Pequena digressão antropológica - Edgard Steffen

ARTIGO - [ 17/10 ]

Notícia publicada na edição de 17/10/2009 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A.

Sugerida pela crônica 'Ao mestre, com desprezo' (Rui Castro - FSP, 13/10/2009)

O anseio pela liberdade faz parte da natureza humana. Quando o bicho humano aprendeu a pensar, aprendeu também a questionar a autoridade do macho dominante

Uma das coisas que eu planejei fazer, e fiz em Nova York, foi procurar Lucy. Eu, 63 anos, 1,82 m, louro; ela, negra, 1,10 m e muito mais velha. Antes que façam mau juízo, explico. No museu de Historia Natural, posei ao lado de Lucy, 3,2 milhões de anos, exemplar fêmea do Australopitecus affarensis, o mais antigo hominídeo de que se tinha notícia até aquela ocasião. Lucy foi descoberta, em 1974, pelo professor Donald Johanson e pelo estudante Tom Gray no deserto de Afar (Etiópia). Guardo a foto para mostrar, aos meus amigos, um homem que se esforça para ser moderno ao lado da mais distante prima de Adão. Hoje, leio que pesquisadores da Universidade de Berkeley encontraram outra parenta de Eva, mais distante ainda*. Ardi, esse o apelido da fêmea de Ardipithecus ramidus, 1,20 m, 50 kg, idade 4,4 milhões anos de idade, reconstituída, pedacinho a pedacinho, graças aos recursos da computação gráfica. Como se pode notar, em pouco tempo, minha foto montagem ficou defasada em 1,2 milhão de anos. Ardi era capaz de andar sobre duas patas com a mesma facilidade com que saltitava pelos galhos das árvores. Por olhar para frente - seus parentes simiescos olhavam mais para o chão - descortinava horizontes cheios de estímulos visuais, importante fator para o crescimento do encéfalo. Também, diferentes dos chimpanzés, os ardis não eram agressivos. Mansidão foi boa qualidade para linhagem com pretensão de chegar ao Homo sapiens, e viver mais pela racionalidade que pelo instinto.

Através de milênios, espécies evoluíram segundo condições locais e disponibilidade de alimentos. Gerações predecessoras transmitiam às subseqüentes comportamentos favoráveis à sobrevivência. Aos filhotes de predadores, como caçar suas presas; às jovens presas, como escapar dos predadores. Quem acompanha projetos de recuperação, de filhotes feridos ou/e alijados de suas mães, sabe quão difícil a sobrevivência, depois que alguém interfere em sua história natural. Alimentados pelo homem, caçadores desaprendem caçar, e presas não sabem buscar alimento nem abrigo para se livrar de predadores.

Usando súmula antropológica de boteco, podemos afirmar que o homem, em todas as épocas, rezou pela mesma cartilha; os mais velhos sempre ensinaram, aos mais novos, meios de sobrevivência e habilidades adquiridas. À medida que habilidades e conhecimentos foram se ampliando, o bicho-homem deixou de grunhir e passou a orientar-se por códigos de convivência. O incremento do acervo cultural, mais que os códigos de convívio e imitação do que fazia o grupo, deve ter gerado a primitiva escola, instituição que iria dar maior eficiência na transmissão dos conhecimentos acumulados.

O anseio pela liberdade faz parte da natureza humana. Quando o bicho humano aprendeu a pensar, aprendeu também a questionar a autoridade do macho dominante. Este, por sua vez, fez de tudo para ampliar seu domínio sobre o clã. Da autoridade natural para o autoritarismo opressor apenas um passo.

O mundo evoluiu numa velocidade impressionante. Até a primeira metade do Século XX, padrões de comportamento, valores morais e os próprios tabus muito pouco se diferenciavam dos vigentes no século anterior. Na segunda metade, cansado das guerras e das opressões, o homem do século XX mergulhou de cabeça na liberdade total. Contestou tudo o que não fosse “eu quero”, “eu posso”. As gerações pós-Grande Guerra e pós-Guerra da Coréia, estimuladas pelos gurus existencialistas, lançaram motes “Faça o amor, não faça a guerra”, “Paz e Amor”, “Não confie em quem tem mais de 30 anos”, “É proibido proibir”, para citar somente os mais conhecidos. Uma das consequências desta nova postura é a confusão que se faz, em nossos dias, entre autoridade e arbitrariedade, liberdade e licenciosidade, democracia e desregramento.

A acreditar-se nas manifestações de educadores e psicólogos, que freqüentam a mídia nestes últimos tempos, parece que a época do “é proibido proibir” está com os dias contados.

O difícil continuará sendo disciplinar, sem tolher liberdades de escolha nos caminhos da verdadeira democracia e do desenvolvimento humano. Entre bichos-homem deste Século XXI, ainda tem gente que mais parece descender do agressivo chimpanzé que dos mansos Ardis...

(*) FSP - 02/10/2009 - Ciência - Pág. A16

Edgard Steffen é médico pediatra (edgard.steffen@gmail.com)

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 17/10/2009
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