Palavrões para quê? (6)

Toda a gente pode constatar que o mais utilizado sítio da Internet – Declarações Fiscais – tem em rodapé “© 2002 DGITA”.O sítio da Segurança Social ostenta “© II, I.P. 1999-2007”. O sítio dos Serviços Tribunais exibe “© 2002-2005 Projecto Habilus”. No sítio do IPPAR, que tanta relevância tem quando pretendemos ousar construir uma casa, está registado: © IPPAR 2001- 2006 Todos os direitos reservados. E muitos mais poderiam ser apontados, mostrando que a coroa de glória deste Governo português vem sendo já desenvolvida há muitos anos. O que não é de admirar, porque é impossível consolidar uma tão radical mudança de hábitos burocráticos em cerca de dois anos.

Sem o mais leve menosprezo pelo Plano Tecnológico, o que faz o nosso Governo, ao sobrevalorizar as melhorias recentes dos serviços públicos online decorrentes do apertar do cinto com o objectivo único de baixar o deficit, senão «dourar a pílula»?

Vêm os dois parágrafos introdutórios a propósito da frase “dourar a pílula”, isto é, «apresentar algo difícil ou desagradável como coisa fácil de aceitar» ou «suavizar uma ideia trocando uma palavra ou expressão por outra menos desagradável ou chocante».

Diz-se, impropriamente, que esta expressão vem da prática das farmácias antigas, que consistia em embrulhar pílulas em finos papéis, com o fim de preparar psicologicamente o cliente para engolir um remédio de gosto amargo.

Digo impropriamente porque não era exactamente assim que acontecia.

Tratava-se de revestir as composições dos boticários com uma camada de açúcar, ou com uma fina película de prata, digamos, ouro, para evitar o infame sabor e a possibilidade de se colarem entre si. O preço ficava difícil de engolir, mas o mesmo não sucedia à droga.

De qualquer modo “dourar a pílula” é, hoje, «táctica subtil de persuadir renitentes, quando se procura destacar os aspectos positivos de algo desfavorável.» E os políticos e gestores, em época de globalização – cif. vacas magras – nela gastam o melhor do seu tempo.

Parafraseando Molière, escritor do século XVII, que colocou na boca de um personagem do Anfitrião a tirada "o senhor Júpiter sabe dourar a pílula". E, depois de Molière, escreveu o mesmo Corneille e Saint-Simon.

Os «palavrões» de hoje, vão os cinco citados dum livro que me ocupou no passado verão: A Caveira da Mártir, de Camilo C. Branco. O título é tenebroso, o autor prenuncia e engendra desgraças, mas a leitura é agradabilíssima.

• Crebro – Adjectivo que significa repetido, frequente.

«E, descaindo a face sobre o papel, chorou em crebros soluços. Ouviu então um bater surdo e pressuroso na porta. Foi abrir, e viu a criada Simoa dos Santos, que lhe disse muito baixinho, guinando os olhos para os lados: - Minha senhora, olhe que eu fui obrigada a escutar o que vossa senhoria disse.»

• Tredo – Adjectivo que significa falso, traiçoeiro, traidor.

«Routier ouviu-o, bebeu algumas taças de uma aguardente que Elliot deglutia com frenesi, como se estivesse bebendo o sangue do tredo patrício…»

• Desatrema – Verbo desatremar que neste contexto significa “perder o juizo”.

«- No harém! Credo!... Bendito seja Deus, que nem estamos na Turquia, nem o sr. D. João V é imperador de Marrocos! Vossa senhoria desatrema, sr. padre Francisco!... Deus me livre que o ouvissem!...

• Bangalé – Patuscada campesina, com comezaina.

«… e, a respeito do frade, acrescentou que o não convidava receoso de ser desfeiteado, visto que os santarrões de Lisboa consideravam a assembleia francesa uma bangalé de demónios».

• Cascabulho – Neste trecho quer dizer, alegoricamente, “montão de cascas”. Também pode ser “maçaroca de milho” ou “casca de castanha”.

«- Veja que tolo este! Que maravalhas aqui vão, doutor! É com este cascabulho de palavrório que os tais poetas embelecam os incautos espíritos das crianças!»

Nota: Publiquei num jornal/papel cinco artigos sotopostos a este título.

As minhas leitoras, pela caixa alta farejando escândalos e mexericos, confessaram não perceber patavina do meu intuito.

O sexto artigo ficou na gaveta.

É que eu recuso-me a pender a minha cabeça livre para o sulco aberto, a enfiar para debaixo da canga.

Ainda que o que escrevo fique na gaveta...

ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 08/10/2009
Reeditado em 08/10/2009
Código do texto: T1854893