“The Spirit, de Will Eisner e, outros super heróis adaptados para o cinema...

The Spirit, de Will Eisner e, outros super heróis adaptados para o cinema...

Diante da minha paixão inveterada por histórias em quadrinhos, muita gente já me perguntou a razão desse gosto.

Como um apaixonado pela coisa, respondo que as HQs (ou, como dizem os portugueses, bandas desenhadas) é uma mídia que tem sua própria forma de comunicação, unindo de uma forma muito original, história, texto, desenhos e cores.

E quanto aos super heróis, para me safar rápido, costumo dizer que são as velhas deidades e arquétipos humanos, vestidos como lutadores de vale-tudo, vivendo em nossa realidade, de dias atribulados - e, nesse caso, não há muito a explicar, porque a verdade está bem próxima disso.

O exploração do filão das adaptações dos super heróis das histórias em quadrinhos e literatura Pulp não são novidade. Acontecem desde a década de 30, do século passado – foi o caso de Flash Gordon, Tarzan. Depois, vieram Batman e, Superman.

Os filmes de Flash Gordon viraram filmes cult. Tarzan, vivido inicialmente por Bruce Crable (o mesmo ator que encarnou Flash Gordon), encontrou o interprete ideal num ex-campeão olímpico de natação, Johnny Weissmiller e, arrastou multidões para as salas de cinema. O Superman dos anos oitenta, bateu recordes de bilheteria.

Com a trilogia de Superman, vivida por Christofer Reeve, aliás – que começou clássica e, acabou meio patética e, a excelente refilmagem de Tarzan, vivido pelo estreante Christofer Lambert, a adaptação de filmes de super heróis ganhou um novo fôlego, a partir da refilmagem soturna de Batman, realizada por Tim Burton (que também começou muito bem e, chegou ao ridículo, no quarto e, equivocado filme, na mão de outro cineasta). Na época, também apareceram as adaptações equivocadas – foi o caso do Sombra.

Nesse embalo, os heróis da Marvel finalmente receberam adaptações para o cinema, depois de um caso de sucesso (Hulk), um fracasso (Capitão América) e, uma adaptação tosca (Homem Aranha) na televisão, além de uma tentativa lamentável realizada pelo rei do trash movie, Roger Corman para a telona (Quarteto Fantástico), que de tão ruim, foi vetada pela chamada “Casa das Idéias”.

Mas, então, veio o Homem Aranha, que conseguiu transportar para as salas de cinema o clima das histórias originais, inclusive a característica típica dos super heróis da Marvel, isto é, a constante tensão resultante de enfrentar uma vida dupla – problemas típicos de um indivíduo médio com as obrigações decorrentes do recebimento de poderes sobre-humanos, muito bem resumida na clássica frase que o tio disse a Peter Parker, na hora da sua morte: “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”.

Além da fidelidade ao original, haviam outras razões para o sucesso da película: a tecnologia, que possibilitava a criação de efeitos críveis para os voos do cabeça de teia entre os arranha céus de Nova Yorque e, especialmente, a escolha do diretor certo, Sam Raimi, cujo potencial e, boa parte da arsenal de truques já tinha exposto em Dark Man, filme no qual homenageou os velhos pulps e os quadrinhos americanos da chamada “era de prata”.

Hulk, Demolidor e, o Quarteto Fantástico receberam adaptações interessantes, que premiaram todas as gerações de marveletes. Mas, foi com X Men que o universo Marvel, com suas características intrínsecas, se fixaram de vez na mente do grande público. Dentro do filme, que propõe como questões de fundo os dramas decorrentes da mutação ocorrida na adolescência e, o preconceito do homem contra o “outro”, um grande achado, Hugh Jackman, o soberbo interprete que deu vida a Wolverine e, imprimiu ao torturado super herói, toda a carga dramática relativa à sua alma marcada e, passado incerto.

Depois, veio o Homem de Ferro, cujo alter ego, o prepotente e poderoso Tony Stark, foi interpretado com extrema competência por Daniel Day Lewis. Mas, do velho time dos super heróis que revolucionaram os quadrinhos nos anos 60, ainda faltam O poderoso Thor, Capitão América e, Namor, o príncipe submarino, que estão em fase de pré-produção.

Entre os personagens da DC Comics, Batman foi reiniciado e, o que era bom nos anos oitenta, ficou ainda melhor. No primeiro filme, o cruzado de capa enfrentou nada menos que três da sua extensa lista de conhecidos vilões. No segundo filme, enfrentou Coringa, magnificamente interpretado por Eath Ledger*.

A tentativa de continuação da saga do Superman dos anos oitenta, porém, a despeito da produção caprichosa, não deixou marca – muita coisa ali não deu certo (e, talvez, a escolha de Brian Singer de X Men, tenha sido o primeiro e apressado equívoco, pois um ser tão poderoso pressupõe um outro tratamento).

Muitos outros personagens do mundo dos quadrinhos mereceram adaptações, como é o caso da bem sucedida transposição de Hell Boy, de Mike Mignola e, a nublada adaptação de Dick Tracy, que não funcionou, mesmo a presença de um elenco galático e, uma adaptação de fidelidade espantosa (mal grado, a estranha idéia de tons monocromáticos para cada cenário e, o risco de entregar “o” papel feminino da película à insípida Madonna).

Frank Miller (de “O Cavaleiro da Trevas”, clássico que remodelou o mundo dos quadrinhos, nos anos oitenta), já havia participado do mundo do cinema, roteirizando Robocop, tempos atrás, além de ter participado da adaptação de Sin City, de sua autoria, para o cinema. Em 300, se não me engano, dividiu a direção do filme com Roberto Rodrigues. Pelo jeito, pegou gosto pela coisa e, se achou preparado para adaptar e filmar The Spirit, criação imortal de imortal Will Eisner.

O obstáculo inicial do cineasta: adaptar Eisner, não é fácil, porque sua obra é absolutamente singular. Ele era um mestre do claro/escuro – que explorava com maestria, com as mais diversas técnicas de desenho, do argumento bem dosado, do enquadramento criativo dos personagens e objetos enredados na trama, além de ser incorrigível e surpreendente inventor de novidades e, truques de enquadramento.

No que tange ao personagem, histórias e, ambiente, Eisner chegava a ser brilhante, à parte os roteiros sempre bem humorados: Spirit é um morto-vivo que não dá muita trela para o lado filosófico da coisa, preferindo combater o crime com esperteza e tapas, entrementes cair nos braços de mulheres lindíssimas, com seu jeito meio apatetado.

O enredo de muitas das histórias exploravam aspectos inusitados da realidade. O foco, o desenho e, até o fio condutor mudava, seguindo determinado personagem e, Spirit virava personagem secundário, sem que o enredo, de modo algum, perdesse o interesse...

Pois bem, na mão de Frank Miller, a adaptação do personagem ficou muito pesada. À parte certos aspectos intoleráveis em tempos politicamente corretos (caso da eliminação do personagem Ebony, onipresente parceiro do personagem, nos quadrinhos e, estrela principal de muitas histórias), o Spirit de Frank Miller discursa em off, do começo ao fim do filme – uma gororoba superficial sobre a cidade com a qual está relacionado e ainda, sobre o questionamento existencial, bem semelhantes com aqueles discursos de personagens que estão sempre presentes nos recordatórios de seus quadrinhos, como por exemplo, Ronin, O Cavaleiro das Trevas, Sin City e, 300.

No filme, a leveza que sobrava nos quadrinhos originais de Eisner, faz falta. No rough humor destilado por Octopus, personagem muito bem interpretado por Samuel L. Jackson, é possível verificar umas das falhas capitais de Miller: a concentração do tom e, clima de comédia num único personagem – pois, nos quadrinhos originais, o bom humor está em toda parte, desde os personagens, os textos, indo até mesmo à disposição e trucagens do claro/escuro das páginas dos quadrinhos. Perdida essa identificação, quase nada resta alma das HQs originais (com o perdão do trocadilho sem vergonha). De fato, a insistência de Octpus nas piadas, parece até meio estranha, no meio do filme que parece sério, reto e chapadão.

Em vez do contraste direto entre o preto e branco, Frank Miller optou pela fotografia esmaecida, em que os tons de branco e preto se sobressaem**. Nisso ele acertou, porque algumas montagens de cena são belíssimas, para não dizer, impressionantes. O truque do vermelho vivo da gravata do herói, talvez como símbolo fálico, porém, está deslocado num personagem que veste preto dos pés à cabeça.

No final do filme, quando sobem os caracteres, estes são exibidos sobre desenhos de Miller para o Spirit, que, não por acaso, lembram muito, os desenhos de Batman saltando pelos telhados de Gotham City, em Cavaleiro das Trevas. E aí, algo me vem à cabeça: o que não funcionou em The Spirit se deve ao fato de que Miller não quis apenas adaptar um clássico dos quadrinhos. Ele, deliberadamente, quis superpor a sua visão, sua forma de fazer HQs e, cinema, sobre a obra magistral de Will Eisner.

O erro principal do quadrinista e, cineasta foi, portanto, falta de humildade e respeito na transposição da obra do mestre dos quadrinhos para o cinema, pois sem o clima próprio, The Spirit é só mais um filme de herói sobre-humano. E aí, sobra pouca coisa a mais que a boa fotografia.

* Leia um artigo meu, a respeito, aqui: http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdefilmes/1608247.

** Foi o tipo de fotografia utilizado no clássico clip da banda ”The Police”, cantando “Can't stand so close to me”.