Crepúsculo do Fundamentalismo Religioso (Preâmbulo para uma teologia iconoclasta)

RECENTEMENTE EU VENHO REFLETINDO sobre o discurso de alguns radiopregadores contemporâneos, e não dá para negar que nos encontramos diante de uma verdadeira ditadura religiosa, travestida de zelo doutrinário. Trata-se do surgimento de uma vertente do evangelicalismo brasileiro, que didaticamente denomino como “construtores de fardos” são pessoas que possuem uma queda especial pelo legalismo, pela fantasia, pelo fanatismo e pela ilusão. Esse movimento prega uma espécie de farisaísmo evangélico e seus adeptos se parecem mais com discípulos de João Batista do que seguidores de Jesus.

Conforme sabemos, João era um personagem singular no contexto do primeiro século; tinha problemas com roupas (só usava roupa de pelos de camelo e cinto de couro) era rigoroso em matéria de alimentação (só comia gafanhotos e mel silvestre), tinha tendências ao ascetismo rigoroso (morava no deserto, pregava o jejum e era celibatário); era abstêmio (não bebia vinho ou outra bebida). João era exatamente o inverso de Jesus, que era chamado de comilão e beberrão, vivia na cidade, se vestia como todo mundo, não era fanático por jejuns e era visto participando de festas e banquetes, sem nenhuma culpa ou pecado.

Não é segredo que o cristianismo, especialmente a sua versão fundamentalista, possui uma queda por fardos religiosos, parece ser inerente à sua natureza; a imagem do peregrino de John Bunian com um fardo nas costas ilustra bem esse quadro. Historicamente, o fundamentalismo construiu uma verdadeira fábrica de fardos e uma vez que eles estão prontos, são atados nas costas daqueles que inadvertidamente se submetem aos caprichos de líderes doentes, neuróticos, que confundem espiritualidade com rigor religioso, obediência com legalismo e cuja maior satisfação é acrescentar a cada dia novos pesos, novas exigências que aumentam ainda mais o tamanho desses fardos, tornando a caminhada religiosa, uma cansativa e penosa viagem, na qual é necessário se privar de todos os “prazeres do mundo”, e se apegar a jejuns prolongados, abstinência de tudo e a todo tipo de renúncia, como forma de obtenção de bênçãos espirituais.

Além disso, o fundamentalismo estabelece como padrão para todos, um estilo de vida marcado pelo rigorismo digno de um monge cenobita para dessa forma ganhar uma recompensa após a morte. Nesse sentido, é imposto ao fiel negar o aqui e o agora, a abrir mão da realidade na qual está inserido, para ter a garantia do gozo futuro na eternidade. Não sem razão, se verifica hoje um certo cansaço em relação a esse modelo de cristianismo, ele nega a natureza humana da igreja, rejeita tudo que é material e se espiritualiza. Esse modelo cristão-maniqueísta despreza afinal aquilo que diferentemente dos demais animais, caracteriza o ser humano que é exatamente a busca pela realização, pela satisfação do desejo o anelo pela realização dos sonhos, que nesse caso soa como absolutamente contrário à espiritualidade.

Nesse ambiente, o prazer é relegado como satânico, pecaminoso, imoral, ilegal e, portanto, incompatível com a “santidade” daqueles que se propõem a “seguir a vontade de Deus”. Prega-se um Deus incompreensível, esquizofrênico, que não harmoniza com a sua criação, afinal, não dá para entender que Deus tenha criado o homem dotado de desejos que efetivamente não podem ser satisfeitos.

Estou convencido de que este fardo religioso é absolutamente contrário ao princípio do evangelho, cuja característica é a plena libertação de todo tipo de correntes e amarras da religiosidade. Para os Fariseus que insistiam em enquadrar Jesus no rigorismo excessivo da religião e a obrigá-lo a tomar um fardo religioso sobre seus ombros ele foi enfático: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Mais do que nunca precisamos re-pensar a práxis da igreja, que muitas vezes se torna castradora, repressora, dominadora e, ao invés de produzir o alento, o alívio e o descanso, dedica-se a produzir fardos e a primeira coisa que o novo convertido recebe ao chegar na Igreja é um saco para colocar as neuroses e patologias que passa a receber; dessa forma não é de se estranhar que na atualidade, a igreja tenha perdido a sua relevância e já se verifique um certo desalento em relação à religião enquanto instituição religiosa.

Confesso que como a maioria dos cristãos eu já carreguei esse fardo, considerava que fazia parte das obrigações de todos os que seguem a carreira cristã. No entanto, atualmente tenho tomado algumas decisões sobre fardos religiosos e acho que posso resumi-las assim:

1. Não carrego mais esse fardo, entendo que ele não contribui em nada para melhorar o que somos, entendo que o principal papel do evangelho (e por tabela, da Igreja também) é tornar o homem melhor, nos humanizar, nos libertar das mazelas do egoísmo, da indiferença em relação à dor do outro, e nos levar para fora de nós mesmo, promover a alteridade como sinal do amor de Deus. Entendo que carregar um fardo religioso, promove o anti-evangelho, pois reduz a nossa visão ao campo de atuação da religião, nos endurece, nos torna arrogantes e intragáveis (quanto maior o fardo, maior o “orgulho santo”): passamos a nos preocupar com as filigranas da religiosidade e perdemos de vista a dimensão divina, esquecemos que a única forma de amar e servir a Deus é no outro, no qual Deus se encontra de forma anônima.

2. Não mais ajudarei na tarefa de produzir fardos religiosos, nem alimentarei a sua existência, ao contrário: direi de antemão que você também não precisa de um fardo para seguir a cristo. Sei também que muitos possuem seus “fardos de estimação”, estão viciados, dependentes deles é já não conseguem viver sem eles, no entanto, estou convencido que a vida cristã não precisa ser vivida um eterno rolar pedra ladeira acima, uma verdadeira síndrome de Sísifo. Estou convencido de que as palavras de Jesus “vinde a mim todos os cansados e sobrecarregados” nunca foram tão atuais, afinal ele falava para pessoas religiosas, que gemiam sob o peso da religiosidade farisaica, para este ele disse “eu vos aliviarei”. Não sei você, mas eu já decidi o seguinte: Abandonei o fardo religioso que me foi imposto no passado. Ele não mais me pertence ou interessa. Deixei junto a ele um aviso escrito em letras garrafais: “PONTO DE COLETA: DEIXE AQUI O SEU FARDO RELIGIOSO. Vejamos o que acontece.