Especulares do mal

ARTIGO - [ 27/09 ]

Adalberto Nascimento - http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=44&id=223265

Toda a precaução deve ser tomada na utilização de qualquer remédio. Quirais ou não-quirais. Queiramos ou não

Gêmeos sempre constituíram e constituem seres fascinantes e, por isso, fazem parte de muitas das mitologias e de histórias arraigadas no imaginário popular. Dentre os gêmeos famosos, podemos destacar Castor e Pólux, lendários personagens gregos, considerados as estrelas mais brilhantes da constelação de gêmeos (Gemini), um dos doze signos do zodíaco. E, para citar latinos, temos os fundadores de Roma, os irmãos Rômulo e Remo.

A literatura também está repleta de ficções envolvendo gêmeos. Por exemplo, em 'Os gêmeos', a escritora norte-americana Rosamond Smith cria um tipo estranho e inexistente de gêmeos. Na história de Rosamond, cada irmão é a imagem especular do outro. Um é canhoto, o outro é destro. Ambos têm cabelos ondulados, porém em sentidos opostos. Em tudo são iguais, invertidamente, e cada um deles vê o outro quando se olha no espelho. Uma coisa impossível, mas ficcionalmente sui generis. Esses personagens seriam, digamos, como as nossas mãos - em que a mão esquerda é a imagem, no espelho, da mão direita (e vice-versa). Todavia, quando tentamos sobrepô-las (por exemplo, a palma da mão esquerda sobre as costas da mão direita), verificamos que não é possível, para as duas mãos, a ocupação exata dos mesmos pontos no espaço. Esse fenômeno - impossibilidade de sobreposição de determinadas coisas especulares - é muito mais comum do que imaginamos e, com base no que acontece com as mãos, ele é designado como quiralidade, sendo bastante recorrente em compostos químicos (o termo 'quiral' é derivado do grego 'khéir', que significa 'mão').

Um composto químico quiral tem suas moléculas formadas de modo determinante por átomos de carbono constituindo-se, na realidade, em dois compostos especulares distintos chamados enantiômeros (designação química para moléculas especulares não-sobreponíveis).

A forma que utilizo para falar desses fundamentos (de fazer Mendeleiev querer sair do túmulo) foi o jeito que encontrei para, de forma sucinta, falar sobre a talidomida, um composto quiral. Os químicos que me perdoem. Os médicos também.

Na década de 1950, apareceu o tranquilizante diazepam (Valium), que fez a festa dos laboratórios que o produziam. Naquela época, também havia o barbital (Veronal), um sedativo barbitúrico comum. Em busca de uma otimização, indústrias farmacêuticas começaram a efetuar pesquisas para a obtenção de um composto quimicamente semelhante às moléculas daqueles dois remédios. E, com esse objetivo, um laboratório alemão (Grünenthal) sintetizou a talidomida, em 1954. A molécula obtida é, grosso modo, como se fosse a molécula do diazepam colada com a do barbital. Por causa dessa semelhança, os pesquisadores convenceram-se de que a talidomida tinha boas propriedades sedativas. A talidomida, no entanto, é um composto quiral constituído, digamos, de 'dois tipos mãozinhas' - as do bem e as do mal. E muitas vezes, em condições fisiológicas específicas, enantiômeros da bondade, tal como muitos políticos, viram a casaca e transformam-se em maldade - cheios de 'marvadezas' (nada contra o nosso 'Marvadão').

Laboratórios 'marvados', ávidos por lucros pantagruélicos, encomendavam, para publicação em revistas especializadas, relatórios de médicos atestando a qualidade da talidomida como um ótimo sedativo, eficaz para amenizar enjôos de gestantes.

Entretanto, na década de 1960, médicos alemães e australianos observaram a incidência de má-formação em recém-nascidos de mães que fizeram uso da talidomida. O maior problema foi a focomelia, deformidade em que as mãos saem diretamente dos ombros, e os pés, dos quadris, como nadadeiras de foca. Daí o nome da síndrome: do grego 'phoke' (foca) e 'melos' (membro). Trata-se de uma anomalia extremamente rara (um caso em 4 milhões de nascimentos), mas que incidiu em milhares de crianças naquela ocasião. A tragédia só não foi maior porque a dra. Frances Kelsey, médica do FDA (Food and Drug Administration), resistiu corajosamente às pressões de poderosos laboratórios não permitindo a liberação da talidomida nos Estados Unidos. Os casos de lá, como os daqui, ocorreram, em sua maioria, pela venda em clínicas médicas daquela 'novidade'.

A utilização da tal 'novidade', sem a realização de testes em número suficiente e em cobaias diversificadas, mostrou-se desastrosa. Os testes em roedores, que metabolizam a droga de forma diferente de humanos, não acusaram problemas. Posteriormente, foram feitos testes em coelhos e primatas, que produziram os mesmos efeitos horríveis que a droga causa em fetos humanos.

Toda a precaução deve ser tomada na utilização de qualquer remédio. Quirais ou não-quirais. Queiramos ou não. Advertência essa válida também para gêmeos, univitelinos ou fraternos. Só não vale para os especulares. Ou será que eles existem?

Adalberto Nascimento é engenheiro e escreve a cada duas semanas neste espaço, sempre aos domingos (dal@globo.com). - http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=44&id=223265

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 27/09/2009
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