Breve Estudo Psicanalítico Sobre o Suicídio

Nossa mente tem imensas dificuldades em “não saber”, em conviver com sua própria impotência e ignorância, principalmente quando as questões se referem a dúvidas existenciais que nos atingem no mais íntimo de nosso ser, tais como as origens da vida, seu sentido e destino, nosso papel no universo, Deus, a morte. Principalmente a morte, o fim. É esse insuportável não saber que nos impele a buscas e respostas: religiosas, metafísicas, ideologias, cientificas, que se desembocam sempre em idéias reducionistas, falsas, ou bastante parciais. Mas às quais com freqüência nos aferramos fanaticamente, levando-nos a criação de “certezas”. São essas “certezas”, encobridoras de crenças, que nos permitem tolerar a imensa angústia frente ao desconhecido.

É quase impossível cogitar que alguém tire sua própria vida sem que nos desesperemos na busca de explicações e motivos. Porque um suicídio, além de nos mostrar a realidade pavorosa da morte, alerta-nos, de modo cruel, de que potencialmente nós mesmos poderemos procurá-la. E, sem saber, necessariamente, o que nos levaria a isso...

No entanto, um suicídio também nos faz tomar consciência de que podemos escolher a forma e a hora de nossa própria morte. Essa solução é extremamente terrificante, justamente por ser magnífica. Terrível porque ela pode nos tomar de assalto, levando-nos ao auto-extermínio, ainda que desejássemos lutar para que a vida fosse melhor, digna de ser vivida, como bem sugeriu o filósofo René Descartes. E magnificamente sedutora, por nos fazer crer que somos poderosos, como deuses, donos de nossa própria morte, como pensou o personagem Kirilov, do romance do escritor Fiódor Dostoiévski intitulado “Os Demônios”, um livro sensacional onde o personagem em questão se mata para confirmar seu “terrível arbítrio”, arbítrio esse que só um “Deus” poderia possuir.

A importância de fatores culturais é evidente quando verificamos que as taxas de suicídio se mantêm mais ou menos constantes durante décadas em cada comunidade. No mundo ocidental, elas podem ser cinco a dez vezes maiores em países escandinavos e da Europa Central, em relação aos mediterrâneos e os da America Latina. É possível que nestes últimos países existam outros métodos, mais sutis, de deixar-se morrer. No Brasil, suspeito eu que existem cada vez mais homicídios precipitados pela vítima, verdadeiros suicídios, como ocorre com nossos jovens abandonados que se envolvem com a criminalidade e as drogas. Chacinas e impunidades fazem parte de nosso cotidiano, não só aquelas noticiadas pelos jornais, como também as que decorrem de mais fatores desumanizantes, em filas ou dentro de hospitais mal equipados, entre idosos sem recursos, e outras pessoas descartadas pela nossa sociedade. Enfim, parte da sociedade, ao deixar morrer outra parte, está se suicidando. Suicídios, no sentido mais comum do termo, também podem ocorrer nestes indivíduos, ou noutros, que se vêem perdidos numa sociedade alienada e alienante, e se aproximam ao que Durkheim conceituou como “suicídios anômicos”.

Pode-se até intitular uma classe de suicidas como “altruístas ou heróicos”, como indivíduos que se matam em prol da defesa de ideais ou de outros seres humanos. Mas aqui as coisas não são tão simples. Os camicases, os fundamentalista que matam e se matam em “guerras santas”, em nome de suas divindades e crenças, a grande maioria se ver imortalizada, cultuados como heróis por seus grupos sociais. E, ainda mais importante, morrem com a certeza de serem recebidos como seres especiais, em “outro mundo”, onde serão recompensados; que digam bem as três principais religiões monoteístas de nossa atualidade: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Estamos agora frente a outra fantasia do suicida: a passagem para um mundo paradisíaco, com todas as necessidades satisfeitas, equivalente a idealização da vida intra-uterina, e do mitológico retorno a “Mãe Terra”.

Estas considerações visam a pensarmos numa proposta aparentemente estranha: a de que o suicida não quer morrer. Na verdade, seu objetivo é fugir do sofrimento e substituí-lo por uma vida após a morte, onde contenha prazer, por vezes prêmio ou compensação por seus sofrimentos ou sacrifícios realizados neste mundo. E isso independentemente de crenças ou não-crenças religiosas.

Na verdade, quando é pesquisado a

constituição e o funcionamento do Inconsciente, não se encontra uma representação convincente da morte. Em outras palavras, não sabemos o que ela é. Por isso, não é a morte o que o suicida busca, mas substitutos fantasiados. Como eles são inconscientes, somente podemos investigá-los por meio da psicanálise. As fantasias, por mais variadas que sejam, coexistem, e se manifestam diferentemente em cada individuo. As fantasias mais comuns que sustentam os atos suicidas, estudadas e encontradas pelos psicanalistas são:

1- Busca de uma “outra vida”, num mundo paradisíaco.

2- Reencontro com pessoas queridas que faleceram, pessoas estas com quem se mantinham uma relação intensamente amorosa, por vezes idealizada e dependente físico e psicologicamente. A fantasia nesse caso predominante é o reencontro num “outro mundo”. O luto patológico e o que os psicanalistas chamam de melancolia ( e que os psiquiatras denominam de transtorno afetivo monopolar depressivo). Estes quadros consistem numa introjeção de aspectos amorosos e odiosos do morto que passam a fazer parte do mundo interno do sobrevivente.

3- Vingança: o ato suicida é altamente agressivo também em relação ao sobreviventes. Na fantasia do suicida, as pessoas próximas (ou a sociedade) deverão sentir-se culpadas, com remorsos, por não terem suprido as suas supostas carências ou por injustiçá-lo.

4- Pedido de Ajuda: o suicida (deprimido, melancólico, psicótico, ou sem doença mental clara) costuma comunicar sua desesperança e desespero ao ambiente, incluindo por vezes planos suicidas. Uma tentativa de suicídio não bem sucedida é uma mensagem desesperada para que as pessoas percebam a dor do mesmo, e possam fazer algo por esta pessoa.

O melancólico se revela, através de um estudo psicanalítico, que seu mundo interno está povoado de fantasias inconscientes relacionadas a culpas terríveis, remorsos, castigos, traumas infantis, destrutividades, etc; levando este individuo a um ato suicida, podendo ser cometido por um motivo ou um fato aparentemente banal para um observador externo. Outras psicoses incluem alucinações auditivas e até visuais, que obrigam o individuo a matar-se ou a matar, como pode ocorrer com os esquizofrênicos. Existe ainda o transtorno afetivo bipolar, que alterna momentos e fases de depressão grave com outras de euforia. A chance de suicídio aumenta durante essas fases.

Existem ainda outros fatores que poderíamos chamar de “empatia patológica”, como a epidemia de suicídios que ocorreu entre jovens em vários países europeus que leram a obra “Os sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe. Os jovens se identificaram intensamente com o personagem principal dessa obra, o qual se mata “por amor”. É necessário lembrar que nessa época a sociedade vivia sob influência do movimento literário romântico. Isso nos mostra como fatores históricos subculturais se entrelaçam na rede multifatorial que pode levar ao auto-extermínio em larga escala.

Na verdade, em praticamente todos os atos suicidas (mesmo pessoas aparentemente sem problemas mentais sérios) não existe uma consciência suficientemente clara e lúcida sobre o ato e suas conseqüências. Persiste sempre um certo grau de confusão, maior ou menor, sobre os desejos de viver e morrer, que coexistem, como que se digladiando furiosamente. O desespero então se intensifica. “Ser ou não ser; viver ou não viver, eis a questão”. Muitas vezes, o sobrevivente de uma tentativa de suicídio nos conta que apenas desejava dormir, “dormir, morrer”, como diz Hamlet em seu famoso discurso. Percebemos claramente esse fator, a vontade de querer sempre estar dormindo, entre as pessoas que sofrem de depressão. É um esgotamento físico, emocional, e mental. O uso de álcool e drogas é bastante comum, e sua função de anestesiar o sofrimento, as dores internas da alma, paradoxalmente isso permite que a confusão aumente, predispondo ao ato suicida.

A questão última, se “a vida vale a pena ou não ser vivida" é, segundo o escritor ganhador do Nobel de literatura Albert Camus, "o único e maior problema filosófico existente”. A história da humanidade, ainda que plena de horrores e injustiças, tem demonstrado também que ela possui imensa força de vida, de superação, de amor suficiente para fazer com que a vida valha a pena, para nós e para todos.

Essa luta entre vida e morte, Eros e Tânatos, problema com que nós seres humanos nos defrontamos desde sempre, fica bem evidente no comportamento suicida, em que Tânatos nos seduz com a fantasia de que continuaremos vivos após o suicídio, após a morte, por vezes mais vivos e felizes do que em vida aqui.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 06/10/2009
Reeditado em 28/11/2017
Código do texto: T1851130
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.