Menino-balão: o que somos?

Wilson Correia*

Há, entre nós, o entendimento sobre a infância no qual consideramos que, por não destilar a malícia adulta, a criança portaria o inusitado que se identifica com a pureza, com a autenticidade, com a sinceridade, com a honestidade, com o real e com o verdadeiro. Um bom emblema dessa compreensão é o famoso conto sobre “As roupas novas do rei”, de autoria do poeta e romancista dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), as quais (as roupas), não existindo, tiveram sua inexistência denunciada por um menino esperto, que ousou apontar o dedo e dizer: “O rei está nu!” (ANDERSEN, 1978, p. 113). Aquele que não fala a dizer o que o adulto (não) é.

Mas também convive com essa primeira visão sobre a infância uma outra provocada por nossa relação instrumental, pragmática e interesseira com os novatos, a qual parece ter subvertido a concepção de infância como guardiã da verdade. Nessa segunda trilha, há entre nós a ideia de criança como extensão da malícia adulta, sobretudo quando ela é mobilizada como porta-voz (caixas de som?) de pais, professores e de outros líderes aboletados no trem pretensamente seguro de nossa adultecência sapiente, senhora de si, autônoma e independente. De um modo ou de outro, essa segunda criança continua a dizer o que o adulto (não) é. Às avessas, como eu disse.

Curioso como o caso estadunidense do “menino do balão”, sintomaticamente ocorrido lá nos Estados Unidos da América do Norte, fartamente noticiado pela grande imprensa, de certa maneira, sua genitora, expressam as duas abordagens anteriores sobre a infância.

Leio na FolhaOnline de hoje, 24.10.2009, que as investigações sobre o caso do menino que estaria dentro de um balão garantem que o casal Richard e Mayumi Heene, pais do garoto, “planejou o trote e instruiu os três filhos a mentir para a mídia sobre a farsa que havia sido planejada duas semanas antes para que o evento tivesse ainda mais cobertura”, uma vez que “a família já havia participado de dois ‘reality shows’ na televisão e queria apenas mais uma tentativa de estrelato” (FOLHAONLINE, 24.10.2009). Aliás, logo depois do ocorrido o próprio garoto, Falcon Heene, 6 anos de idade, denunciou: “Você [pai] disse que fizemos isso para um programa" (FOLHAONLINE, 19.10.2009). O rei continua nu? A família real está nua?

O garoto anderseniano parece invencível. Mas o mais importante, penso eu, é atentar para o que isso significa. E, aqui, lembro de um livro que li há alguns anos, de autoria de Enrique Rojas, intitulado “O homem moderno: a luta contra o vazio”, em edição brasileira de 1996. Segundo Rojas, o “homem light” moderno é aquele que estaria metido no cultivo de alguns “valores”, tais como o “materialismo”, sob a tirania do dinheiro; o “hedonismo”, a boa vida nem sempre qualificada pela vida boa; a “permissividade”, que é o divórcio entre liberdade e responsabilidade; a “revolução sem finalidade nem projeto”, em que a ética egóica substitui a ética da reciprocidade; o “relativismo”, no qual o subjetivismo não reconhece o diferente, o outro, com o qual se pode estabelecer laços e vínculos mais razoáveis, mais saudáveis, de liberdade e justiça compartilhadas; o “consumismo”, que é o entendimento de que o financeirismo é o mais alto grau a que o humano pode chegar para se sentir feliz e realizado.

Mas esses “valores” indicados por Rojas, aqui relidos por mim, talvez não estejam subsistindo sem seus incólumes pilares, entre eles: o lucro pelo lucro, a acumulação pela acumulação, o individualismo pelo individualismo, a competitividade pela competitividade e o instrumentalismo (exploração) do humano por outro humano com uma finalidade em si mesmos, ao largo da ideia kantiana de que o homem não pode ser usado por outro por ter um valor em seu próprio ser.

Esse caldo ético do “eu a qualquer preço”, numa sociedade do espetáculo como a que erigimos, em que ser visto pode ser um caminho aberto para a mercadorização de si e de tudo ao redor, tornou-se um prato cheio para o infante anderseniano: que ele não se entupa dos discursos adultos para deixar escapar seu espanto: o homem e a mulher atuais, confinados em si próprios, rifadores da própria dignidade e alheios a qualquer noção de respeito ao outro, à boa-fé dos circundantes, não apenas estão nus, mas carentes e desamparados, miseráveis, inumanos, em pêlo e pele expostos aos raios do “eu por mim”, “ninguém por nós”, “ninguém por ninguém”, “cada um por si” – ainda que o olhar alheio continue a ser a possível roupa de que me revestirei para manter o respiro.

Aí o outro apenas como um objeto, uma ponte, um instrumento que uso, indiferente ao que ele possa sentir ou pensar sobre meu olhar grudado em meu próprio umbigo. Por isso, desconfio que o homem e mulher atuais continuam vazios, por dentro e por fora, exatamente porque se esvaziaram de qualquer senso humano e humanitário compartilhado – exatamente aquele no qual eu poderia me fazer, me reconhecer, e não por ser isso uma obra autônoma, mas uma via de mão dupla, que permitiria ao outro o mesmo processo de humanização porque estendido até mim, ao que sou e posso vir-a-ser.

Que a infância amiga da verdade não tenha pena de nós e que ela continue a nos dizer o que (não) somos! Quem sabe assim uma hora dessas a gente não acorde para um estilo existencial mais interessante e que valha a pena, fundado nos valores do “nós” e do “nosso”, esses dos quais, por mais que lutemos em contrário, jamais poderemos fugir?

Bibliografia

ANDERSEN, H. C. “Contos de Andersen”. Trad. Guttorm Hanssen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 1008-113.

FOLHAONLINE, 19.10.2009. “Pais de ‘menino do balão’ irão se entregar à polícia, diz advogado”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u640094.shtml>. Acesso em: 24.10.2009.

FOLHAONLINE, 24.10.2009. “Mãe de menino do balão admite que equipamento foi projetado para fraude”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u642721.shtml>. Acesso em: 24.10.2009.

KANT, I. “Fundamentação da metafísica dos costumes”. Trad. A. P. de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1964.

ROJAS, E. “O homem moderno: a luta contra o vazio”. Trad. W. Dupond. São Paulo: Mandarim, 1996.

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br