O ANO 1000 - A VIDA NO INÍCIO DO PRIMEIRO MILÊNIO.

Introdução

Certamente que é nato do ser humano julgar-se mais evoluído que seus antepassados. Geralmente os adolescentes demonstram mais a presunção de julgar que seus pais são ultrapassados: não acompanharam as mudanças e não sabem de nada. Normalmente nos vemos olhando para o passado como se os antigos literalmente grunhissem, enquanto damos-lhes gorjetas de nossa pérola intelectual.

Avaliando esta nossa presunção, é a maneira como Lacey & Danziger concluem O ANO 1000, após um apaixonante relato da vida na Inglaterra do final do Primeiro Milênio. Com justiça sugerem, o que entendo um questionamento ao nosso orgulho: se “Ao olharmos para atrás, no esforço de descobrir como as pessoas lidavam com as dificuldades cotidianas da existência, podemos também considerar se, com toda nossa sofisticação, seríamos capazes de enfrentar os desafios do mundo deles com a mesma coragem, bom humor e filosofia”.

Penso que teríamos sobrevivido ao tempo deles se tivéssemos vivido da mesmo forma como viviam. Com nossa maneira de ser hoje não sobreviveríamos.

Assim como os filhos presumem-se mais inteligentes que seus pais, pois fartaram-se do conhecimento por eles produzido e transmitido, mas certamente não saberiam sobreviver ao tempo que eles sobreviveram, certamente que com nossas mentes atuais não teríamos capacidade para enfrentar a vida que os habitantes do ano mil enfrentaram, ainda mais com o bom humor e a filosofia que tinham.

De resto, lendo-se o livro O ano 1000, pode-se literalmente viajar no tempo, travando um diálogo entre o passado e o presente, encontrando as raízes da atualidade encravadas na vida das pessoas simples de antanho, identificando-se, até pessoalmente, com cada personagem.

O livro contemporiza as épocas, nos levando, de alguma forma a reencontrar o fio da meada – onde nos desviamos do cuidado para com o bem comum.

Comparando então o passado com o presente, percebe-se que a mente humana simples (e muitas mentes sofisticadas também) é explorada desde sempre até hoje. Isto se faz, não apenas por uma igreja, mas também por aqueles que se dizem racionais, defensores da sabedoria coerente, como o ateísmo, por exemplo, mentor do preconceito racional, onde as pessoas adotam determinada visão, julgando as outras antes de conhecê-las.

As pessoas em nosso tempo, não vendo perspectiva além da sobrevivência pura e simplesmente, sujeitam-se ao trabalho, de certa forma, escravo, porém travando competição entre si, o que fazem na busca frenética por utensílios e acessórios, com a ilusão de equiparar-se aos senhores. A exemplo dos ingleses do ano mil, possuem a incerteza da alimentação, sendo a fome, inconscientemente, um dos grandes motores da competição, e também da busca por alternativas para complementar a dispensa. De alguma forma sacrificam-se a um deus que lhes garanta a sobrevivência: trabalhando sem parar, investindo na sorte, acumulando muitos bens e tornando-se indiferentes para com os outros, tornando-se avarentos.

No ano mil vê-se a Igreja preocupada com algumas profecias do Apocalipse, o que por um lado demonstra uma grande preocupação também com o futuro: relativo a seu domínio político e também econômico. De forma muito presente e fazendo-se indispensável, ela molda a mentalidade, a vida, os conceitos de atualidade, a economia e a sociedade, pondo-se à frente de todo empreendimento, guiando os acontecimentos, obtendo lucro próprio, visando poder e domínio geral, o que termina por enquadrá-la justamente numa profecia do Apocalipse. Ao mesmo tempo, enquanto confunde-se com a política e o mercantilismo, além de adotar caráter pagão visando conquistar simpatia e novos fiéis, na mesma proporção vai perdendo as características essências do cristianismo, o que termina por ajusta-la ainda melhor na mesma profecia, além de profecias de Daniel.

Exemplo: “(...). Vem, mostrar-te-ei a condenação da grande prostituta (Igreja em Apocalipse: mulher) que está assentada sobre muitas águas (águas em Apocalipse: povos); com a qual se prostituíram os reis da terra (comparar com O ano 1000, p. 80 a 84,96 e 123); e os que habitam na terra se embebedaram com o vinho da sua prostituição (Assim como o vinho é o sangue de Cristo, o sangue de todos os que O Sacro Império matou, é o vinho que embriaga a grande meretriz).

E levou-me em espírito a um deserto, e vi uma mulher (igreja) assentada sobre uma besta (poder político: Roma) de cor escarlate (sangue dos que foram martirizados por esse poder político), que estava cheia de nomes de blasfêmia (religiões pagãs de Roma) e tinha sete cabeças (os sete reinos bárbaros restantes) e dez chifres (os dez reinos bárbaros iniciais). A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata (o sangue dos que a igreja martirizou), adornada com ouro, e pedras preciosas, e pérolas (imóveis, exploração servil, comércio, tributos, indulgências e negócios com os reis), e tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações e da imundícia da sua prostituição (todas as mentiras sobre curas, milagres, inferno, purgatório, imortalidade da alma, bem como crendices supersticiosas adquiridas do paganismo).

(...). Aqui há sentido, que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes (ou sete colinas), sobre as quais a mulher está assentada. E são também sete reis: cinco já caíram (...) E os dez chifres que vistes são dez reis que ainda não receberam o reino, mas receberão o poder como reis por uma hora, juntamente com a besta. – Apocalipse 17: 1 a 4 e 9 a 12.

Processo Histórico

No ano mil dos ingleses pode-se encontrar a tecnologia avançada do arado preparando a terra para o plantio, puxado por poucos bois guiados por dois companheiros. Os homens parecem fortes e bem nutridos, porém vivem pouco, sendo que um menino com doze anos já possui responsabilidades de adultos.

Tinha-se nesse tempo, com justiça, a consciência de que “o lavrador alimenta a todos nós”, pois de fato o arado era a base da vida dessa população. Além do mais, tinha-se também a preocupação com a medição do tempo, haja vista o confecção do próprio Calendário de Trabalho de Július, sendo que haviam divergências relativas à entrada do ano, as datas festivas e coisas do gênero.

Contava-se também com um sistema de comércio com moedas contendo a figura do rei, que autorizava a cunhagem em casas da moeda espalhadas pela Engla-land, bem como a identificação do concessionário da cunhagem. O penny de prata é a unidade monetária padrão inglesa desse tempo, e pode ser dividido em dois cortando-se a moeda ao meio, então tinha-se meio penny.

As pessoas viviam numa teia de crenças mais mística do que o misticismo aberto, pois confundiam doutrinas do cristianismo com antigas superstições pagãs. Assim tinham nos santos, subsidiados pela crença obscura da imortalidade da alma, o referencial pessoal de conduta, da mesma forma como as pessoas idealizam seus referenciais nos astros e estrelas das novelas hoje. Para alguém tornar-se um santo pela crença popular bastava que houvesse grande comoção em seu sepultamento e logo já notar-se-iam seus milagres.

A religião dos santos envolvia essas pessoas em uma rede de idéias místicas, como o pensamento de que um santo apresenta operando milagres nos lugares onde acham-se suas relíquias. Daí resultava um arsenal de objetos sagrados, aos quais tanto os mais inteligentes quanto as mais simples, atribuíam milagres. Por fim o cristianismo toma um ar de magia temido até por praticantes de religiões obscuras. Agora não é apenas uma, mas duas crenças dominando obscuramente o pensamento do povo inglês. Ao mesmo tempo, as idéias de delfos e demônios povoavam as mentes das pessoas.

Nesse tempo pode-se achar algo inesperado, como mulheres administradoras de terras, riquezas e reinos sobre homens também valorosos. Elas aparecem como comandantes de exércitos triunfantes, às quais são atribuídos grandes feitos. Surpreendente também é saber que pessoas de um tempo tão remoto eram portadores de grande capacidade intelectual, primando pelo conhecimento, podendo transmitir sua história e tradição mais remotas confiando apenas na memória, apesar de não possuírem crânio maior do que os dos seres humanos atuais.

Seu linguajar é nobre e isento de termos fúteis, bem como expressões de maledicência. Entretanto, ainda estão envoltos em crenças sobre muitas coisas, como a obscura festa cristã de São Valentim, padroeiro dos namorados e dos romances, celebrada ainda hoje, porém enraizada na fertilidade da terra, festa pagã encontrada não só nos costumes dos povos nórdicos, mas também no panteon de deuses romanos originários de várias civilizações antigas.

Nesse tempo dividia-se os lugares onde existiam as aldeias, em condados. A aldeia onde se vivia era o início e o fim da vida de uma pessoa, a qual provavelmente conhecia o nome do rei, cuja face via nas moedas, sabia que vivia na Inglaterra e podia ir a uma aldeia vizinha ou até uma cidade-mercado alguma vez, além de subir em uma colina para ver bosques tão pouco significativos como os de agora e ver uma ou duas igrejas cristãs.

Ali vivia pacata e tranqüilamente em meio a uma comunidade pitoresca, numa casa de madeira com pilares cravados ao chão, com telhados de junco, muitas vezes, e pequenas fendas nas paredes, sem vidros, que eram as janelas. Tudo era de madeira, desde o carro de duas rodas, chamado de carpentum, passando pelos utensílios da cozinha, como pratos, copos, por exemplo, chegando até as engrenagens do moinho movido a água.

Certamente o habitante da aldeia inglesa do ano mil conhecia todos os animais dos seus vizinhos, bem como chamava cada um de seus bichos pelo nome carinhoso. Todos os vizinhos tinham crescido com ele e seus filhos iriam crescer com os filhos dos vizinhos, além que os netos daqueles seriam o vizinhos de seu neto.

Trabalhava em um sistema escravo, porém tinha sua própria casa em sua aldeia onde vivia com sua família e podia criar seu próprio gado e não tinham que se submeter a atrocidades, como, por exemplo, o direito do senhor feudal de possuir a noiva na sua noite de núpcias.

A manifestação do pensamento natural do homem do ano mil na Engla-lond, ainda idealiza deuses cuja atitude precisa ser impulsionada e doutrinada pelo próprio homem, demonstrando que sua crença volta-se para si mesmo, pois sua confiança está somente no que pode fazer. A pesar que o deus pagão tem poder para determinar a fertilidade ou infertilidade da terra continuando a vida, o homem é que determina essa fertilidade alimentando o poder do deus com o sacrifício de um ser humano (o rei ano), o que mostra que na verdade o deus não é doador de nada, estando isento de qualquer poder. Tudo isto propiciará o assentamento da Igreja, que, apesar se ser depositária do Deus cristão, tira proveito político e econômico do pensamento natural dos povos, incorporando-os à sua doutrina, paganizando-se a cada sociedade. Esse ritual primitivo terminou por ser incorporado ao festival cristão da Páscoa.

“(...) não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem (...). Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”. – Gênesis 10:21 e 22.

Por outro lado a Igreja é responsável pela preservação de documentos históricos e livros antigos, que eram copiados nos mosteiros. Concluiu-se então que nessa época não se guardou muito conhecimento novo em livros, mas preparou-se o conhecimento antigo para que atravessasse os séculos chegando até nós. Os mosteiros também serviam de enfermarias e hospedaria para viandantes. E, de alguma forma, eram um centro cultural.

Na área médica esse tempo era muito precário. Tinha-se bom conhecimento sobre anatomia, mas pouco de cirurgia, bacteriologia e substâncias curativas. A maior parte das práticas médicas estava fundamentada na superstição, por isto muitas vezes os médicos submetiam o paciente a terapias torturantes, matando inclusive. Para a febre, por exemplo, usavam a sangria, seja por talhos em veias do paciente ou aplicação de sanguessuga.

Um dos aspectos mais determinantes na saúde era completamente desconhecido e ignorado naquele tempo. A higiene não era um hábito inerente ao vivente do ano mil. A maneira como livravam-se dos dejetos humanos também faziam com que o ar fosse extremamente fedido e contaminado. As pessoas não tinham cuidado com a limpeza dos alimentos e nem podiam investir muito na limpeza da casa que era de chão batido.

Quanto ao banho, tomar três ou quatro por ano era um lucho reservado para que vivia em mosteiros, o que alguns viam como fanatismo.

Assim como muitos outros reinos, a Angla-land é um reino cristão. Nesse tempo os reis tornavam-se cristão, não por serem movidos pela doutrina cristã, mas porque era uma forma de ser moderno e estar inserido na tendência econômica da atualidade. Para uma nação, não ser cristã era o mesmo que hoje não fazer parte do bloco econômico local. No caso da Inglaterra, seria não fazer parte da União Européia.

A grande, para não se dizer maior, preocupação do inglês do ano mil era com a falta de alimento, que em certa parte do ano daria lugar ao vazio na dispensa. Além da fome anual de certos períodos do ano, ainda houveram anos inteiros, seguidos uns pelos outros, em que a fome devastou o coração do corajoso trabalhador. A fome na Inglaterra do ano 1000 era algo com que não se podia ficar indiferente. Nela é que se aviltava a diferença entre o rico e o pobre. Enquanto o primeiro podia pagar pelo preço crescente dos cereais escassos, o pobre precisava moer restos de alimentos desprezados outrora, além de centeio para poder se alimentar antes da próxima safra. Do centeio saia uma sustância conhecida como LSD. Papoulas, cânhamo e joio eram secados e moídos para fazer pão conhecido como “pão da loucura”.

A base da alimentação inglesa porém, era o cereal. A carne era o principal ingrediente de um banquete naquelas comunidades. Os animais comestíveis, porém, não eram gordos como os de agora, criados em cativeiros, mas soltos, por isto sua carne possuía muito mais proteínas do que gordura.

A carne de gado e de porco eram as principais e as aves representavam as carnes nobres, que era servida nos banquetes – onde ainda não haviam garfos. Esses banquetes visavam não somente a nutrição, mas a sociabilidade. As carnes das aves possuíam inclusive poderes terapêuticos para os inválidos e os doentes, que estava no caldo. Os caldos de galinha eram renomados por sua propriedade tranquilizadora e restauradora.

A principal bebida alcoólica, a mais forte, era feita de mel e refugos moídos de colméia. Era muito doce e de teor alcoólico alto. O vinho, por sua vez era, suave, bem como a cerveja, que era adocicada, pois não usava-se ainda o lúpulo para dar-lhe o gosto amargo. O lúpulo, na verdade era usado para pintura de tecidos.

A Inglaterra desse tempo era governada por um rei apelidado de Ethelred, o qual a fez terminar o primeiro milênio em franca expansão econômica, mas não conseguiu livrar-lhes da invasão dos vikings, que iam para todas as partes com seus navios leves e guerreiros, com os quais atacavam e comerciavam, nos próximos doze anos. Apesar dos vikings, os ingleses conseguiam manter o crescimento econômico, com que podiam pagar para que os invasores fossem embora sem destruí-los.

Os ladrões dos mares (vikings) tornaram-se o terror dos homens ingleses do ano 1000, até que a Inglaterra foi invadida por Guilherme o Conquistador, descendente dos invasores escandinavos que se instalaram na Normandia.

Por conta das tentativas de defender o país dos ataques dos vikings é que surgem burgos fortificados criados antes do ano mil pelo rei Alfredo.

O que gerava a maior riqueza da economia da Inglaterra do ano 1000 era a exportação de lã. Outros comércios existiram nesse tempo, como vinho, peles, peixes e escravos, mas nada se compara a exportação de lã ou tecido de lã na Inglaterra.

Outro mercado promissor, porém, na Engla-land foi a produção de sal, que contava com investimentos inclusive da Igreja, que investia também na compra de casas para o aluguel em grandes centros produtivos ingleses que surgiam ou para comercialização.

Em algumas cidades produtoras de artefatos de lã, de madeira e de couro de gado, como o pergaminho, por exemplo, a Igreja atraia peregrinos à catedral, cujo acesso era assediado por comerciantes de tais manufaturas.

A maior parte do comércio porém, era feito nos portos – que possuem significação de comércio – onde se praticava o comércio, tendo em vista que era muito mais fácil transportar as mercadorias por mar do que por terra, pois os caminhos eram muito difíceis de serem trafegados.

De fora do pais vinham especiarias, como pimenta do reino e tecidos de ceda ou linho, que eram usados pelos mais abastados. As roupas de baixo dos trabalhadores eram de lâ.

Nesse tempo também criou-se um código onde os magnatas de cada condado juravam não acusar inocentes, tampouco defender culpados. O júri daí resultante é ainda referência inglesa no júri de introdução, ancestral do Grande Júri, que existiu na Inglaterra até 1993 e desempenha papel ainda nos EUA.

É importante ressaltar que por volta do ano mil é que foi descoberta a América (Terra Nova), por um navio escandinavo. Os homens europeus desse tempo tinham certeza de que a terra era redonda, porém os navios navegavam pela costa por causa dos temporais em alto mar, não por acharem que cairiam no penhasco na beirada da terra.

Conclusão

Vê-se que algumas formas de pensar foram decisivas para o rumo que a história tomou em muitas encruzilhadas e podemos determinar certa identidade entre muitos pensamentos mesmo com a mecânica de se pensar e agir na atualidade.

Por um lado nossa vida é muito mais fácil. Temos a certeza da alimentação, do abrigo, do descanso. Temos direitos garantido por lei, bem como a saúde. Podemos viver muito mais e em menos tempo armazenar e produzir conhecimento altamente excedente. Por outro lado, porém, não possuímos a determinação, a coragem e a disposição que eles tinham, pior de tudo é que pelo caminho ficaram muitos bons valores, entre eles está a solidariedade, que eles tinham, mas que já não conhecemos.

Wilson Amaral - estudante de História da Unisinos

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 26/06/2006
Código do texto: T182391