Síndrome da legitimação

Wilson Correia*

A Síndrome da Legitimação (SL) é uma hipótese que levantei após observar, anos seguidos, como determinados grupos se comportam e, no interior deles, como a minoria pode ser tratada pelos componentes desse citado grupo. O termo “síndrome” refere-se aos sintomas que caracterizam determinada doença ou determinado comportamento humano. No fundo, “síndrome” não é algo saudável, espontâneo, natural, benéfico. Já a palavra “legitimação” nomeia o ato de compartilhar justificativas de interesse de membros de um grupo, os quais tomam por autêntico um dado, uma informação, uma idéia, independentemente da veracidade, lógica ou coerência dela. Por isso a SL implica consenso como uma medida de poder em relação ao que beneficie quem compartilhe do pacto, à revelia do bom senso, do bem, do justo, do belo, do virtuoso e do bom.

A SL pode ocorrer em âmbito geral, como quando aqueles que aceitaram a tese aristotélica de que a Terra era o centro do universo fecharam questão em torno dessa inverdade para fazê-la parecer segura, clara, certa e evidente. Portanto, verdadeira.

Essa operação pode ser verificada em grupos menores. É o caso de um coletivo de profissionais que fecha questão em torno de uma tese, passando a defendê-la como a única possível, a única certa, a única a gozar da confiança e do “status” de razoável. Isso é muito comum no meio profissional quando um sujeito é tomado por sua caricatura e tratado não pelo que é e pensa, mas pelo que de interpretação sobre ele e o pensamento dele o grupo produziu e alimenta.

De igual modo, a SL pode ocorrer no seio da família. Ali, se a minoria existe, como, por exemplo, o único de um dos sexos, uma criança, outro qualquer de seus membros, ela corre o sério risco de ser vítima. Se não acordar a tempo, acabará enredada e aceitando pechas como: “O revoltado”, “Sabichão”, “O calado”, “O burro”, “O egoísta”, “A ovelha negra”, e por aí vai.

Confinada no rótulo que o grupo lhe grudou, a vítima passa a sofrer absurdo com uma série de suboperações que lhe encantoa, tira-lhe a voz, os direitos e decisões, entre elas a “desmentida”, a “desqualificação”, o (dis)simular”, a “impropriedade”, a “irrelevância” e o “menosprezo”.

1 A “desmentida” consiste em não dar credibilidade a nada que o sujeito minoritário sente, pensa e expressa. É como se ele fosse um mitômano e vivesse o tempo fantasiando, tendo suas opiniões, ideias e teses lançadas na lixeira do cotidiano. Por isso ele é seguidamente desmentido, ainda que ele próprio e os próprios membros do grupo consensuado saibam qual é e onde está a verdade de tudo o que entra em jogo em suas relações diuturnas.

2 A “desqualificação” é o “comer pela beirada” aquilo que o outro apresenta em termos de pensamento ou expressão de idéias. Nesse caso, o que é verbalizado, o gesto e a atitude não são desmentidos, mas defeituosos, incompletos, faltos e merecedores de arremedo e reparos. É um inferno ser ininterruptamente desqualificado.

3. O “(dis)simular” é a operação caracterizada por fazer o que é parecer não ser e de fazer o que não é parecer ser. Aí entram todos os jogos possíveis, desde que eles perpetrem a falsidade, a bajulação, o faz-de-conta, o engodo, a manipulação e outros jogos comportamentais que visem a desviar, desfocar e deslocar a atenção do que realmente interessa. Isso é um inferno porque quem age segundo essas diretrizes nunca dá a conhecer o seu verdadeiro “sim” e o seu verdadeiro “não”. É dose prá leão ter de aturar esse tipinho de comportamento.

4 A “impropriedade” é a operação que consiste em negar a contribuição alheia por meio de vetos indiretos: “Não é o momento”, “Não estamos prontos”, “Não estamos preparados”, “Não é a nossa praia”... Assim, é no todo que o outro vê sua ideia, seu pensamento e sua tese rejeitados, mas por meio de desculpas que, a bem da verdade, esconde a real intenção de não acatar nada que ele se aventure a socializar.

5 A “irrelevância” é a operação identificada com o ato de rebaixar o outro, o que ele é, pensa, sente, julga, avalia, decide e faz. É uma maneira de jogar o outro na sarjeta do cotidiano de maneira a não reconhecer-lhe o bem, o valor e o possível benefício que a contribuição apresentada por ele pode acarretar para todos.

6 O “menosprezo” pode chegar a ser mais cruel do que todas as operações anteriores juntas, uma vez que ele recai sobre o sujeito minoritário, a quem é atribuído o desvalor ou o anti-valor naquilo mesmo que de humano ele é, o que faz com que ele sequer tenha a oportunidade de expressar o que é, pensa, sente e deseja fazer. É o ignorar com requinte da vileza e da covardia.

Só quem já viveu essas situações sabe o peso que elas representam aos ombros daqueles que querem simplesmente ser o que são, fazer aquilo de que gostam e viver o estilo existencial que escolheram como o mais apropriado a si próprios e à maneira com que entendem devem encarar a vida, o mundo, a sociedade e sua inserção no grupo de que deveria fazer parte de maneira mais saudável e natural, livre e feliz.

Por tudo isso, a SL aglutina as intenções dos membros consensuantes com vistas para o expurgo do outro e de tudo o que dele possa advir. É a rejeição com requinte de justificativa pela verdade, quando essa verdade não passa de um acordo entre as partes interessadas no alijamento de que o sujeito minoritário é o alvo.

A SL carcome pela raiz o valor do pertencimento. Ela serve de ferramenta para que a decisão do grupo pactuado mascare o contrato e a cumplicidade interna em torno da hostilidade e da crueldade impingidas ao outro no seu ser-e-estar grupal, social, profissional e humano.

Conheço um senhor de idade que é vítima dessa SL: todo o grupo ao redor dele está sempre certo, ao passo que ele é sempre o que está errado. Esse senhor é o “zero à esquerda”, o “sem voz”, o “sem vez”, aquele que para nada serve além de ser saco de pancadas a quem ninguém dá ouvidos. No interior do grupo, ele é a figura do “Zé Ninguém”, um caso ilustrativo do quão perversa é a SL e do quanto ela pode cegar aqueles que nela se acomodam e não voltam os olhos para outra verdade senão para aquela internamente fabricada e colocada em ação.

Uma pena! É o desamparo e a solidão em meio a quem deveria amparar e acolher. É a deseducação para o reconhecimento fundado no valor humano da pessoa, essa a ser considerada tal qual se me apresenta no dia-a-dia, e não como uma pseudo-imagem que dela faço em minha mente e de maneira interpretativa, distorcida, falsa e injusta. Pior do que o despotismo de um só é a tirania grupal, da qual a minoria não tem como se defender, nem como fugir.

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br