TRILOGIA "O CÍRIO DE NAZARÉ" - 2. A CORDA PRO CÍRIO OU ACORDA PRO CÍRIO
Sérgio Martins Pandolfo*
Um dos espetáculos mais pungentes, na romaria do Círio de Nazaré, é o do sacrifício dos romeiros na Corda. Chega a ser dramaticamente emocionante para o peregrino que o presencia pela prima vez e mesmo para muitos que, veteranos, têm sensibilidade exalçada.
A procissão do Círio, em si, já é uma lídima explosão de fé, que suscita sentimentos díspares de empolgação e de espanto por parte dos que a testemunham ou dela ativamente participam, e é, sem qualquer vislumbre de exagero ou “patriotada”, a maior procissão religiosa do mundo. O movimento da massa humana, em uníssono caminhando, contrita, em uma só direção, com raros e conflituosos filões de gente em contrafluxo, mais poderia ser regionalmente configurada como uma “pororoca humana”.
Certa feita recepcionamos aqui um grande e famoso cirurgião do Rio de Janeiro, acostumado, assim, a emoções fortes, que, ao assistir como espectador estreante tal demonstração inequívoca de fé, chorou copiosa e convulsivamente, ao nosso lado, sem se poder conter, dizendo, em boa voz, nunca ter vivido sensação parecida, a ponto de abalá-lo emocionalmente, já o assinaláramos alhures.
O Círio era a princípio vespertino (algumas vezes até noturno). Passou a ter curso matutino em razão da nossa conhecida e até folclórica “chuva da tarde” que se abate sobre Belém e produzia alagamentos nas ruas que naqueles recuados tempos compunham o trajeto do préstito. O primeiro Círio, rememore-se, saiu em 1793, aos 8 de setembro.
Diz-nos o historiador Ernesto Cruz que, em 1868, forte aguaceiro, associado ao transbordamento da Baía de Guajará, provocaram imenso atoleiro na região do Ver-o-Peso, então uma doca inexpressiva e nua (sem pavimentação), provocando o atolamento do carro, puxado a boi, que conduzia a Berlinda com a imagem da venerada Santa. Após inúmeras tentativas, os diretores do evento tiveram a feliz idéia de passar uma grande e grossa corda em volta da carroça, pedindo aos fiéis que a puxassem, o que foi cumprido com êxito, fazendo avançar o coche até o Largo das Mercês.
O gesto repetiu-se nos anos subsecutivos e subsiste até nossos dias como a mais forte e inabalável tradição do Círio.
Várias tentativas foram feitas, ao longo dos tempos, pelos organizadores do cortejo, para abolir a Corda que, em seus entendimentos, causa mais atropelos e conturbação que ajuda, saneados os caminhos a percorrer. Só que o povo, verdadeiro compositor e ator principal do espetáculo, nunca aceitou isso, e todas as investidas nessa direção foram taxativa e até violentamente rechaçadas pelos fiéis e romeiros. Ao revés, a Corda fica, a cada ano, com maior extensão e resistência, tendo que ser confeccionada em cordoarias de alta tecnologia e sob especificações especiais, que são, precedendo sua utilização, checadas por peritos do Corpo de Bombeiros. “É o cordão umbilical que liga a Santa ao seu povo”, na feliz imagem do jornalista Raymundo Mário Sobral.
Esse “santo cordão” é disputado, milímetro a milímetro, pelas mãos calejadas dos romeiros que, nem por isso, muitas vezes as têm, ao término do séqüito, escalavradas (às vezes sangrantes), o que, e paradoxalmente, apesar da dor que certamente lhe causa, proporciona-lhes enorme satisfação interior pelo “sacrifício”, que purga os pecados ou traduz o “pagamento” que fazem por alguma graça alcançada ou por qualquer outra nobre causa.
Para conseguir um lugar na Corda os promesseiros têm que madrugar para chegar bem cedo, do contrário lá não terão vez. É tradição, também, quase imposição, que os “cordeiros” se apresentem e permaneçam descalços durante o percurso, o que já faz por indicar sofrimento correspondente para os pés. Por assaz expressiva cabe aqui reproduzir, do poema “O Sentimento do Círio”, que compusemos sobre o tema, a estrofe seguinte:
O Círio é penitência na Corda,
o Círio é devoção na Berlinda;
nas mãos que esfoladas da horda,
puxam o nicho da Mãe, tão linda!
“O Círio de Nazaré não é, para o paraense de nascimento ou de adoção, apenas uma procissão religiosa (....). É o dia máximo, o dia em que se esquece de todos os problemas e vai à rua saudar a Berlinda que passa; é o dia em que se esquece as rixas, as intrigas, e até perdoa os inimigos. È o dia da confraternização paraense. È o Natal do Pará”, a redizer o historiógrafo parauara Carlos Rocque.
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(*) Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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