OS FRADES, AS FORMIGAS E OS SEM-TERRA
As crônicas do século XVII dos Frades Menores da Província do Maranhão relatam um estranho litígio. Foi o caso que naquela Capitania as formigas, muito numerosas, muito grandes e daninhas estenderam seu reino subterrâneo por debaixo da despensa dos frades, furtando a farinha da comunidade, e ameaçando os fundamentos da casa. Os Frades temeram pelo pão cotidiano por causa da multidão organizada e laboriosa das formigas. Por isto planejaram uma repressão eficaz. Mas, diante da solução final proposta, um religioso lembrou que seu Seráfico Patriarca São Francisco chamara todas as criaturas como irmãs: irmão sol, irmão lobo, irmã andorinha, etc. Não deveriam eles agora ter uma convivência pacífica com as irmãs formigas, em vez de buscar exterminá-las? E o devoto religioso propôs instaurar um tribunal perante a Divina Providência, em que eles fossem autores e as formigas rés. O Juiz seria o Prelado que, em nome da suprema equidade, ouvisse as processadas. Esta proposta agradou aos discípulos de São Francisco, e o Procurador dos Frades abriu libelo contra as formigas.
Por parte dos Frades, o argumento dizia que eles, conformando-se com as leis de seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho pelas roças daquele país; e que as formigas as roubavam; e não somente procediam como formigueiros ladrões e invasores, mas ainda com manifesta violência pretendiam expulsá-los de sua casa, arruinando-a. Por isto voltassem à razão ou fossem exterminadas com algum ar pestilento, ou afogadas com alguma inundação, ou exterminadas para sempre de outra forma qualquer. A isto veio contestando o Procurador daquele negro e miúdo povo, alegando que as formigas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la pelos meios de que dispusessem. E que estes meios, que o Senhor lhes permitira, eram virtuosos. A saber: buscando alimentos, garantiam a sobrevivência futura, cumprimdo o mandamento do Criador "crescei e multiplicai-vos"; ajudando umas às outras, eram caridosas; donas de suas terras, davam sepultura digna a seus mortos. Além disto, o trabalho das formigas era muito superior ao trabalho mendicante dos Frades, pois a sua carga, muitas vezes, era maior que o corpo, e o ânimo maior que as forças; concordavam as formigas que os frades eram irmãos mais poderosos, mas perante Deus também não passavam de formigas. Embora racionais, muitas vezes haviam ofendido o Criador, não observando as leis da razão, como elas observavam a lei da natureza. O fato de os frades, tantas vezes, não usarem a razão desolava muito mais a Deus do que as formigas furtarem a sua farinha. E, por sinal, as formigas estavam de posse daquele sítio, já mesmo antes de a Ordem dos Frades ter sido fundada. Portanto, as formigas não deveriam ser esbulhadas das terras que o Criador lhes dera, nem sujeitas à violência. Por fim o Procurador das formigas concordou que os frades defendessem sua casa e sua farinha com os meios humanos de que dispusessem, mas que elas haveriam de continuar com suas diligências, tendo em vista que do Senhor e não dos Frades era a terra, e tudo o que ela produzia.
Diante das réplicas e tréplicas, o Procurador dos Frades se sentia apertado, pois a contenda, uma vez reduzida ao simples forum das criaturas, abstraindo de poderes e razões históricas, e de motivos contemplativos, demonstrara que as formigas não estavam destituídas de direito. Pelo que o Juiz, com ânimo sincero de equidade, deu sentença, obrigando os frades a sinalizar, dentro de sua cerca, sítio competente para a vivenda das formigas; e que elas, sob pena de excomunhão, logo se mudassem para lá. Havia lugar mais que suficiente para ambas as partes se acomodarem nestas terras. Assim os frades cumpriram em paz seu estatuto, e as formigas trabalhariam garantindo sua sobrevivência.
Consta nas crônicas que a sentença do Juiz se cumpriu, como por milagre, tanto pelas leis da razão como pelas leis da natureza. Os Frades deixaram de temer a ruína de sua casa e o saque de seus celeiros; as irmãs formigas sentiram-se aliviadas das ameaças de extermínio. Maravilha do Senhor!
Como a questão dos sem-terra acontece 300 anos após o curioso litígio entre os frades e as formigas do Maranhão, qualquer semelhança entre posseiros e possuidores de terra do nosso tempo é pura conjetura. Mas, não será verdade que a terra é de quem a trabalha, e que o Senhor a constituiu para o bem de todos os homens? Com justa equidade há lugar e terra para todos os brasileiros em nosso vasto território. A parábola dos frades e das formigas, no mínimo, merece reflexão, embora Frades não sejam latifundiários, nem sejam da UDR, e os sem-terra não sejam formigas.
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