Marcelo Roque, José Reis, Martin Heidegger, ciência, poesia e linguagem

Glória Kreinz*

Onde encontramos a fala da linguagem?

Martin Heidegger

O filósofo alemão Martin Heidegger diz que "o verso evoca o entre, o meio reunidor, em cuja intimidade os gestos das coisas e a doação do mundo se dimensionam entre si" (Heidegger; 2003,21), e este meio reunidor é um dos elementos básicos para se pensar Uma Nova Teoria da Comunicação e também para se aproximar de fatos e acontecimentos ao nosso redor, dificilmente explicáveis em suas múltiplas dimensões de sentido.Quando Marcelo Roque, poeta do Orkut da equipe do NJR/ECA/USP diz

O SER E O ESTAR

A poesia é o poeta,

mas o poeta,

não é a poesia

Marcelo Roque

o que está mostrando é este momento que a fala da linguagem se torna a fala do mundo.

O coordenador geral do FiloCom e do NJR/ECA/USP, prof. Ciro Marcondes Filho, publicou em 1997 o livro SuperCiber, A Civilização Místico-Tecnológica do Século 21, onde recupera a relação da cibercultura com diversas áreas do conhecimento, inclusive a arte e a poesia.

Inicia o capítulo O poético e o verdadeiro, dizendo que "para Novalis, quanto mais poético, tanto mais verdadeiro", tomando um dos poetas prediletos de José Reis, autor do qual lemos algumas poesias para este ensaio, como referencial e também Marcelo Roque, que publicamos na coleção do NJR/ECA/USP, V11, e 12.

Estes autores reafirmam, em artigos diferentes, o relacionamento entre realidades que se organizam nos limites subjetivos da poesia, e impressionam pela fulguração de novos fluxos comunicacionais, onde, como explica Heidegger, "o acontecimento se liga ao ato apropriador da linguagem, que estabelece diferenças". Os pesquisadores sentem-se atraídos pela mágica da poesia de Novalis. A leitura que fizemos das poesias de Reis foi sobre o enfoque de Heidegger, pois suas colocações teóricas apresentam visões de mundo muito próximas, já que o poeta e cientista brasileiro sofreu forte influência da cultura alemã, desde que trabalhou com Rocha Lima. Marcelo Roque reflete uma erudição mais universal.

Há diferentes argumentações que procuram explicar a relação ciência e arte, sendo a poesia uma vertente bastante significativa, sobretudo quando nos lembramos que muitos versos, para Heidegger, revelam a presença do ser como "iluminação da linguagem". Elevar-se até o ser que existe em cada um de nós, enquanto entes, seria "habitar nele, no ser, através da poesia".

A revelação do verdadeiro ser que habitava em José Reis apontava a poesia como forma de se aproximar dele. Desde que comecei a trabalhar com o Projeto José Reis: Unidade na Diversidade, em 1992, um dos fatos que mais me chamou atenção foi o tratamento especial que ele – José Reis - dedicava à poesia e à linguagem, acontecimento este responsável pelo dinamismo que imprimia à vida ao seu redor, colocando ao lado da disciplina do cientista a transgressão que o espaço artístico permite, sem misturá-los, assumindo aquilo que Adorno chama de dialética negativa, "que nega a identidade entre realidade e pensamento". Em carta escrita para a amiga Maria Julieta Ormastroni declara que nasceu para poeta e pintor e que era um boêmio frustrado. Em pensamento transgrediu a realidade, nas suas poesias deu concretude ao seus pensamentos e nos permitiu conhecê-lo melhor. Hoje, a poesia de Marcelo Roque continua o seu trabalho.

A opção pela leitura heideggeriana se impôs pela formação de Reis e também pela sua visão concreta e factual de mundo. Há autores, como Jacob Bronowski (Arte e Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1983) que trabalham a relação arte/mundo, do ponto de vista da criação simbólica, propondo que "o mundo que o espírito humano conhece e explora não sobrevive sem conceitos simbólicos. O símbolo e a metáfora são tão necessários à Ciência, como a Poesia".

Diz ainda que "se a Ciência é uma forma de imaginação, se toda a experiência é um tipo de jogo, então a ciência não pode ser árida. Para o autor nem a Arte nem a Ciência são monótonas, toda a atividade é criativa e divertida, mas nenhum trabalho criativo na arte ou na ciência existe para o indivíduo se não houver uma recriação, a incorporação de uma parcela de criação pessoal". Bronowski coloca a participação e a vivência dos leitores como elemento apropriador de sentido.

O filósofo alemão Martin Heidegger prefere dizer, como já enfatizamos, que "o verso evoca o entre, o meio reunidor, em cuja intimidade os gestos das coisas e a doação do mundo se dimensionam entre si"( Heidegger; 2003,21), e esta argumentação calcada na relação coisas/mundo está mais próxima da prática de José Reis, do que a visão simbólica e genérica de Bronowski.

José Reis, na introdução do Memorial para o prêmio Kalinga, enviado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, para a UNESCO, em 1974, refere-se à estreita ligação entre poesia , ciência e vida, dizendo ter aprendido com o professor Henrique da Rocha Lima. Demonstra abertura para conceitos como os de Heidegger, quando menciona a ciência e o além da ciência, em seu entendimento do que seja a obra poética. Diz, referindo-se a Rocha Lima:

"Com ele aprendi a filosofia mais profunda da ciência, sua arte e administração. Aprendi a tolerância e o desejo de, pelo respeito e cultivo de outros valores além dos científicos, buscar, na medida de minhas forças, o limiar da sabedoria. Seu exemplo convenceu-me da necessidade e do valor da comunicação da ciência e para fora dela. Dele aprendi, enfim, a viver ou procurar fazê-lo, como no verso de Rilke, em círculos crescentes".

O conceito de círculos crescentes liga-se a um movimento contínuo, e ao entre de Heidegger. Este caráter de transformação permanente, que remete à postura adotada pelos estóicos desde a antigüidade clássica, foi enfatizado no livro A Espiral em Busca do Infinito (Pavan, C. e Kreinz, G. - Ensaios sobre José Reis, NJR, São Paulo, 1998) e mais tarde, com os avanços dos estudos sobre uma nova teoria da comunicação, com o entre heideggeriano, na essência da construção poética.

Dois fatores fundamentais da poética de José Reis permitem esta postura teórica: a estreita relação entre ciência e poesia, sob o enfoque da criação na relação cientista/mundo e a certeza de que a ciência deve ser comunicada como ela mesma, enquanto objeto de descobertas, revelando a imprevisibilidade da natureza, a "porta de entrada para o ser". Divulgando suas descobertas o cientista se abre para o universo que interpreta, de onde tira matéria prima para suas pesquisas e para suas interrogações, permitindo indagar sobre o "valor da comunicação da ciência e para fora dela". Marcelo Roque, em suas poesias sobre divulgação científica, dá continuidade a esta postura.

José Reis tem a percepção de um universo onde a matéria prima de sua intuição/expressão, permite pensar que entre ciência e arte há um relacionamento próprio, onde, como explica Heidegger "a diferença de mundo e coisa apropria as coisas no gesto do mundo, apropria o mundo, concedendo coisas" (Heidegger; 2003,20) .

Esta conceituação que permite dar suporte a mundo e coisa, ou a ciência e o que existe fora dela, " é o acontecimento apropriador da diferença" (Heidegger; 2003, 24). A linguagem se apropria de forma empírica dos acontecimentos que estão no mundo, ao nosso redor, estabelecendo diferenças e transformando, muitas vezes, o indizível em dizível. Vale lembrar que Heidegger trabalha os versos de Novalis, sobretudo no capítulo que interroga O Caminho para a Linguagem, no livro traduzido para a língua portuguesa, em 2003, com o título de A Caminho da Linguagem, pela editora Vozes.

No início do capítulo citado Heidegger escreve: "Escutemos, para começar, algumas palavras de Novalis. Elas se encontram num texto chamado Monólogo. O título acena para o mistério da linguagem: a linguagem fala unicamente e solitariamente consigo mesma. Uma frase do texto diz: ‘Precisamente o próprio da linguagem, ou seja, o fato de apenas concernir a si mesma, isso ninguém conhece’" (Heidegger; 2003, 191). A proposta do filósofo alemão diz respeito ao que é silenciado, mas transparece no fazer poético.

REDENÇÃO

Para a palavra,

o verso,

nada mais é,

que a sua redenção

Marcelo Roque

Em muitas das poesias de Reis e Marcelo Roque há este questionamento proposto por Novalis, que Heidegger tenta resumir da seguinte forma: "Será o caminho para a linguagem como linguagem o mais longo e extenso que se pode pensar? E não apenas o mais longo, mas também o mais cheio de obstáculos oriundos da própria linguagem tão logo tentamos pensar, genuinamente e sem desvios, a linguagem no que lhe é próprio?" (Heidegger; 2003, 192).

Nas poesias vamos surpreender José Reis em pleno enfrentamento do problema linguagem/poesia/mundo, tais como no verso " A vida construi com tijolos de sonho". Uma pergunta nos ocorre. Será que o divulgador científico e jornalista estava preparado para o que pretendia fazer?

Se pensarmos que desde a antigüidade mais remota, conforme discute o cientista Ilya Prigogine, o cientista e o artista andam juntos, cada um completando a atividade do outro, tornando sensível, muitas vezes, o conhecimento abstrato, responderíamos afirmativamente, que José Reis conhecia os riscos do que pretendia. Mas há outros acontecimentos que completam esta afirmação.

Um dos exemplos da ligação ciência e poesia é encontrada no século 12, quando o astrônomo persa Omar Kayyam escreve versos que até hoje encontram ressonância, como é o caso dos Rubaiyat, compostos de 110 quadras, que discutem a transitoriedade da existência humana. Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, p.2141, assim se refere ao poeta/cientista:

"Omar Kayyam fez versos à maneira de uma tradição antiga na literatura persa: apresentou um credo místico, em parte seriamente, em parte para poder alegar um sentido alegórico nas suas canções de vinho. Com efeito, parece ter sido um grande bebedor, amigo das flores e das moças. O vinho era seu narcótico para agüentar melhor o outro credo seu, o de um místico ateu, epicureu, acreditando na destruição definitiva do homem, no Nada absoluto depois da morte" (Carpeaux, 1968). Esta explanação de Carpeaux lembra a angústia existencialista heideggeriana, que partia de um projetar-se no mundo e com o mundo.

O poeta/cientista persa, que pensava neste nada existencial, teve inúmeros leitores, e entre seus tradutores mais famosos encontra-se o inglês Edward Fitzgerald, que colocou os versos dos Rubaiyat, em inglês. Otto Maria Carpeaux considera Fitzgerald um pessimista vitoriano, sui generis, que modela e remodela "seus versos à maneira de um parnasiano, transformando o agnosticismo positivista da sua época em doce música romântica, transfigurando one moment in annihilation’s waste em obra de arte pura." (Carpeaux, 1968)

José Reis nutria grande admiração pelo cientista e poeta persa, mas conhecendo melhor a língua inglesa é através de E. Fitzgerald que José Reis traduz, para a língua portuguesa, 92 quadras que denomina de Meu Rubaiyat. São quadras escolhidas entre as 110 escritas por Kayyam, que o cientista brasileiro julgava as melhores para expressar uma inquietação frente ao "homem voltado para a morte", que também era sua. Diante de um universo que mesmo avançando em termos de conquistas científicas não consegue aplacar a insaciável sede de conhecimento do ser humano frente a própria existência, José Reis assim traduziu o poeta persa:

XLVII

Ai, se o lábio que beija, e o vinho rubro e ardente

Findam no grande Nada - são tristes bens terrenos!

Pensa que, vivo embora, és hoje tão somente

O mesmo que serás - Nada - nem mais nem menos.

O ser- para-a-morte, ponto expressivo da filosofia de Martin Heidegger, também estava presente nas opções de J. Reis. A transitoriedade e a precariedade do homem, num tempo infinito, ficam bem marcadas nestes versos do Rubaiyat, de Omar Kayyam, que José Reis considerava como seus Rubaiyat. Indicam também sua inquietação e constante procura pelo sentido da existência, explicando seus artigos de divulgação científica presos às ultimas descobertas da ciência, procurando mostrar um pouco mais sobre o Mundo, a Vida e o Universo, revelando faces do mundo movente ao seu redor. Encontramos também temas mais amenos, tratados de forma irônica, pois fazem parte "da ruína da existência cotidiana", inclusos entre as quadras traduzidas por Reis, tais como o amor e o vinho:

O Vinho:

XLI

Muito embora com Régua e Linha, ou desarmado,

Os problemas do Ser e do Onde haja versado,

Bem certo é que de quanto eu cogitei no Mundo,

Tão somente no Vinho eu fui sábio e profundo.

José Reis não traduziu apenas o Rubayyat, mas também seus poetas preferidos como Rilke e Novalis. Trilhando as veredas do fazer poético, conhecia a estranheza a que os caminhos da linguagem poética conduziam. Sabia, como propõe Heidegger, da interrogação sobre se "estamos na linguagem a ponto de fazermos a experiência de sua essência, de a pensarmos como linguagem, percebendo, numa escuta, o próprio da linguagem" ( Heidegger;2003,192). José Reis era um cientista, e como tal, no silêncio, fez sua própria experiência que revelou muito de seu ser e de sua existência. Marcelo Roque trabalha a ciência e a poesia com a mesma intensidade.Eis seus versos exemplificando e representando o século XXI, assim como José Reis representa o século XX.

"HUBBLE

Para onde quer que aponte suas lentes,

lá estarei;

flamejante

e distante,

qual estrela;

silencioso

e perturbador,

qual solidão

O telescópio espacial Hubble, foi lançado ao espaço no ano de 1990,

com o objetivo de fazer observações espaciais mais nítidas e precisas,

já que, em terra, os telescópios convencionais sofriam com as

distorções das luzes captadas, por razão da interferência da atmosfera

terrestre

Este telescópio, foi batizado em homenagem ao astrônomo dos Estados

Unidos, Edwin Powell Hubble, que revolucionou a astronomia, ao constatar que o universo estava em constante expansão". E fazendo a experiência da expansão da linguagem com nossos poetas, acrescentamos nós...

Notas bibliográficas

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* Glória Kreinz, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e pesquisadora do FiloCom, é coordenadora de pesquisa do NJR, Núcleo José Reis de Divulgação Científica da ECA/USP, desde 1992; tem o título de professora titular em História da Literatura pela PUC de Campinas. Publicou, entre outros livros, Divulgação Científica na Sociedade Performática, da coleção Temas da Ciência Contemporânea, São Paulo, ABRADIC, 2004 e Fogos na Noite, poesia.