticas militares durante o regime de exceção beiravam o sem sentido, que certamente surpreenderia Kafka.

A linguagem de efeitos psicológicos e nem sempre fluida de “Harmonia das esferas” cede lugar a uma narrativa linear, corrente e empolgante em “Vão pensar que estamos fugindo!”, destinado ao público infanto-juvenil e publicado no ano passado por ocasião das comemorações dos duzentos anos da chegada da família real ao Brasil.

De situações hilárias e de fatos que prendem a atenção do leitor numa viagem pelos subúrbios da história brasileira, “Vão pensar que estamos fugindo!” vale como material pedagógico imprescindível para lançar na sala de aula, de maneira pedagogicamente eficaz, as discussões frugais e humanas que permearam a vida da nobreza que se instalava em nosso país. Dessa maneira, os longos discursos de exaltação das figuras públicas abrem espaço para as análises das vidas privadas.

Pela condução da linguagem e pela destreza no exercício do foco narrativo, Valesca de Assis deve se instalar na bibliografia dos que pretendem uma leitura divertida, mas não fútil, das relações amorosas e das angústias particulares dos personagens públicos.

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de outubro de 2009.

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.