O EXERCÍCIO DA TOLERÂNCIA

Preâmbulo

Agradeço de coração o gentil convite que os organizadores do FORESPE me fizeram para participar desta mesa de debates “Construindo uma Cultura da Alteridade”, ao lado do Lama Padma Samten e do Prof. Luiz Signates. O que muito me honra. O tema sobre o qual devo falar é “o exercício da tolerância”. Foi-me sugerido que caracterizasse:

1) a intolerância histórica e atual nos contextos políticos, sociais, filosóficos e religiosos;

2) demonstrasse a intolerância no aspecto cultural, exemplificando-a;

3) sugerisse alternativas de exercício da tolerância na convivência plural, em função da construção de uma ambiência de felicidade coletiva.

Não sei se vou dar conta do recado. Mas, com certeza, os componentes desta mesa já estão dando um exemplo de exercício da tolerância, pois somos de diversas orientações religiosas e filosóficas, e estamos pacificamente nos propondo a dialogar. Mas, com certeza, não é o primeiro exercício de tolerância que fazemos. Da minha parte, um dia já pratiquei um gesto muito concreto de tolerância para com os espíritas. Tolerância em seu sentido verdadeiro, que é reconhecimento. Há alguns anos o MEC (Ministério da Educação) me enviou para Curitiba para avaliar o projeto de um Curso de Teologia Espírita, que solicitava o reconhecimento civil como curso superior. Juntamente com um Pastor Luterano de São Leopoldo/RS, dei um parecer positivo. Com isto o MEC autorizou que a Faculdade Dr. Leocádio José Correia pudesse oferecer o primeiro Curso de Teologia Espírita, em nível superior e reconhecido civilmente no Brasil, e, penso, no mundo. E os pareceres, que permitiram para que isto ocorresse, foram dados por um cristão católico e um luterano. Felizmente, isto hoje é possível no Brasil!

Além disto, como professor de filosofia em instituição pública, é, para mim, muito gratificante contribuir com um ambiente de tolerância, tanto no contato com os colegas professores, como em sala de aula, onde se encontram estudantes, provenientes das mais diversas etnias, com diversas visões de mundo e ideologias políticas e religiosas. É muito gostoso trabalhar em um ambiente onde todos se reconhecem e respeitam.

Mas, vejamos as circunstâncias históricas em que se verificou, ou não, a ambiência de respeito e reconhecimento mútuo na humanidade em geral. Em outras palavras, o que dizer da tolerância e da intolerância entre os homens?

Em primeiro lugar, será que este assunto ainda é atual? Com certeza! Basta acompanhar as manchetes dos jornais diários. Tenho aqui alguns recortes do Jornal do Commercio/Recife. Do dia 31.10.04, duas manchetes: “Intolerância religiosa é tema de exposição” no Arquivo Público Estadual no mês dedicado à consciência negra; e, na página das Religiões, a manchete: “ A Intolerância”, mencionando que no Rio de Janeiro um cidadão entrou numa igreja , quebrando uma imagem de Maria, e. aos gritos, proferindo uma série de impropérios à Mãe de Jesus. E no dia 03.11.04, o mesmo Jornal do Commercio, além das manchetes sobre a guerra entre Estados Unidos e Iraque, noticia: “Adolescente espanca mendigo até a morte” em Planaltina, cidade-satélite de Brasília; e “Cineasta defensor do racismo é assassinado em Amsterdã”. Como se vê, a intolerância ainda está viva no nosso tempo, e entre nós, sob muitas formas. Por isto, é importante que estejamos vigilantes e nos preocupemos em construir ambiências em que floresça a tolerância. Neste sentido, as minhas considerações, a seguir.

Introdução

Voltaire (1694-1778), em seu Dicionário Filosófico, publicado no século XVIII, pergunta: Que é a tolerância? E responde que ela é a glória da humanidade. Exemplifica com a Bolsa de Amsterdã, mostrando que na bolsa os homens das mais diversas etnias e religiões não se enfrentam com punhais, pois ali todos querem ganhar dinheiro. Por que, então, estes mesmos homens tantas vezes, na história ocidental, se desprezaram e perseguiram monstruosa e barbaramente por causa de suas religiões? Num grito de indignação, Voltaire acusa estes religiosos de insensatos e desgraçados, pois nunca souberam render um culto puro ao Deus, que os criou. A intolerância não existiria se os homens reconhecessem suas fraquezas e erros, uns perdoando aos outros suas tolices. Voltaire se considerava o homem mais tolerante do mundo. A verdade é que nem sempre foi tão tolerante, ao menos para com os judeus, que ele detestava. Mas duas observações, implícitas no comentário de Voltaire, são muito ilustrativas. A intolerância, ao menos em seu nível religioso, tem sua origem na falta de conhecimento do verdadeiro Deus, e na falta de conhecimento do homem de si mesmo. O culto que se presta a Deus, muitas vezes, é um culto inadequado, senão hipócrita; e o homem também, muitas vezes, não se reconhece como ser finito, frágil, imperfeito e falível. E com estas falsas e deficientes compreensões de Deus e de si mesmo, o ser humano se torna prepotente e intolerante.

Portanto, no meu entender, as perguntas fundamentais que devemos responder, para nos tolerarmos mutuamente, são: quem é Deus para nós? e, quem somos nós?

Quem é Deus?

Para responder a esta pergunta, me reporto a dois textos escritos por Nicolau de Cusa (1401-1464) no século XV. Refiro-me aos textos: A Coincidência dos Opostos (Coincidentia oppositorum) e Sobre a Paz entre as Religiões (De pace fidei). Ainda hoje muitos se admiram de que estes textos tenham sido escritos por um cardeal da Igreja Católica, e que a Igreja nunca tenha condenado estes textos. Tratava-se, na época, de negociar a união entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Grega. Entretanto o Ocidente cristão foi surpreendido pela conquista de Constantinopla pelos turcos (1453). Assim os turcos, muçulmanos, derrotaram definitivamente o Império cristão do Oriente, e representavam uma ameaça aos cristãos do Ocidente. Nicolau de Cusa, primeiramente, havia negociado com os cristãos ortodoxos; depois, com a queda de Constantinopla, foi negociar com o Grão Turco Maomé II. Durante a viagem pelo Mar Mediterrâneo, rodeado pela imensidão das águas, Cusa relata que teve uma iluminação divina, pela qual compreendeu a coincidência dos opostos em Deus. Deus se manifestou ao conhecimento de Cusa como o Absoluto não contraído, o ilimitado, o infinito. E o que são os nomes que os homens atribuem a Deus? São compreensões finitas e imperfeitas do Deus infinito. Portanto, exprimem apenas parte do que Deus é. Além disto, todo nome individualiza o ser, e o distingue dos outros seres. Ora, Deus não pode, nem precisa ser individualizado, pois é único. Por isto, Deus está para além e para aquém de todo nome, está para além do maior e para aquém do menor. Ele não tem um único nome. E todos os nomes que os homens lhe atribuem são imperfeitos e finitos, já que a nossa linguagem é finita, e Deus é infinito. Portanto, quem quer que fale sobre Deus, nunca diz tudo de Deus. O Pe. Antônio Vieira dizia que, em relação a Deus, sempre mentimos. Pois mentir é dizer ou demais ou de menos sobre alguma coisa. E de Deus sempre falamos de menos. Mesmo reunindo todas as denominações de Deus, não qualificamos a Deus em sua plenitude. Desta forma é legítimo designar Deus por qualquer nome: por Jahwé, por Allah, por Senhor, por Arquiteto do Universo, por Absoluto, por Divina Providência, por Brahma, Thien, Tupã ou Olorum...Ou, simplesmente não dizer nada sobre Ele. Todos estes nomes são legítimos, mas nenhum suficiente ou exclusivo. Assim é com as religiões. Cada uma entende um pouco de Deus, mas nenhuma é dona de Deus. Em relação a Deus, todas as compreensões religiosas são como os raios de uma roda. Elas coincidem em Deus. Por isto, o diálogo inter-religioso significa uma intercomunicação das diversas compreensões parciais que os homens adquiriram sobre a verdade infinita que está em Deus, impossível de ser compreendido plenamente pela razão finita. Por isto, de qualquer denominação religiosa ou ideológica que formos, quando nos sentarmos à mesa para dialogarmos sobre Deus, com irmãos das mais diversas denominações, só nos podemos enriquecer com as parcelas de verdade que eles possuem sobre o Ser Supremo. E isto é maravilhoso. Assim como é maravilhoso e grandioso o Deus verdadeiro, que nos colocou neste mundo para admirá-lo e glorificá-lo, agindo de acordo com as leis de sua criação. Só a ignorância pode afirmar que Deus apenas é do tamanho da nossa cabecinha. Por isto, para que a nossa ação nesta vida seja correta, é necessário conhecer a nós mesmos: quem somos e a que viemos? Qual é o sentido de nossa vida? Foi muito oportuna a explicação que nos deu o Prof. Raul Teixeira, na conferência de abertura do FORESPE, sobre a exigência dos antigos, religiosos e filósofos, do “conhece-te a ti mesmo”. O auto-conhecimento é fundamental para equacionarmos o nosso orgulho em relação ao muito que pensamos conhecer. Deste imenso universo, cada um de nós conhece apenas coisas mínimas. E por isto dizem, que os maiores especialistas científicos conhecem cada vez mais sobre cada vez menos.

Quem é o homem?

O filósofo Kant (1724-1804) diz que toda a filosofia se inclui em quatro perguntas fundamentais: O que podemos conhecer (teoria do conhecimento)? O que devemos fazer (ética)? O que podemos esperar (metafísica, filosofia da religião)? Quem é o ser humano?

Considero que as três primeiras perguntas só podem ser respondidas, se primeiramente respondermos à quarta: quem somos? A sabedoria bíblica nos ensina que o homem, em sua vida, pode seguir dois caminhos: o caminho do bem e o caminho do mal. E a complementação desta sabedoria, pela filosofia grega, nos mostra que o homem, que se pauta pelo bem, é o ser mais maravilhoso que existe na terra; mas o homem, praticando o mal, é capaz de se demonstrar o ser mais terrível que existe neste mundo.

Se formos otimistas neste mundo de Deus, e admitirmos que estamos nesta terra para nos aperfeiçoarmos, praticando o bem, mas também estivermos conscientes das nossas potencialidades para o mal, qual a atitude correta? A vigilância perante o mal, para não desfigurarmos a imagem e semelhança com a divindade, que somos. Uma vez adequadamente consciente de si, o homem se torna “amigo da sabedoria” (filósofo) e não “dono da verdade”. A filosofia nunca é “dona da verdade” , mas “amiga da verdade”. E aqui, mais uma vez, evoco Nicolau de Cusa, com seu livro “A Douta Ignorância” (De docta ignorantia). Nesta obra, Nicolau de Cusa, invocando Sócrates - sei que nada sei - , nos mostra que o homem é sábio na medida em que sabe, mas também sabe que ainda não sabe muito mais. É isto que é o homem: curioso e impelido a conhecer cada vez mais, mas nunca dono de todo o conhecimento. Isto porque, segundo Cusa, o mundo material também é um absoluto. Um absoluto contraído, é verdade, mas absoluto em sua grandeza e complexidade frente à razão limitada do ser humano. E é pesquisando as leis deste mundo visível que podemos chegar ao Deus invisível, como nos ensina o Apóstrolo Paulo, no 1º. Capítulo de sua Carta aos Romanos (cf. Rm 1,20). Este ensinamento de Paulo, ainda hoje é omitido por alguns grupos cristãos, que apenas pregam uma fé cega, desvalorizando a ciência e a razão, levando pessoas ao fanatismo. Estou convencido que, cursos de teologia, para seminaristas, pastores, monges ou obreiros de qualquer denominação religiosa, que não incluem em seus currículos o estudo da filosofia e das leis científicas, em vez de formarem líderes espirituais, formam fanáticos, intolerantes e, por que não dizer, ignorantes. Pois, quanto mais conhecermos das leis da natureza, tanto mais conheceremos da grandeza de nosso Deus. Na natureza constatamos a variedade da criação de Deus: a variedade das flores e dos pássaros; a variedade dos peixes e dos mamíferos; a variedade das plantas e das paisagens...Francisco de Assis falava do Irmão sol, do Irmão lobo, da Irmã morte, do amor à natureza... Esta é a espiritualidade que nos leva a compreender melhor ao nosso Deus e ao mundo de sua criação. Com certeza este Deus , criador de uma natureza variadíssima, belíssima em sua variedade, também aprecia avariedade entre os homens: a variedade das idéias, dos ritos, das religiões, das culturas e das etnias, das cores da pele. Toda esta variedade converge para a unidade. Em Deus, como nos explica Nicolau de Cusa, os opostos coincidem.

Uma vez colocada esta base de compreensão de Deus, do homem e do mundo, por que então as intolerâncias dos homens entre si? Certamente por falta de conhecimento do verdadeiro Deus e de sua criação; e por falta de consciência do homem de seu verdadeiro ser. “Conhece-te a ti mesmo”. O homem vive na penumbra do que lhe é possível conhecer, do que ele deve fazer, do que pode esperar, e do que ele é. Dali o bem que deixa de fazer e o mal que pratica.

Qual é, então, o caminho a seguir? Seria:

Lamentar a história?

A história nos conta as terríveis intolerâncias entre os homens. Mas a história está fossilizada. Dela não removeremos mais uma pedra. Nem mesmo Deus pode desfazer um fato que aconteceu. Verdade é que nós somos frutos dos acontecimentos históricos. Nenhum de nós estaria aqui, com o aspecto que temos, a nossa cor, a nossa estatura, os nossos genes, a nossa idade, se a história tivesse transcorrido de forma diferente do que transcorreu. Isto, para muitos, é uma memória perigosa, e rejeitam recordá-lo. Eu, por exemplo, não existiria como existo, falando para vocês, se não tivesse acontecido o genocídio dos índios guaranis no Rio Grande do Sul, na destruição dos Sete Povos das Missões, em meados do século XVIII. Se não tivesse ocorrido a Guerra Guaranítica o Rio Grande do Sul não se teria despovoado e os meus antepassados europeus não teriam emigrado para estas terras; meus antepassados, originários de diversos países europeus, não se teriam encontrado nos pampas gaúchos, e me gerado. Da mesma forma, quantos de nós, aqui presentes, não existiríamos, se não tivesse acontecido a ocupação do Brasil pelos portugueses, se não tivesse havido a escravidão, com a vinda compulsória dos africanos para cá, e a morte de milhões de indígenas? Praticamente ninguém. Esta é uma verdade histórica incontestável e dura. Com certeza podemos e devemos lamentar todas as crueldades e injustiças destes tempos, mas a verdade é que só existimos, como estamos aqui, porque a história foi como foi. Por isto, se queremos lamentar o passado, a lamentação não pode ser em função deste passado, e sim em função do presente e do futuro, perante os quais temos responsabilidade. A lamentação do passado pelo passado apenas alimenta ressentimentos irracionais e revanchismos, o que não contribuirá para uma convivência pacífica de diálogo e tolerância.

Poderíamos agora fazer um longo retrospecto histórico das lamentáveis intolerâncias dos homens entre si. intolerâncias religiosas, em que povos chamavam o seu deus, ou os seus deuses para acompanhá-los no massacre de seus inimigos. Os sacerdotes benziam as armas da crueldade. Em nome de deus se organizavam exércitos, se prendiam e decapitavam pessoas; organizavam-se cruzadas e se queimavam bruxas e supostos hereges. Ainda nos inícios dos tempos modernos, se impunha às pessoas “tal rei, tal religião”, em claro desrespeito à liberdade de consciência e ao livre arbítrio. Sem dúvida, tudo isto aconteceu. Mas, o que isto importa hoje? A nossa grande pergunta só pode ser: Como hoje a humanidade convive? Ela ainda age da mesma forma como nestes tempos históricos, bárbaros e obscuros, ou cresceu espiritualmente?

Tolerância e intolerância hoje

Em tempos passados, tratava-se principalmente da tolerância e da intolerância religiosa. Santo Agostinho admitia a guerra justa para prevenir e reprimir o mal. Para ele, os cristãos fazem guerra por amor, e os pagãos por iniqüidade. Por isto seria permitido reprimir os hereges, para reconduzi-los ao caminho da verdade. A partir daí os cristãos, inicialmente, eram tolerantes para com os pagãos, mas intolerantes para com os considerados hereges. E esta foi a atitude predominante durante a Idade Média, e que perdurou, em alguns países, até aos tempos contemporâneos. Neste espírito se declararam as principais guerras de religião no Ocidente. Cristãos guerrearam contra os árabes, e os árabes guerrearam os cristãos, pois uns aos outros consideravam hereges, infiéis. E pregavam que Deus autorizava reconduzir aos infiéis à verdade, mesmo que fosse ao fio da espada. Alguns Reis e Imperadores também se aventuraram a submeter pagãos ao cristianismo pela guerra. Os árabes conquistaram o norte da África, parte da Europa e regiões da Ásia sob a alegação de uma “guerra santa”. Responsabilizou-se Deus e o diabo pelas intolerâncias humanas.

Hoje podemos ter uma certeza teológica: que o verdadeiro Deus jamais autorizou guerras. Nem mesmo as guerras bíblicas. E se estivesse em meu poder adaptar a Bíblia à razão do nosso tempo, a expurgaria de todas as passagens onde se afirma que Deus tomou partido por este ou aquele exército, autorizando os massacres e crueldades daquelas guerras. As guerras são, justamente, a manifestação mais radical e bárbara da intolerância. Por isto, muito bem ensinam os pacifistas de nosso tempo que toda guerra é um crime. Não existem guerras justas, não existe o direito da guerra, ou o direito na guerra; não existe guerra civilizada. Pois nas guerras se autoriza tudo o que na convivência civilizada dos homens é considerado crime: homicídios, morte de inocentes, supressão da verdade, invasão da privacidade, desrespeito à propriedade, estupros, torturas, espionagem, traição... Tudo isto faz parte de qualquer guerra. E se não for isto, a guerra não é guerra. Isto se diz das guerras de antigamente, e isto nos é noticiado diariamente sobre a guerra no Iraque. Como então falar em “guerra justa”, em “direito de guerra”, em “guerra santa”? Seria a mesma coisa que falar em barbárie civilizada, em homicídio santo!

Por isto, também hoje, está diante de nós uma enorme tarefa para construirmos a tolerância, e nos engajarmos pela paz e a condenação de todas as guerras. Os períodos de guerra são uma espécie de loucura da humanidade, pois, em vez da razão do diálogo se subjuga o outro à nossa vontade pela força. O que é a característica mais clara da intolerância.

Mas as intolerâncias e as guerras não foram apenas religiosas. Sempre existiram intolerâncias étnicas e raciais. Egípcios procuravam exterminar babilônios e assírios; persas guerreavam gregos; judeus, fenícios; romanos, a todos os bárbaros. E os povos se escravizavam entre si, sem dó nem piedade.

Como se vê, o caminho para a tolerância entre os povos e as religiões é penoso. A conquista da liberdade de religião, da liberdade de consciência e de opinião, a superação dos preconceitos étnicos e raciais jamais foi plenamente conquistada pela humanidade. Embora tenha havido progressos notáveis desde os tempos modernos, contudo ainda hoje é necessária uma constante vigilância para impedir e superar preconceitos e intolerâncias. No Brasil, sob certos aspectos, vivemos numa terra privilegiada. Há uma razoável paz religiosa, sem grandes violências; há uma objetiva liberdade de opinião; a democracia, embora recente, dá sinais promissores de estabilidade. A nossa população miscigenada impede que queiramos uma raça pura, ou se formem guetos étnicos agressivos. Isto ainda não significa que sejamos o povo mais tolerante do mundo. Contudo, sob o aspecto racial e étnico podemos ser exemplo de tolerância para muitos outros povos. Diferentemente de nossa convivência racial e étnica, os maiores perigos para a paz duradoura nos países da Comunidade Européia são, justamente, as crescentes intolerâncias étnicas. Sérvios, croatas, kosovares, chechenos, russos, checos, etc...alimentam ódios mortais entre si. Do Oriente Médio, não é necessário falar: judeus e palestinos, americanos e iraquianos, xiitas e sunitas se matando diariamente entre si. Na África, por causa da deficiência de notícias, nem sabemos bem quantas tribos estão procurando se exterminar mutuamente.

Conclusão

Mas, para finalizar, voltemos para o nosso contexto. Será que, apesar de tudo, já somos suficientemente tolerantes, no sentido forte da tolerância? Pois, a verdadeira tolerância não consiste apenas em suportar o outro com indiferença, ou relativizar nossos valores e nossas convicções. Ninguém deve renunciar a seus valores e às suas convicções, enquanto não tiver valores e convicções melhores. No entanto, a verdadeira tolerância reconhece o outro, dialoga com o outro, o respeita e procura remover todos os obstáculos que o impedem de crescer e se aperfeiçoar na vida. E sob este aspecto ainda existem muitas intolerâncias a serem superadas entre nós. Pois, em todos os campos da vida brasileira existem verdadeiros fossos que nos separam como cidadãos. A violência chegou a uma espécie de guerra civil caótica, a corrupção anda solta, milhões de pessoas vivem em condições indignas do ser humano nas favelas de nossas cidades, o trabalho escravo, o turismo sexual, a prostituição infantil, os sem-teto e os sem-terra, a saúde precária, os salários de fome, a falta de acesso à uma justiça adequada, a fome, a exploração e a exclusão de minorias, o analfabetismo... E por aí vai. Em relação a tantas deficiências, ser tolerante é ser intolerante para com o intolerável.

Mas, como interferir nestas situações intoleráveis, e mostrarmos que somos verdadeiramente tolerantes? Aqui convém invocar uma máxima, muito cara a Allan Kardec: “Fora da caridade não há salvação”. Uma máxima que pode unir todos os religiosos e todos os homens de boa vontade, sejam de que ideologia forem. Caridade que não é puro assistencialismo, nem esmola, mas promoção do ser humano. Jesus quando identifica os seus discípulos, não lhes pergunta se obedeceram a seus pastores e a seus bispos, se repetiram muitas preces, se praticaram tal ou tal culto, se freqüentaram muito às igrejas, se participaram de muitas procissões, mas os interpela, perguntando: você vestiu nus, você alimentou famintos, você deu água aos sedentos, visitou enfermos e encarcerados, você foi um “bom samaritano”, consolou aflitos...? A partir desta mensagem de Jesus, a grande missão de nossa vida é crescermos nas virtudes sociais: na justiça, na solidariedade, na compaixão, no amor aos nossos semelhantes e a todas as criaturas de Deus. E isto não podemos apenas querer para nós, mas é preciso contribuir para que sempre mais pessoas possam viver estas virtudes, através das quais é possível honrar e agradecer ao nosso maravilhoso e grandioso Deus. É isto que fará feliz a nós e a todos que conosco compartilham a vida neste planeta terra.