A POSTURA ÉTICA NÃO ESTÁ À MERCÊ DO MUNDO


          A chamada "crise dos valores morais", que se expressa no cotidiano não só do Brasil como no resto do mundo é o desaparecimento do dever-ser frente ao fortalecimento do dever-ter, e do bombardeamento que sofremos de falta de decoro e de compostura nos comportamentos individuais e na vida política. É o que sociólogos de linha durkheimiana, frente ao desamparo dos indivíduos nas escolhas morais, chamam de anomia. "Isto é, a desaparição do cimento afetivo que garante a interiorização do respeito às leis e às regras de uma comunidade" (CHAUI, 2007, P. 488).
          Mas esta não é uma crise inédita. A história humana é permeada de
crises, de adversidades, sendo próprio da condição humana. E um dos
principais exemplos de conduta ética está na Antiguidade, na figura de Epicuro. Ele é quem melhor representa a ética antiga porque suas atitudes sempre foram pautadas pela ética.
          A sua obra é extremamente atual, porque ensina o virtuosismo pessoal
mesmo em tempos de adversidades e introduz a dimensão do dever-ser. O homem não estaria à mercê do mundo e por isto poderia estabelecer a sua rota, a sua meta de vida plena e correta.
          A importância de Epicuro na construção do conceito de ética se justifica pelas idéias tão atuais como se escritas para nossos dias. Poucos filósofos foram tão caluniados e mal interpretados e ao mesmo tempo tão venerados com tanta veemência como ele o fora. Ensinava filosofia à moda grega em sua casa, em seu jardim, que ficaria conhecido na História da Filosofia como o Jardim de Epicuro, pleno de discípulos das cidades e ilhas vizinhas; e entre eles não faltavam mulheres, como Temistia e Leontina, célebres filósofas da época. Haja vista que as mulheres podiam também participar da escola, já que
ela se fundava na solidariedade e na amizade dos seus membros. As amizades epicuristas foram famosas em todo o mundo antigo pela sua nobreza.
          Em seu jardim, o mestre influenciava não só pelo seu ensino, mas por
seu exemplo e modelo de conduta, pois apesar de seus sofrimentos físicos devido a sua doença (cálculos renais), era gentil e amável com todos, inclusive com os escravos, cultivando amizades e auxiliando os que necessitavam. Tal fato fazia com que todos que o conheciam raramente se afastassem de seu convívio. O vínculo entre os discípulos e seu mestre, se baseava na philia - amor/amizade à sabedoria, amor à verdade.
          Para Epicuro, a filosofia "deveria servir ao homem como instrumento de
libertação e como via de acesso a verdadeira felicidade" (Os Pensadores - EPICURO, 1988).
          Cabe ao homem conseguir o domínio de si mesmo. O autodomínio exige que se libere das falsas crenças pela busca do conhecimento da realidade, bem como a posição do homem neste contexto.
          Tal pensamento se enquadra perfeitamente na mentalidade emergente de nossos dias.
          Sua filosofia continua extremamente importante em dias atuais porque
em grande parte a sua ética é um ensino de virtuosismo pessoal, para que se possa ser feliz, ser sereno e ter prazer mesmo na adversidade. Em Epicuro, o prazer estava intimamente ligado à moderação, à ausência da dor, à tranqüilidade, à busca da amizade, tudo comedido prudentemente.
          Mesmo o grego não sendo mais cidadão e sim súdito do império macedônico, ainda que em momentos de repressão e cerceamento da liberdade pública, há todo um universo a ser conquistado e a ser trabalhado que é o universo interior, como um processo de libertação pessoal.
          Epicuro afirmava que mesmo em tempo de adversidades o homem pode
e deve ser feliz, pode e deve procurar o prazer, porque ele nasceu para a felicidade e para isto está destinado. Ele mostra, porém, que este prazer, este bem que agora é um bem no sentido estritamente pessoal, tem de ser conquistado distante das turbulências da sociedade e do universo político, porque a grande nau que tem de ser pilotada, é agora a nau interior. Se o homem está buscando saúde, tem de ser a saúde da alma, conquistada pelo afastamento da ignorância e pelo afastamento das crendices.
          O uso de uma sabedoria, de um conhecimento comprovável que aclara
a vida interior, tira todos os obscurantismos e faz com que o homem, a partir do conhecimento da natureza das coisas, possa se posicionar, compreender sua própria dimensão, o seu papel no universo.
          Para isto, Epicuro propôs um programa de auto-administração, de auto
comando da nau interior, que parte do esclarecimento feito pela ciência e pela compreensão da natureza das coisas. Porém, esta libertação que o conhecimento iluminador permite, é também associado à procura e à valorização permanente do prazer, onde ele afirmava e exemplificava que o homem não existe em função do sofrimento, por ser uma contingência que não determina a vida do homem.
          A grandeza e a virtude estão em autodeterminar-se apesar do
sofrimento, que aparentemente surge como uma fatalidade, mas que o homem consegue vencer pela sua postura íntima. Ele ensina uma ética que é testada em situações extremas, não somente em situações difíceis na vida, mas também em situações iminentes de morte. Para Epicuro, o homem pode viver e morrer feliz e sereno. Isto é feito através da auto-gestão de si mesmo, que é a meta que ele propõe, ou seja, uma independência interior.
          Para o mestre, o homem não está condenado ao sofrimento, pois ele
será feliz ou não, alegre ou triste dependendo de como ele administra-se interiormente. Epicuro prova sua tese constantemente, através de palavras e textos, mas, sobretudo através de uma conduta de vida.
          A ética de Epicuro se fundamenta primeiro no conhecimento, no
apoio à razão, na recusa ao obscurantismo e à crendice, na colocação do mundo como algo na dimensão da compreensão humana. O universo está dentro da possibilidade de compreensão da medida humana, sendo que o mundo é mensurável pela racionalidade do homem e pode ser medido pelos sentidos e pela razão. É o conhecimento que afasta tudo que é obscuro ou intangível, fazendo com que tudo possa ser compreendido, pois tudo, desde homens à própria Natureza, são explicáveis racionalmente.
          O jardim de Epicuro era como um centralizador de ensino e sabedoria,
que emanavam permanentemente cartas, textos e diversos escritos, porque era fundamental que a philia fosse alimentada o tempo todo por uma conversação direta, oral ou à distância por cartas e escritos, para que as pessoas continuassem nesta busca.
          No epicurismo, o direito à felicidade, ao bem e à plenitude de vida, a
uma cidadania plena e indiscriminada, não era limitado como na democracia de Atenas séculos antes, pois na democracia ateniense havia restrições. Embora houvesse a liberdade de elaborar leis, de discuti-las ou de modificá-las, eram apenas alguns que podiam fazer este trabalho: os homens maiores, nascidos em Atenas e não escravos. Mas em Epicuro, o direito à serenidade, o direito ao
prazer sereno, o direito à felicidade eram abertos a qualquer um, ou seja, a qualquer homem, mulher, estrangeiro, época, local ou raça.
          O epicurismo é uma filosofia que ultrapassa as limitações e imposições
sócio/culturais e se propõe como um empreendimento para qualquer tempo.
          Daí a permanência da proposta epicurista ao longo dos séculos e é por isso que ela chega até nossos dias com tamanha atualidade.
          Para Epicuro, é preciso que a razão, que dá cobertura à compreensão
que o homem tem dele próprio, seja uma razão que explique o mundo, mas ao mesmo tempo explique o homem, como um ser capaz de recusar a ordem instituída neste mundo, ciente de que os valores universais que regem o pensamento ético abram espaço para a sua postura enquanto escolha ou estabelecimento de normas de vida.
          Mas ética exige mais do que um mecanicismo, exige uma racionalidade
flexível, para que nela caiba o homem com os seus projetos e seus ideais. A ética pressupõe um dever ser, uma norma, uma meta, pressupõe sempre alguma coisa que não é apenas de fato, mas que de direito se propõe a ser de outra forma, ou seja, a existência do bem, a existência de um processo de conquista de virtude, de uma estilística que direciona a vida do homem para onde o homem deseja. Para Epicuro, o homem é o inventor, o ator e o portador do dever ser,
acima das imposições sociais e culturais.
          Para este mestre, o homem não é um ser passivo diante do mundo ou um reflexo das circunstâncias, não está à mercê das contingências; mas ao contrário, é alguém capaz de dar respostas diferenciadas diante das contingências, por isso mesmo pode estabelecer o seu itinerário, a sua meta, a sua postura ética no mundo. O homem pode contrapor-se, pois ele não é apenas um reflexo das circunstâncias.
          Uma das máximas de Epicuro, talvez a mais importante, é que não há
adversidade externa que decida o projeto ético pessoal. Em qualquer
circunstância, política, social ou econômica, a dimensão pessoal da felicidade, do prazer, da busca do bem, da busca da serenidade, é uma tarefa exclusivamente subjetiva, intransferível e que só pode ser feita por cada um, mas no apoio dos que se aproximam do mesmo ideal e dos que se propõem, juntos, "no jardim" de qualquer época, buscar esse tipo de vida, criar esse tipo de existência.
          Para Epicuro, a felicidade não é alguma coisa natural e espontânea, ela
é uma conquista, é decisão. É o resultado de um exercício diário, uma
incessante luta de autodomínio, de auto-libertação, de criação do espaço da sua autonomia e de busca permanente do seu prazer sábio e sereno.
          O objetivo de uma teoria ética é determinar o que é bem, tanto para o
indivíduo como para a sociedade como um todo. Daí a razão da filosofia
epicurista se fazer presente em vários períodos da história.
          O epicurismo se encaixa tanto na universalidade dos princípios éticos quanto na chamada "ética de situação".
          O viver pelo prazer, em Epicuro, estava intimamente ligado à
moderação, à ausência da dor, à tranqüilidade, à busca da amizade, tudo prudentemente comedido.
          Transportando para nossos dias, a busca da felicidade ainda é inadvertidamente epicurista, pois o homem busca a justiça, a amizade e evita perturbações para alcançar a serenidade de uma vida feliz.
          Busca-se o tempo todo o prazer; o homem estuda, trabalha, aprimora-se para ter um futuro próspero e promissor, para ter prazer no conforto, nas viagens, no lazer, na sua realização pessoal e dos seus entes queridos. A saúde física e mental é almejada para que se evite a dor e sofrimentos tanto físicos quanto emocionais, porque a busca é pelo prazer livre de dor e perturbações.
          Epicuro exaltava o prazer como algo necessário para o sentir-se bem,
mas prescrevia a moderação e a sensatez para se alcançar a felicidade, a liberdade e a paz, como um verdadeiro sábio.
          Destes ensinamentos da Antiguidade, porém muito atuais, de uma
postura ética pessoal e busca de felicidade individual, nos deparamos hoje, com a necessidade de uma postura ética de alcance global e emergencial, pois vivemos uma época onde tanto atitudes individuais quanto coletiva colocam em risco toda a vida na Terra.
          Interagimos também com a diversidade cultural, devido à globalização,
onde se faz necessário uma vivência de respeito às diferenças e convivência pacífica entre os povos, na busca da soma de valores ao invés da divisão de interesses. A ética pessoal ou mesmo de grupo deve dar lugar agora, a uma ética de alcance planetário, ou nas palavras de Edgar Morin, "uma ética da Humanidade, de compreensão e solidariedade planetárias, pautada na consciência da identidade humana comum na diversidade individual, cultural e lingüística" (MORIN, 2005, p. 163).
          Sobre a ética de Morim... fica para outro artigo.




Imagem: Epicuro/oiluminador.blogspot.com









 
SIMONE SIMON PAZ
Enviado por SIMONE SIMON PAZ em 24/10/2009
Reeditado em 24/04/2019
Código do texto: T1883758
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