A cidade e a saudade
Um poema e uma cidade:
Saudade. No dicionário de Houaiss esse termo está definido como “sentimento mais ou menos melancólico de incompletude”. Essa incompletude quase sempre, pode ser aumentada ou diminuída pela memória ou mesmo por situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados, por qualquer que saiba tornar isso em arte, como um bem desejável. Se para um lexicólogo renomado já é difícil definir esse termo, ainda mais difícil ainda é traduzi-lo numa linguagem literária em forma de versos em um soneto. Pacífico Ribeiro, poeta nascido em Jequié, em 13 de outubro de 1918, tentou traduzir em imagem poética todo o amor que sentia por sua cidade natal, para isso lançou mão do soneto
JEQUIÉ
Pacífico Ribeiro
Jequié
Jequié, terra do sol, formoso ninho,
Que me afagou na infância e mocidade.
Do seu berço ainda sinto todo arminho,
Aquecendo a ternura que me invade.
Desce o Rio de Contas de mansinho.
Beijando a parte morna da cidade.
Revejo a igreja, a ponte, o Jequiezinho,
E colho em cada rua uma saudade.
Minha terra cresceu, bela e virente,
Surgiram novas ruas, nova gente,
Velhos amigos já não vejo mais!
A bruma do passado me entristece,
Envolvendo minh´alma numa prece,
E cobrindo o jazigo de meus pais. (RIBEIRO, 1988, p.26)
Nesse poema, o jequieense, retoma um tema constante na literatura o saudosismo da terra natal. O poeta inicia o soneto chamando a cidade de formoso ninho, evidenciando o caráter maternal e protetor do local de nascimento.
O primeiro quarteto inteiro é formado por metáforas que chamam a atenção pelo sentido de abrigo e amparo trazidos ao momento presente pela memória do autor: além de ninho, já citado, estão termos como: “afagou”, “berço”, “arminho”, “aquecendo” e “ternura”. A palavra ninho nos traz à mente um lugar de proteção e abrigo; o arminho, talvez devido à sua aparência simpática e pelagem valiosa, tem estimulado a imaginação do Homem. No Japão é considerado um símbolo de boa sorte e na Europa medieval e renascentista era visto como símbolo de pureza . A imagem poética lembra um lar acolhedor onde se encontra refúgio e tranqüilidade. A própria sonoridade dos versos 1 a 3 com rimas pobres: “ninho” e “arminho” podem nos remeter aos sufixos formadores de diminutivo na língua portuguesa e que são usados estilisticamente para evidenciar o caráter afetivo imaginado por ele.
A Jequié cantada e descrita pelo eu lírico, não existe enquanto espaço construído, e sim, enquanto memória. Esta cidade poderia estar no mesmo rol daquelas descritas por Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis . Diomira, por exemplo, era desconhecida por Marco Pólo, mas ao avistar alguns símbolos nela existentes, o viajante veneziano fica com a impressão de já tê-la visto anteriormente; e a razão disso era reconhecer os símbolos desta em outras cidades nas quais havia passado (CALVINO, 2003, p.6). Em Pacífico a relação memorial com Jequié da-se através de imagens que pode ser comuns a qualquer cidade, pois toda cidade grande ou pequena tem uma igreja ou uma ponte. Tais imagens já foram cantadas por muitos poetas, músicos ou eternizadas por artistas plásticos.
Segundo Paulo Sérgio Rounet (ROUNET, 1997, p.65), muitas cidades são originadas diretamente da concepção do mundo dos seus idealizadores. Em Pacífico Ribeiro, esta visão fica repleta de saudades, pois esse lugar cantado é visto em sua relação com o passado “e colho em cada rua uma saudade”. Quando percorrer a cidade, o poeta não pode revê-los com os olhos do presente, pois é ao passado que retorna. Percebe-se ainda nos versos que o espaço urbano descrito pelo poeta se compõe de objetos do cotidiano real: A igreja, a ponte e o jequiezinho, confirmando as teorias de LYNCH (1997) quando levanta a proposta de que o conteúdo visual de uma cidade se constitui por cinco tipos de elementos: vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos, sendo estes últimos os objetos do real cotidiano. Unir-se a esses elementos não significava para o eu lírico um esconderijo, mas deles fazer-se elemento integrante, pois mesmo que cidade amada seja um “ninho formoso”, é um lugar de perdas como atestam os versos “velhos amigos já não vejo mais” e “a bruma do passado me entristece”.
Do mesmo modo que Isidora era a cidade dos sonhos de Marco Pólo, Jequié é a cidade dos sonhos de Ribeiro. “A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; (...). Os desejos agora são recordações. (Calvino, 2003, p.12).” Ao ver sua cidade crescer “bela e virente”, o poeta entende que o progresso da cidade é inevitável, apesar da saudade, que colhe em cada rua por onde percorre com seu olhar sentimental, os dois primeiros versos do primeiro terceto possuem verbos no pretérito perfeito, atestam o crescimento irrevogável da amada urbe. A nova gente que freqüenta essas ruas se contrapõe aos “velhos amigos” que não mais são vistos, afinal, os últimos, habitavam uma cidade que não mais existe, mas que, continua existindo na memória do poeta. É interessante notar a mudança do verbo no último verso do terceto: Vejo, o verbo está no presente, sendo a cidade declamada pelo poeta, um lugar imaginário, os limites do tempo e do espaço tornam-se necessariamente fluidos, presente e passado são retomados num flash tornando-os indistintos entre si, como preconiza Gaspar Simões: “O homem só é alguma coisa quando se imobiliza ou deixa imóvel fora dele o que num instante se foi” (SIMÕES, 1931, p.45-46). È principalmente esse instante que o poeta eterniza em versos.
No último terceto o passado é comparado metaforicamente a algo misterioso e escuro: bruma. Da mesma forma que a bruma escurece atrapalha a visão e torna o ar espesso, o poeta se deixa envolver por forte nostalgia. Marco Pólo ao relembrar a cidade de Zora, conta que a cidade se torna imagem extraordinária e direta para todo indivíduo que a visita. Em cada ponto do local a memória se torna completa, o acesso a ela é imediato. Desse modo, aquele que a freqüenta apenas uma vez tem em si tudo o que a cidade contém, tornando-a imutável (CALVINO, p.10). A cidade tornar-se-ia, então, o lugar ideal da permanência da informação memorial, ressaltada pela presença da palavra jazigo, local propício de lembranças, pois lá estão os antepassados do poeta e por extensão dos habitantes de uma cidade. Em Zora apenas se tem a sensação de saber onde tudo está e da certeza da sua imutabilidade. “Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto (...) O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota.”
Marco Pólo desvenda o segredo de Zora ao perceber a importância da perspectiva que se deve ter ao percorrer-la, sendo necessária tal visão para poder fixá-la na memória. Nos versos de Pacífico acima, nota-se a fragmentação do curso narrativo cronológico da vida. A imagem real é vista em pedaços que são captados pelos olhos e rapidamente codificados em palavras, formando um todo. Assim, aquela imagem que parecia cortada, se apresenta na íntegra, ainda que disforme
Ao apresentar os elementos urbanos que constituem a cidade de Jequié, o poeta se revela como um homem saudoso e triste. Embora seu olhar fosse um olhar onisciente, que via a cidade com os olhos no passado, sua visão do real o mantinha intimamente conectado à realidade que o rodeava. Dela era ser integrante, alvo de todas as suas ações enquanto cidade. Era um transeunte, um passageiro, ou seja, um cidadão urbano.
REFERÊNCIAS:
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Publifolha, 2003.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico houaiss. Disponível na Internet. Httpp:// www.houaiss.uol.com.br . Acessado em 14/07/2008.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
RIBEIRO, Pacífico. Meu Canto de amor a Jequié. Salvador: Editora Arpoador, 1988.
ROUANET, Sérgio Paulo. A cidade iluminista. In: SCHIAVO, Cléia e ZETTEL, Jaime (org). Memória, cidade e cultura. Rio de Janeiro: IPHAN, 1997.
SIMÕES, João Gaspar. O mistério da poesia. Coimbra: Imprensa da universidade,1931.