De Poeira e Acaso
“Somos apenas poeira”.
Esta frase foi dita para mim por um médico de plantão, na ocasião em que levei minha mãe pela última vez a um pronto-socorro. Talvez no intuito de me consolar, vendo-me num estado emocionalmente abalado, diante da perspectiva de que um grave AVC tivesse afetado minha mãe.
A frase ficou na minha lembrança, como uma ameaça sombria pairando sobre nossa frágil condição humana. Lembrei-me dela outro dia, quando, subitamente, ao acordar, fiquei indisposto, com ânsias de vômito e tonturas.
O mal-estar súbito que me levou ao pronto-socorro e a uma internação de um dia no hospital levou-me a lembrar-me de como meu pai morreu, de trombose cerebral. A visão dele tentando se levantar da cama e não conseguindo me veio à mente. Revelei para minha irmã a história da frase.
Durante a estadia no hospital, pensei em quanto nunca estamos realmente preparados para morrer. E se o que ocorreu fosse algo grave, que poderia ter-me levado para a morte?
Pensei em como meus planos para o futuro seriam todos frustrados.
E reparei em algo. Reparei em como é incrível como uma situação de grande fragilidade física e emocional nos torna humildes diante da vida, nos mostra a verdadeira perspectiva das coisas. Todos os seres humanos apresentam-se a nós como seres humanos iguais a nós, não há distinção de gênero, raça, status social, não há homens, mulheres, brancos, amarelos, negros, ricos, pobres, são todos seres humanos. Egoísmo, orgulho, superioridade, preconceito, tornam-se sentimentos descartáveis e inúteis. Se não abomináveis.
A frase do médico denota que somos seres frágeis, que a qualquer momento podemos ser levados como um grão de poeira pelo vento imprevisível do acaso.
Nossos planos de vida, nossas preocupações diárias, o serviço no escritório que ficou para acabar, a conta para pagar no dia seguinte, a formatura do filho no final do ano, o aniversário da filha no final de semana, o almoço com o cliente, o filme que é preciso assistir, a prova de um curso, o plano para criar uma empresa, tudo pode acabar num instante, por causa de um pequeno coágulo que sobe sorrateiramente para o cérebro. Qual o valor das preocupações comezinhas, diante da perspectiva da morte iminente?
Por que não pensamos nisso? Por que estamos sempre despreparados para morrer? Por que acreditamos que nunca seremos tomados pela surpresa do acaso? Por que achamos que nosso avião não vai cair?
O fato é que, qualquer que seja a fase da vida em que estejamos, vivemos sempre na expectativa de viver muitos anos à nossa frente. Nosso cérebro, portanto, está sempre armado psicologicamente para pensar nesses anos à frente. Não está preparado para uma morte súbita, a não ser, é claro, quando pertencer a um doente terminal desenganado.
Cabe aqui relatar a história de uma tia minha que vivia numa cidade pequena do estado de São Paulo, já em idade avançada, a quem admirávamos por não ter nenhuma das condições patológicas comuns nas pessoas de sua idade, como colesterol alto, pressão alta, complicações cardíacas e ortopédicas, etc., que a isentava de tomar qualquer remédio, o que prenunciava uma longevidade auspiciosa para ela. E essa condição ela não possuía por sorte, pois na verdade se cuidava muito bem, esmerando-se por seguir uma dieta saudável, com isso mantendo uma aparência mais jovem do que suporia sua idade. Um dia, naquela cidade pequena, supostamente de trânsito leve, ao atravessar a rua, foi atropelada por uma moto, bateu a cabeça no asfalto e faleceu instantaneamente. Deve-se aqui ressaltar que, paradoxalmente, em contraposição à sua preocupação com a saúde física, não tinha o mesmo esmero quanto à sua saúde psíquica, pois vivia quase como uma reclusa, cuidando de um neto, totalmente avessa a contatos sociais. Lembro-me de que sempre minha mãe é que tinha de ir até sua cidade se quisesse encontrar-se com ela. Que desígnios psicológicos inconscientes podem ter contribuído para causar uma pequena distração fatal na rua que deu de encontro com uma moto? Não saberemos dizer nunca, mas podemos deduzir que desígnios psicológicos inconscientes, uma vez que ocultos e indecifráveis, podem contribuir bastante para que um acaso de desfecho indesejável se manifeste.
Acho, assim, que devemos mudar nossa maneira de encarar a vida. Mas não tenho a receita de como fazer isso. Talvez devamos procurar não procrastinar tanto as coisas necessárias e importantes que pensamos em realizar nas nossas vidas, que acreditamos serem necessárias, mas que vivemos adiando por acharmos que o tempo delas chegará. Talvez devamos deixar de ser egoístas, pensar mais nos outros, nos que precisam de nós. Ou talvez devamos ter a consciência dessa nossa fragilidade, despir-nos da nossa arrogância, ser mais simples. Ter a consciência de que somos apenas poeira, sujeitos ao acaso de um vento inesperado que pode nos levar de repente, a qualquer momento, ao nada desconhecido a que estamos todos condenados. De que nossas ações devem ser pautadas pela possibilidade desse acaso.
Ninguém está imune à surpresa desse acaso zombeteiro, por mais que cuide da saúde ou se previna. Coágulos e células cancerígenas espreitam-nos para dar o bote. Aviões podem cair. Um piscar de olhos sonolento ao volante do carro pode ser o último ato de relaxamento.
Não somos seres inexpugnáveis. Somos seres frágeis demais, confiantes demais, expostos aos mais diversos perigos, biológicos, psicológicos, relacionais, ambientais.
Somos apenas poeira.