A Rede, o Hospital e o Centro Cirúgico - Repensando a Disciplina na Igreja
QUEM SOMOS NÓS? PESCADORES OU CIRURGIÕES? Qual é a natureza da Igreja? Rede, Hospital ou Centro Cirúrgico?
As perguntas acima se justificam. Atuando como examinador de teologia em diversos concílios, toda vez que questiono acerca da disciplina na Igreja, recebo sempre a mesma resposta. “Existem três tipos de disciplinas: a formativa, a corretiva e a cirúrgica” Alguns as nomeiam de forma diferente e outros apresentam listas maiores com quatro ou cinco formas de disciplinas. Porém, todas elas terminam da mesma forma com a tal “disciplina cirúrgica”, que nada mais é que o afastamento, a segregação, ou seja: A exclusão sumária daqueles que transgrediram as normas e as doutrinas da Igreja.
Sei que muitos dirão: Qualquer manual de eclesiologia vai acatar esta tese e mais: A Bíblia também ensina dessa forma.
Não desconheço essas coisas, e eu mesmo já ensinei e até realizei essa “cirurgia”, e conheço pastores que são “especialistas” verdadeiros “cirurgiões”, que de posse do bisturi, vai livrando o corpo (Igreja) dos “tumores malignos”, das “maçãs podres”, dos “pecadores” que não podem permanecer com os “santos”, “puros” e “imaculados”.
No entanto, olhando à luz do evangelho, e da natureza da Igreja, não veja base para continuar afirmando a existência de tal disciplina. Vejo a Igreja como um Hospital (lugar de restauração, de cura e para onde se leva os doentes e onde permanecem os pacientes terminais) e não como um “Centro Cirúrgico” (lugar de cortar, extirpar os membros doentes). Se o Hospital expulsar os doentes, onde mais eles terão chance de cura? Jesus foi enfático: “Os sãos não necessitam de médicos”. É fácil para a Igreja cuidar apenas dos saudáveis, dos “atletas espirituais”, o desafio é cuidar dos enfermos e acreditar que eles podem se recuperar.
Quero desafiá-lo a olhar além da Teologia Sistemática e dos manuais de eclesiologia na busca de uma nova compreensão sobre este assunto tão crucial para a vida da Igreja. Depois de analisar a matéria, cheguei a algumas conclusões que humildemente compartilho com você:
QUAL A BASE DA DISCIPLINA CIRÚRGICA?
Muitas das idéias que professamos e defendemos muitas vezes são absolutamente estranhas ao cristianismo em suas origens. A Bíblia não faz menção a qualquer classificação disciplinar. Os Pais Apostólicos, especialmente a Didaquê se encarregaram de formular regras para serem aplicadas na vida da Igreja, dando início à formalização do moralismo cristão, guindando a necessidade de “testemunho” acima da prática do amor e da misericórdia. O cisma de Novaciano e a crise de Cipriano, tiveram origem no mesmo problema qual seja: O que fazer com os “caídos”, se poderiam ou não ser readmitidos à comunhão da Igreja.
A nossa Herança teológica, no entanto, tem suas origens no Puritanismo que se desenvolveu na Inglaterra, se instalando posteriormente nos Estados Unidos nos Séc. XVII e XVIII e que influenciou a Igreja protestante emergente, especialmente os Presbiterianos, Batistas e Congregacionais e cuja doutrina fundamentalista é sinônimo de rigidez moral e intolerância religiosa. Nesse contexto, se desenvolveu a idéia de “Igreja pura”, cuja principal porta de entrada é o batismo e cujas portas de saída, a carta de transferência, a compulsória (alguns admitem, outros não), a morte e a exclusão.
Muito bem, nesse modelo, a Igreja é formada pelos “santos”, pelos “puros” “lavados e remidos no sangue de Cristo”, pessoas que “morreram para o mundo”, etc. Nessa Igreja não há lugar para os imperfeitos, para “pecadores e publicanos”. Toda essa visão eclesiológica foi forjada nesse contexto e já não faz tanto sentido nos dias atuais.
Acredito, porém que mais do que tudo isso, a base teológica dessa doutrina se encontra numa hermenêutica equivocada de Mateus 18:15-22.
Algumas observações simples nos levam a entender que o texto não fornece qualquer base para a famigerada “disciplina cirúrgica”, uma vez que nem mesmo faz referência a qualquer disciplina no sentido moderno da palavra. A palavra chave que norteia este texto é “ganhar o irmão” e o contexto nos leva ao desafio de perdoar até setenta vezes sete. Veja bem, estamos falando do mesmo texto. Durante toda a instrução, busca-se ganhar/restabelecer o irmão e não extirpa-lo/amputá-lo como se fosse um membro gangrenado para o qual já não resta qualquer esperança.
Ao final de todas as tentativas realizadas, o texto conclui com a sentença “considera-o como publicano e pecador”. Muito bem, que tipo de atitude o texto está recomendando? A exclusão? Creio que não. Precisamos olhar para o texto sem os condicionantes adquiridos por anos de repetições doutrinárias e refletir sobre o seu real significado. Não se pode esquecer que a forma como ouvimos este texto soar fará muita diferença em nossa compreensão e na definição de seu real significado.
Em primeiro lugar, não consigo imaginar que as palavras “publicano e pecador” possam soar da boca de Jesus em termos pejorativos. Jesus jamais se referiu a quem quer que seja de forma preconceituosa. Talvez o som dessas palavras seja mais doce do que jamais imaginamos ouvir, tal como: “considera como se estivesse tratando com alguém que precisa ser ganho pela primeira vez”. Jesus não rejeitou os publicanos nem os pecadores, nem nos ensinou a proceder assim. Pergunta-se: qual deve ser o procedimento da Igreja para com os pecadores (já que não temos publicanos hoje)? Nesse sentido verificamos aquilo que talvez seja a maior das incongruências da Igreja: a Igreja diz que devemos “amar os pecadores”, que devemos “busca-los”, no entanto, parece que existem dois tipos de pecadores, os de fora e os de dentro. O que fazer com estes? Os de fora a Igreja coloca para dentro e os de dentro ela coloca para fora.
EM SEGUNDO LUGAR precisamos refletir acerca da natureza da Igreja para que possamos cumprir a orientação bíblica. Jesus falou do reino como uma “rede”, que ao ser arrastada apanha todo tipo de peixe e continua sendo arrastada até chegar à praia, onde será feita a separação entre bons e maus. A verdade é que ainda não chegamos à praia, e até lá precisamos ter paciência para esperar que os peixes ruins (isto é pequenos, imprestáveis para serem comercializados) cresçam. Ruim aqui não denota a qualidade do peixe e sim o estágio em que se encontra. Jogar o peixe pequeno fora da rede não é atribuição do pescador, segundo o texto será dos anjos.
Além disso, Jesus também se referiu ao reino em termos de “joio e trigo”. Precisamos de uma Igreja que a despeito de tudo que aprendemos até hoje, aceite deixar o joio e o trigo crescerem juntos. Eu sei que nossa primeira atitude (a exemplo dos homens da parábola) é arrancar o joio, para “limpar” o trigo. Sei também que muitos dirão: “A Igreja não pode ser conivente com o pecado”. Sei ainda que é uma tarefa difícil, espinhosa e dolorosa, no entanto, quem disse que teria que ser assim não fui eu. A segunda coisa importante é que a convivência com o joio não fará o trigo deixar de ser trigo, a Igreja é fermento e precisa aceitar a convivência com a massa, a fim de poder levedá-la.
Estou convencido que a doutrina da “disciplina cirúrgica”, não se harmoniza com o ensino exarado em João 6:37. “Todo aquele que o Pai me dá virá a mim, e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”. Sei que muitas questões de ordem exegéticas podem ser levantadas aqui, no entanto, creio que a expressão “de maneira nenhuma” dispensa maiores comentários.
Assim, já não vejo razão para que possamos continuar a dizer que a Bíblia autoriza a Igreja a fazer uso do bisturi, a jogar os peixes pequenos fora e a arrancar o joio. Nas palavras de Jesus, “Deixai crescer ambos juntos até a ceifa” (Mat. 13:30).
Estou convencido que a nossa capacidade de discernir entre o trigo e o joio, entre peixe ruim e peixe bom, entre membro que pode ser curado e membro gangrenado, nos impossibilita de procedermos assim. Deixemos que Deus que tudo conhece se encarregue de “limpar” a Igreja, separar o trigo do joio, e fazer as “cirurgias”, se assim Ele quiser. Só assim, evitaremos o “erro médico” de primeiro operar e depois pedir o exame.