Quando Dizer Não

Ao ler a coluna da jornalista Bárbara Gancia, na Folha de São Paulo de 18/09/2009, sob o título “Baixeza sem igual”, a respeito do imbróglio envolvendo o piloto de fórmula I Nelsinho Piquet, que confessadamente provocou, de propósito, uma batida em Cingapura em 2008 por ordem do diretor da escuderia Renault, Flávio Briatore, para beneficiar seu companheiro de equipe Fernando Alonso, que acabou por ganhar a corrida, não pude deixar de refletir sobre as implicações éticas do caso. A jornalista, numa feliz tacada, destaca do texto, como chamada, duas frases que resumem a lição moral da história: "Um dos luxos da vida é dizer não. Quem sempre diz sim, mais cedo ou mais tarde, acaba se prostituindo."

É provável que, com a repercussão mundial que essa história sórdida teve, a carreira do jovem piloto nas pistas do esporte que escolheu esteja encerrada. Pelo menos à sua pretensão, se um dia houve alguma, de repetir o feito do pai, campeão mundial na categoria, pode dizer adeus. O sentimento de vergonha formará uma potente barreira psicológica contra a formação da autoestima necessária para tanto. Mesmo assim, ainda que submergindo no anonimato dos esquecidos, no âmbito privado terá que afrontar, nas suas relações, o inevitável questionamento de todos que souberem de sua história pública. Em qualquer negócio em que se envolver no futuro, quanto do conhecimento sobre a baixeza cometida terá influência nas decisões do interlocutor? Como ensinar ética ao filho que inevitavelmente saberá da história? Enfim, o ato terá reflexos não só no campo profissional, mas também no afetivo, não só no âmbito público, mas também no privado.

Se as consequências são tão terríveis na vida do indivíduo, o que move seres humanos a caírem na tentação de atos antiéticos? Mesmo quando não dependem disso, como parece ser o caso do jovem piloto, o que os leva a dizer um “sim” fatídico a ordens que podem levá-los a uma bancarrota moral de efeitos tão catastróficos para quem deseja uma vida sem sofrimentos? Talvez as tentações da vida fácil, da riqueza, da glória das conquistas, como frisa a jornalista, sejam componentes da causa que leva ao “sim”. Mas acho que deve haver algo mais do que a tentação. Não influenciarão na decisão trágica o ambiente em que o indivíduo foi criado, as suas relações, a percepção da impunidade ao seu redor? Os fatos que ultimamente têm ocorrido no nosso mundo político levam-me a crer que tal concepção de um mundo onde a ética parece ter sido varrido para debaixo do tapete não é apenas delírio de um chato moralista. Tal concepção pode minimizar um pouco a crítica ao piloto.

Mas essa triste história levou-me a lembrar-me de outra história mais feliz, que é o que verdadeiramente me motivou a escrever este texto e que ouvi outro dia num colóquio sobre Jean Piaget, realizado na faculdade onde estudo Filosofia. Jean Piaget parece ter sido um educador dedicado a encontrar uma forma eficiente de ensino básico às crianças, no intuito de formar cidadãos responsáveis, pelo menos foi o que apreendi das palestras a que assisti. Não me recordo de muita coisa acerca destas, mas de uma história contada fora das palestras, no meio de um debate, me recordo muito bem, pelo belo exemplo moral que emanou.

Naquele dia, as palestras tinham como tema a moralidade. Ao final delas, já no espaço dedicado ao debate público, houve a intervenção de uma das participantes do encontro, que não fora um dos palestrantes do dia. Era uma professora da USP, já veterana, especialista no tema-fim do colóquio, que, reparei, fazia intervenções bastante pertinentes durante o mesmo. Pelos comentários elogiosos recebidos dos outros participantes, que na maioria haviam sido alunos ou orientandos seus, emanava grande respeitabilidade.

Ela começou dizendo como nossas instituições jurídicas parecem estar corrompidas, à mercê de juízes e advogados inescrupulosos e como isso pode estar afetando a própria sociedade. Ela tem essa sensação porque provém de uma família de advogados e, assim, não pode se furtar de se envolver em fatos relativos à profissão. Fez esse preâmbulo para dizer, em seguida, que tinha um filho advogado com uma bela carreira.

No começo da carreira esse seu filho, trabalhando para uma firma de advocacia, defendia um cliente numa causa importante em que interesses poderosos pareciam estar envolvidos. Um dia o advogado da parte contrária, numa reunião a sós, pediu-lhe que retirasse do processo por ele preparado uma única palavra. Para que fizesse isso, ofereceu-lhe a quantia nada modesta de R$ 300000,00. À época, esse valor seria a quantia exata que precisava para realizar o sonho de uma reforma necessária em seu apartamento. Ao invés de aceitar a propina, revelou ao seu chefe a tentativa de suborno e foi em frente com o processo da forma como o preparara. Provavelmente, diante da lisura de seu comportamento, deve ter ganho o duelo. Entretanto, ganhar ou não o processo, no contexto, não era o que mais importava aqui. O que ele ganhava ao ter recusado a propina era muito mais do que um ganho financeiro. O que ele ganhava ali era respeito e um valor moral, talvez não comum, no mercado profissional específico em que transitava. Provavelmente aquele valor material que recusou pode ser sido ganho paulatinamente através de outros trabalhos surgidos por causa da credibilidade que conquistou na sociedade. A professora contou que esse seu filho, hoje, tem reconhecimento internacional.

Ser fraco o suficiente para dizer “sim” a uma tentação poderosa que se põe, de repente, à nossa frente, pode, portanto, significar o impulso para desencadear no espírito um lento processo de decadência moral que pode até levar a uma bancarrota material ou ter a envergadura moral para dizer “não” pode significar um reforço psicológico para manter o espírito intacto para prosseguir nessa vida perigosa, cheia de percalços e tentações, com a consciência tranquila dos que almejam uma verdadeira felicidade.

A recompensa por uma reação ética a um desafio de teor moral não é monetária ou física, ela funda-se no acréscimo de mais "musculatura" psicológica na compleição moral do indivíduo.

Endosso, portanto, a frase de Bárbara Gancia: “Dizer não é um luxo”. É um luxo porque é uma oportunidade, talvez rara, de, numa encruzilhada da vida, entre dois caminhos, escolher o que nos leva à paz de espírito e não ao sofrimento.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 17/10/2009
Reeditado em 11/07/2022
Código do texto: T1871996
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