Área natural protegida. Uma cesta básica para o desejo de consumo ocidental.
Introdução
No mesmo compasso em que a modernidade assumia como sua base produtiva a revolução industrial, em 1872 se concretizava a idéia do primeiro parque nacional moderno, Yellowstone. Esse espaço protegido foi criado sob a concepção de “ilhas de conservação” (DIEGUES, 1994, p. 5), com incomparável beleza cênica que deveria ser apreciada e reverenciada pelo homem urbano-industrial. Esta relação se desenhava com o pressuposto da separatividade e adoração diante da majestosa natureza.
Nos anos que se seguiram, outros parques foram se instalando no mundo, com aquele compasso original já alterado, perdendo para o ritmo mais acelerado da expansão da agricultura, da pecuária, da industrialização e da urbanização. Aproveitando este cenário da modernidade, onde o Capital e o Modelo de Parque (área natural protegida) vieram se formando como ícones desse tempo, este ensaio quer explorar uma problemática que não estava em pauta na gênese do ícone Parque: - Como as áreas protegidas podem satisfazer às necessidades sociais, econômicas e políticas das sociedades? Este questionamento se faz relevante, uma vez que naquele momento de afirmação do movimento histórico da modernidade, ainda não havia compreensão dos benefícios futuros de se pensar em proteger os recursos naturais, que somente mais tarde, seriam reivindicados pela sociedade. Barzeti sintetizou em 1993 esse situação quando comentou que estas áreas protegidas passaram, desde os primórdios da modernidade, a ser parte integrante e essencial do desenvolvimento integral dos países, assegurando às sociedades um contingente de benefícios econômicos, culturais, educativos e espirituais.
Os gestores desses espaços protegidos destacam a dificuldade de se transpor o benefício fundador do conceito de proteção da natureza: o estético da beleza cênica, para um benefício bio-sócio-cultural mais amplo, resulta de um desconhecimento, por parte da sociedade, das funções e dos múltiplos benefícios que estes espaços proporcionam para todos os setores dessa sociedade, de forma direta ou indireta.
O hiato criado entre o homem e a natureza, ratificado através do ato de preservar ou conservar um espaço natural, impedindo a presença desse “homem destruidor da natureza” (DIEGUES, 1994, p. 5), no interior desses espaços desembocou numa política preservacionista que acabou por transformar estas áreas em propriedade ou espaço público, distante da dinâmica histórica bio-sócio-cultural, rati-fcada por Colchester (2000, p. 225) quando afrmou que “a idéia de que a humanidade está separada da natureza parece estar profundamente enraizada na civilização ocidental.”
O estabelecimento dos parques ou similares para uso público reduziu esses espaços relacionais a instrumento de realização de desejos econômicos, gerando caminhos sem fim e sem saída. Esse ensaio quer trabalhar com a hipótese de que: A única forma de superar essa concepção trágica do desejo humano de separatividade homem-natureza é o reconhecimento do outro, enquanto outro, no desejo solidário, de cooperação e de inclusão daqueles que perderam seu direito de habitar seu espaço, até então “desprotegido” de suas próprias ações de conservação.
O DESEJO E O CONSUMO ECONÔMICOS DAS ÁREAS PROTEGIDAS
A História da Modernidade reduziu os caminhos concretos de reconhecimento bio-sócio-cultural das Áreas Protegidas a arena econômica, introduzindo estes espaços numa competição econômica, isto é, em uma acumulação do patrimônio e/ou ostentação do consumo. Assim, ao longo da história moderna ocidental foi se desenhando aquilo que a socio-logia caracteriza como algo distintivo do nosso tempo: a cultura do consumo. (FREATHERSTONE, 1995, p. 121) disse que “usar a expressão ‘cultura de consumo’ significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea” e que, na dimensão cultural da economia, o poder do simbólico e o uso de bens materiais são fisiologicamente como elementos comunicantes, e não como utilidades. Assim, é possível compreender a partir de Canclini (1995, p. 80), que as Áreas Naturais Protegidas fazem parte do “consumo que constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade”.
Tomando-se o consumo como critério fundamental na construção da identidade no processo de comunicação social, (CANCLINI, 1995, p. 80), defendeu ser este fenômeno um ordenador fundamental do desejo na sociedade, logo do desejo de natureza. Acrescentou ainda que nenhuma sociedade suporta incertezas de significados para seus elementos construtivos. As Áreas Naturais Protegidas que outrora carregavam apenas o ícone de propriedade pública necessitaram ter seu reconhecimento, seu significado ou ressignificado para a sociedade. Porém, se confrontou com o modelo econômico hegemônico da era moderna e que acabou por influenciar a construção das Áreas de Proteção da Natureza como estrutura e desejo constituintes de uma mercadoria, aliado a um consumo que vem servindo também para uma ordenação política conservacionista da sociedade. O consumo destes espaços protegidos se constituiu em um processo no qual o desejo se converteu em demanda e atos socialmente regulados.
O questionamento que se desenhou para a redução das Áreas Protegidas em Espaços Públicos de Consumo Econômico foi: Por que não consumir economicamente estas áreas ricas em recursos? Se o consumo é a medida de uma identidade social bem-sucedida e o caminho do reconhecimento destas áreas como patrimônio da humanidade é ser uma área de simples consumo econômico, então, nenhuma aquisição e sensação emocionalmente agregadas à idéia de Parque Nacional têm qualquer chance de trazer a satisfação dos desejos fundamentais que nortearam a criação destes espaços protegidos. Neste sentido, o reducionismo sob forma de realização do desejo humano quer reconhecer as Áreas Naturais Protegidas como produto econômico, podendo construir um caminho sem fm e sem saída. Daí vem a hipótese em que este ensaio se fundamenta: A única forma de superar essa concepção trágica do desejo humano de separatividade homem-natureza é o reconhecimento do outro, enquanto outro, no desejo solidário, de cooperação e de inclusão daqueles que perderam seu direito de habitar seu espaço, até então “desprotegido” de suas próprias ações de conservação. Para testar esta hipótese é pertinente visitarmos Arruda (2000, p. 279), que argumentou sobre o Modelo de Unidade de Conservação dizendo que “a idéia que fundamenta este modelo é a de que a alteração e domesticação de toda a biosfera pelo ser humano são inevitáveis, sendo necessário e possível conservar pedaços do mundo natural em seu estado originário, antes da intervenção humana.”
Dentro dessa fundamentação do modelo Guha (2000, p. 96-7) defendeu que os direitos dos povos que vivem nas florestas dos países do Sul, onde esses ambientes foram tombados como protegidos, o que excluiu a vida humana, ainda que ajustados aos jargãos da ciência da conservação. Para Guha o não reconhecimento do outro (enquanto outro daquele espaço protegido), a falta de um desejo solidário para com aqueles que há muito cuidam do espaço, de cooperação para com o desenvolvimento bio-sócio-cultural do grupo social envolvido, vem sendo alimentado por uma espécie de “Imperialismo Conservacionista”, e criando “Refugiados Ecológicos”.Como um espinho na ressignifcação econômica das Áreas Naturais Protegidas surge uma instituição como Unidade de Conservação que se comporta como sujeito econômico.
Esse sujeito se torna vazio e impulsiona a subjetivação, não podendo ser preenchida pela idéia de “pré-humanos” selvagens em um universo simbólico da subjetividade humana “civilizada”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crítica desse ensaio à cultura de consumo que se instalou em torno das Áreas Naturais Protegidas não quer vê-las reduzidas a espaços ou simples elementos de consumo, pois haveria um esvaziamento da crítica ao consumo dos recursos naturais como tais. E isso seria uma forma de reducionismo. A crítica, na óptica desse ensaio, quer tratar do fundamento da problemática que desencadeou o atual estado de consumo do espaço protegido: a falta de espaços naturais sadios para serem consumidos, isto é, um baixo nível de consumo de um recurso que foi se escasseando, empobrecendo, no mundo moderno ocidental, principalmente (mercado).
O que se traduz, no movimento de criação de Unidades de Conservação, numa ação solidária de lutas voltadas para aumentar o nível de consumo destas áreas naturais pelas pessoas que engrossam as fileiras de mais uma categoria de carência, os sem áreas naturais, ao lado dos sem terras, sem teto, sem...
Este consumo, da forma que foi proposto, se configura como uma “cesta básica” que quer suprir às necessidades básicas de relação entre o homem e a natureza (belezas cênicas, naturais). Constitui-se como básica porque está somente desenhada para a exploração econômica do aspecto naturalístico da relação e quase nenhum investimento nas relações sócio-culturais que se inscrevem nessa relação básica. O ato de consumir deve proporcionar prazeres sensitivos, sociais e culturais,
se tornando um meio de realização dos desejos, a partir de um produto inovador, talvez uma natureza sem as fronteiras e injustiças criadas pela cesta (invólucro) de um plano de manejo homologado pelos poderes constituintes do mundo moderno hegemônico do capital.
É o momento de arriscarmos o impossível, como dizia ŽIŽEK e DALY (2006). A possível resposta destas Instituições ao capital moderno e globalizado não pode se circunscritar ao Estado Nacional, a formas organizadas da sociedade e a identidades populares, mas deve transcender o capital e o universalismo contido na cultura proibitória do capitalismo moderno – repressão das formas de emancipação do real, que vai além das posturas excludentes e restritivas que têm conseqüências diretas para o futuro da humanidade.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, R. S. V. “Populações Tradicionais” e a Proteção dos Recursos Naturais em Unidades de Conservação. In: DIEGUES, A.C.S. (org.) etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos, 2ed. São Paulo: HUCITEC/NUPAUB-USP; ANNA BRLUME, 2000.
BARZETTI, V. (ed.) Parques y Progresso: areas protegidas y desarrollo económico en américa Latina y el Caribe. Washington; UICN/BID, 1993.
CANCLINI, N. G. Consumidores ciudadanos. Confictos multiculturales de la globalización. México: Grialbo, 1995.
COLCHESTER, M. Resgatando a Natureza: comunidades tradicionais e áreas protegidas. In: DIEGUES, A.C.S. (org.) etnoconser-vação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos, 2ed. São Paulo: HUCITEC/NUPAUB-USP; ANNA BRLUME, 2000.
DIEGUES, A.C.S. o mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NAPAUB – Universidade de São Paulo, 1994.
FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
GUHA, R O Biólogo Autoritário e a Arrogância do Anti-Humanismo. In: DIEGUES, A.C.S. (org.) etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos, 2ed. São Paulo: HUCITEC/NUPAUB-USP; ANNA BRLUME, 2000.
ŽIŽEK, S. e DALY, G. arriscar o impossível – conversas com ŽIŽEK. São Paulo: Marins Fontes, 2006.