AUTONOMIA PARA PERICIA TECNICA, PERITOS LEGISTAS E PERITOS CRIMINAIS

Promover a autonomia e a modernização dos órgãos periciais criminais, por meio de orçamento próprio, como forma de incrementar sua estruturação, assegurando a produção isenta e qualificada da prova material, bem como o princípio da ampla defesa e do contraditório e o respeito aos direitos humanos.”

Pode-se dizer que houve um empate técnico. A diretriz acima foi a segunda mais votada na 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, em agosto, com 1094 votos - um a menos que a primeira. Descontando-se os votos dos cerca de 40 peritos criminais de vários estados presentes na conferência, foram mais de mil votos, depositados por representantes da sociedade civil e por profissionais e gestores da segurança pública. Ou seja, é ponto pacífico. Certo?

Não. A autonomia da perícia oficial é “elementar, meu caro Watson” para muitos, mas não para todos. Em seis estados do Brasil, entre eles Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, os órgãos periciais criminais estão vinculados à Polícia Civil.

Para os peritos, essa situação afeta as condições de trabalho, já que sem destinação orçamentária garantida, não há investimentos regulares em equipamentos, materiais e no quadro profissional. Além disso, a subordinação favoreceria ingerências por parte de delegados e agentes sobre o trabalho pericial, de cunho exclusivamente científico.

Mas na visão da Polícia Civil a coisa é diferente: a perícia deve estar ali mesmo, subordinada a ela, a serviço da investigação. De acordo com Wladimir Sergio Reale, presidente da Associação de Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro (Adepol/RJ), no mundo todo a atividade pericial faz parte da função da Polícia Judiciária.

"Confundem a autonomia do exercício da função - que existe - com uma questão de organização. Os estatutos dos estados são norteados pela Constituição Federal. A perícia criminal é uma atividade típica de polícia judiciária, faz parte do sistema de segurança pública. E segurança pública é polícia", afirma.

O momento é de meio termo. Em agosto, foi aprovado por unanimidade pelo Senado o Projeto de Lei 204/2008, que prevê a autonomia dos órgãos periciais em âmbito nacional. A Lei, que aguarda sanção do Presidente da República, é considerada um avanço, mas não atende a todos os pleitos da categoria. O projeto original, proposto em 1997 pelo deputado Arlindo Chinaglia, previa a saída da perícia da estrutura da Polícia Civil em todos os estados. Mas a condição para a sua aprovação na Câmara dos Deputados, em 2008, após quase dez anos de tramitação, foi a retirada desse item.

A Lei prevê autonomia técnica e funcional, mas os peritos querem mais. O presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Marcio Corrêa Godoy, defende a inclusão na Constituição de um capítulo que trate a perícia como uma função essencial à Justiça. Segundo ele, uma possibilidade seria inclui-la no capítulo que trata de órgãos como a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Advocacia Geral da União. “Propomos que a autonomia seja uma política de Estado”, explica.

De acordo com Godoy, nos 17 estados brasileiros onde é desvinculada da Polícia Civil, a perícia é mais avançada em aspectos como estrutura, prédio, equipamentos, efetivo, gestão e no intercâmbio com outras instituições. “É preciso que seja definida na Constituição uma política pública para atingir os demais estados onde a perícia ainda é vinculada à Polícia Civil”, afirma.

Uma corrente de direitos humanos defende que a perícia deveria ser vinculada diretamente à Secretaria de Justiça ou de Ciência e Tecnologia, ou ainda ser um órgão independente, uma autarquia. Mas, no Brasil, em todos os estados onde é autônoma, a perícia se reporta à Secretaria de Segurança Pública ou de Defesa Social, embora em alguns estados esta secretaria seja junto com a de Justiça. No Pará, a perícia é uma autarquia, mas vinculada à Secretaria de Segurança.

Credibilidade

O presidente da Associação de Peritos da Bahia, Gerluis Paixão, lembra que a perícia nasceu autônoma na Europa no século XVIII. Como a polícia usava a tortura nas suas investigações, os resultados não coincidiam. Por isso, a polícia teria incorporado a perícia, subordinando-a para garantir resultados.

Paixão lembra o caso emblemático de Wladimir Herzog, que a perícia concluiu como suicídio. Na noite de 24 de outubro de 1975, o então diretor de jornalismo da TV Cultura apresentou-se no Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, para prestar esclarecimentos sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro. Foi morto no dia seguinte, aos 38 anos. A versão oficial dizia que ele teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário. Antes do funeral, entretanto, um rabino viu marcas de tortura no corpo. Em 1978, o legista Harry Shibata confirmou ter assinado o laudo necroscópico da vítima - na qualidade de segundo perito - sem examinar ou sequer ver o corpo.

No mesmo ano, a Justiça responsabilizou a União por prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. Esse episódio, segundo Paixão, desencadeou nos anos 80 um movimento de peritos por autonomia, considerado fundamental para o fortalecimento da prova científica.

“É um trabalho objetivo, não subjetivo. É técnico, não policial”, enfatiza. Para ele, a autonomia dá mais credibilidade à perícia. “Com autonomia, o perito não poderá dizer que foi pressionado para dar um determinado resultado, e terá que assumir sozinho a sua conduta”, explica.

O perito acrescenta que no Brasil há um grande índice de crimes cometidos por policiais, o que seria mais uma razão para desvinculação da perícia da polícia. “Alguns autos de resistência são verdadeiros e ninguém mais acredita”, diz.

Bahia e Amapá são referências

A Bahia é estado considerado referência em perícia. Paixão conta que a perícia baiana atende a outros estados que não têm condições. O perito destaca ainda os exemplo das perícias dos estados de São Paulo e Goiás, e, do ponto de vista técnico, a perícia da Polícia Federal.

De acordo com Marcio Godoy, o grau de avanço da perícia nos estados onde a autonomia já vigora varia. Ele observa que alguns estados ainda estão em fase de reestruturação e destaca o Amapá como modelo. “No Amapá, a autonomia é quase plena, ligada diretamente ao governador e administrativamente à Secretaria de Defesa. Mas tem orçamento próprio e administração. O chefe da perícia está no mesmo nível do chefe de polícia e do comandante da PM”, conta o presidente da ABC.

Godoy acrescenta que há 70 peritos no Amapá, para uma população de 600 mil habitantes. Segundo estudo de 2002 da ABC, a necessidade em condições ideais é de um perito para cada 5 mil habitantes. “Os peritos do Amapá podem atuar em diversas áreas, como ambiental, informática, contábil e identificação, além dos crimes contra a vida. Há laboratórios de balística, toxicologia, DNA e fonética forense, entre outros”, revela. A perícia é autônoma desde 1989 no estado.

Outros casos de sucesso para Godoy são Pará, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, este “um exemplo clássico”. Segundo ele, desde 2000, quando conquistou a autonomia, a perícia catarinense vem melhorando em efetivo, capacitação, treinamento, remuneração e equipamentos.

Na sua terra, o Mato Grosso, há dez anos havia sete peritos. Hoje há 80. Já no Rio de Janeiro, segundo ele, há apenas 300 peritos para 16 milhões de habitantes. “No Rio, não há efetivo, equipamento e estrutura básica. Quando um levanta do computador, imediatamente senta outro. Os peritos vão a 20 locais no mesmo dia. O resultado não chega com eficiência, a demanda vive atrasada. Além disso, há perseguição e ingerência, como a transferência de peritos para outras regiões”, critica.

No Rio, delegados brecam Lei

Para Alexandre Giovanelli, primeiro secretário da Associação dos Peritos do Estado do Rio de Janeiro, a lei aprovada pelo Senado é um avanço tímido, mas representa mais um passo na garantia da produção de uma prova material sólida e científica. "A vitória não é só dos peritos, mas de todo cidadão. Agora falta só o governo do estado do Rio de Janeiro confirmar a autonomia da perícia daqui”, reivindica.

Ele se refere à Emenda Constitucional 035/2005, do deputado estadual Alessandro Molon, que previa uma Lei para garantir organização e estrutura próprias ao órgão responsável pelas perícias no Rio de Janeiro. Aprovada com maioria absoluta na Assembléia Legislativa em 2005, a lei foi derrubada por uma ação de inconstitucionalidade impetrada pela Adepol, apontando que a Lei deveria ter sido encaminhada pelo governador e não pela Assembléia.

Para Giovanelli, o problema é grave porque os órgãos de polícia técnica não têm destinação orçamentária e fazem uma atividade diferente, técnico-científica. Ele explica que o trabalho da perícia é híbrido, porque o corpo teórico é científico, mas a aplicação é jurídica. E quem administra é um delegado, que tem formação jurídica. “Há uma dificuldade de entender certas necessidades de investimentos”, afirma.

As principais reivindicações dos peritos, de acordo com Giovanelli, são previsão orçamentária, gerenciamento feito por um técnico e vinculação a institutos de pesquisa, para produzir conhecimento com financiamentos de agências. Para ele, o vínculo com universidades fortalece a prova técnica e diminui a ingerência. “A autonomia possibilita uma perícia isenta e qualificada, que respeite as garantias individuais e o atendimento igualitário a todas as camadas sociais”, defende.

A fim de garantir a autonomia da perícia no que concerne a dotação orçamentária, gestão técnica e possibilidade de convênios com instituições de pesquisa, a Aperj encaminhou ao diretor do Departamento de Polícia Técnico-Científica (DPTC), Marcus Neves, algumas propostas de alterações na legislação em vigor no Rio de Janeiro (lei 3586/2001 e decreto 34633/2005). Procurado insistentemente pelo Comunidade Segura, o delegado Marcos Neves não deu retorno.

Segundo Giovanelli, em 4 de dezembro de 2007, num debate realizado na Aperj, autoridades e delegados da Polícia Civil, um promotor, um defensor público e o pesquisador Ignacio Cano, concordaram com pontos como a direção do DPTC feita por um perito, o escalonamento salarial diferenciado para os peritos (como ocorre com delegados) e dotação orçamentária, conforme registra o relatório do evento.

Para o presidente da Adepol/RJ, Wladimir Reale, o maior problema financeiro no Rio são as carreiras engessadas. "É preciso valorizar a função com melhores salários. Mas o escalonamento é vertical, militarizado, e o perito é o carro-chefe. Para aumentar o perito, é preciso aumentar todos os outros na Polícia Civil, à exceção dos delegados", explica Wladimir Reale.

O delegado defende que haja uma verba carimbada para a perícia, assim como para todo o sistema de segurança pública, e que os órgãos periciais sejam chefiados por técnicos - inclusive o Departamento de Polícia Técnico-Científica -, mas continuando integrados à polícia judiciária.

Segundo a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, as reivindicações dos peritos do estado chegaram há pouco tempo. “Um grupo de pessoas está levantando, junto à Polícia Civil, os prós e os contras desse desligamento do órgão. Como o assunto é polêmico, o grupo ainda não chegou a uma conclusão definitiva sobre o assunto e as discussões continuam. Por isso, não temos uma posição conclusiva para passar a esse respeito, por enquanto”, informou a assessoria.

Falsear laudo é 'conversa para boi dormir'

O delegado Sérgio Caldas, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, viu de perto as conseqüências da falta de investimento quando foi coordenador geral dos órgãos de perícia em 1999. Ele reconhece que a perícia não tem uma estrutura adequada porque a Polícia Civil destina os recursos para a atividade fim, que é a investigação. Mas vê exagero no pleito dos peritos.

“A falta de carinho e cuidado da administração com o corpo pericial acabou causando uma reação exagerada pela autonomia por autonomia. Não vai haver autonomia se não houver investimento. Há uma questão de vaidade em querer ter uma estrutura completamente independente”, diz.

Assim como Reale, Caldas defende que seja definido um percentual do orçamento da Polícia Civil para a perícia. “Tendo autonomia funcional e verba carimbada, pode-se restabelecer a questão da gerência e dar tratamento salarial. O quadro é bom, mas falta investimento na pessoa”, afirma. Ele considera um bom exemplo a perícia do Distrito Federal, que tem estrutura e salário e está ligada à Polícia Civil.

Para Caldas, a separação causaria um “prejuízo claro” ao segmento investigativo. Ele considera importante que o agente ou delegado possa “chegar junto com o perito para conseguir agilidade para os laudos”.

“O delegado está ali para descobrir a verdade e não para premeditadamente prejudicar alguém. Essa história de que ele falsearia na verdade do laudo é conversa para boi dormir”, garante. Reale faz coro: "Não existe nada disso. Nunca vi, depois do caso do Shibata, no regime militar. Mas se ocorrer é um abuso, e o perito deve falar com o seu chefe."

Saiba mais:

Tabela com a situação dos órgãos periciais nos estados brasileiros

O local é do perito! - Entrevista com Elcio Carvalho da Costa, presidente da Aperj.

Em outros sites:

Associação Brasileira de Criminalística (ABC)

Associação dos Peritos do Estado do Rio de Janeiro (Aperj)

Relatório sobre as condições da polícia técnico-científica no Rio de Janeiro, março de 2007

Relatório final do Seminário sobre a Reestruturação e Autonomia da Perícia Oficial do Rio de

Janeiro, realizado em 4 de dezembro de 2007

Reportagem sobre perícia na TV PUC-Rio, com diversos entrevistados

OFICIO AO CHEFE DA POLICIA DO RIO DE JANEIRO

Ofício no: 009/APERJ/2009

Rio de Janeiro, 09 de outubro de 2009.

Ao Ilustríssimo Senhor

Allan Turnowsky

Chefe de Polícia Civil

Ilustríssimo Senhor Chefe de Polícia,

Recentemente estivemos reunidos com o Sub-Chefe de Polícia Civil, Waldeck Monteiro e o Diretor do DPTC, Marcus Neves e na oportunidade estabelecemos alguns importantes consensos acerca da necessidade de reestruturação e valorização da perícia criminal e perícia médico-legal do estado.

Entretanto, no dia 24 de setembro de 2009, o Governador emitiu o decreto 42.046/2009 que muito frustrou as nossas expectativas. O referido decreto estabelece uma gratificação de R$ 350,00 para os policiais civis, aumenta a gratificação referente ao Programa Delegacia Legal para R$ 850,00 e cria uma gratificação de R$ 850,00 para os delegados de polícia. Levando-se em conta que quase 70% das delegacias fazem parte do Programa Delegacia Legal e que apenas 5% dos peritos criminais e legistas estão inseridos neste mesmo programa, entendemos que a quase totalidade dos peritos foi preterida em relação às demais classes policiais. Soma-se a isto, o fato de oito Postos Regionais de Polícia Técnico Científica terem sido criados dentro da estrutura da polícia civil, sem que houvesse concomitante inclusão dos mesmos no Programa Delegacia Legal, no que tange à informatização dos processos de trabalho e à concessão de gratificação.

Reconhecemos que o dispositivo legal acima citado é de atribuição exclusiva do Governador, mas solicitamos a intervenção e/ou apoio do Ilustríssimo Senhor Chefe de Polícia a fim de corrigir a discrepância criada, tendo em vista que todos concordamos com o pleito de tornar o salário do perito adequado às suas atribuições e compatível com a hierarquia observada dentro da estrutura policial.

Solicitamos o apoio de V.S.ª ao nosso pleito, entendendo que existem diversas possibilidades de minimizar a atual defasagem salarial do perito criminal e legista, tal como a criação de uma gratificação específica para a perícia oficial ou a incorporação ao salário base da, já existente, Gratificação por Atividade Técnico-Científica (GATC). Entretanto, aguardamos seu pronunciamento a esse respeito e solicitamos uma audiência a fim de apresentarmos nossas propostas de reestruturação.

PAULO ROBERTO SILVEIRA
Enviado por PAULO ROBERTO SILVEIRA em 13/10/2009
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T1863201
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