Os rótulos da segregação

Em dezembro passado, apesar do pai e a mãe bêbados, Sirizinho chegou alegre no casebre. A sardinha queimava no fogo, farinha inchando dentro do caldo de buriti: Janta do dia! Enfim, havia passado no colégio: saia da primeira para a segunda série. Um rótulo em suas provas me chamou a atenção: “Mãe alcoólatra”. Talvez anotação da diretora, atentando caso especial.Esqueceram o complemento: “...e louca”.

Jamil, companheiro de Sirizinho, também comemorava. Durante dois anos, tentei convencê-lo a freqüentar uma sala de aula; ano passado, valeu a pena: a mãe, mulher sem homem certo, resolveu matriculá-lo. Os dois comemoram com banho no Barreirão. Era o início de uma estrada a ser percorrida; talvez um sonho a se tornar realidade através de uma sala de aula.

No natal passado, voltei para casa com a consciência menos suja – durante seis meses, fiz o que pude – sem o dogmatismo do velho bordão: “Pago meus impostos, isto é problema público”! E no serviço público a maioria é vassoura de pau mandado: cada um limpando seu canto e repassando a sujeira ao outro; faz-se de conta que trabalha enquanto o governo faz de conta que paga.

Alegria de pobre dura pouco. Chica Bebum, mãe de Sirizinho, na lucidez da sua loucura alcoolizada, duas vezes foi ao colégio: diz não ter encontrado a sala do filho para renovar matrícula. A de Jamil encontrou velho companheiro e se enfurnou, em mais uma lua-de-fel, nas matas da S’antana; o filho ficou com o avô: aleijado das pernas e dos braços – se arrasta na casa e vive no vício da cachaça e fumo de mascar. Sem ninguém para representá-los, ambos perderam as matrículas.

Sabedor da história, tentei explicar cada caso. A diretora do colégio deu-me única resposta: “Não temos vagas, não posso fazer nada; tente outro colégio!” – o empurra-empurra da sujeira dentro do serviço público, sem ao menos levar-se em conta os problemas sociais em que vive cada família – apesar da rotulação alunos.

E nessa pintura da educação pública, em final de ano pré-eleitoral – em pleno período de ensino - os gastos nos colégios são para “caiar” paredes; alunos sem aulas ou “presos” nas salas durante o horário do recreio para não manchar os retoques, nenhuma sala construída para amenizar o velho problema da lotação de todo início de ano letivo.... Os marketeiros orientam: não façam reforma em época de férias, a população não tomará conhecimento do gasto público.

Apenas interesse eleitoreiro. Em cada ano de eleição, a enganação na mídia não tarda a vir. “Toda criança na escola.”, “Educação é prioridade”... Velhas frases de efeito amordaçando a verdade oculta; crianças sem aulas, salas super-lotadas... Diretores e professores lavando as mãos, passando a sujeira para outro terreiro; alguns até com boa vontade, mas de mãos atadas; outros cuspindo fora o poder de dizer “Não”.

Fiquei com a sensação da inutilidade do ser: nada poder fazer diante do tratamento a estes filhos da segregação social! Não olhei a papelada de Jamil, mas, se não escreveram, devem ter esquecido de anotar, com caneta vermelha, mais um rótulo dos que sofrem da síndrome do “P”: “Mãe Puta!”

Não é necessário dizer a cor dos meninos!

Até mais ler, pelos rótulos anti-sociais da vida!!

*****************************************************

P.S Este "artigo" foi remetido aos principais meios de comunicação do país, em janeiro deste ano. Principalmente os do meu estado (Piaui) – sem falar dos órgãos ligados aos direitos da criança e do adolescente. Nenhuma resposta recebi; os meninos continuam sem estudar, entregues à sorte dos seus destinos.

Sirizinho e Jamil eram alunos do Colégio Municipal Arthur Medeiros Carneiro - Usina Sant'ana - Teresina (PI)

Contato: Kal-angelus@ig.com.br

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 02/07/2006
Reeditado em 02/07/2006
Código do texto: T186251