GUILHERME MARECHAL - OU O MELHOR CAVALEIRO DO MUNDO
Introdução
É certo que todos têm muitas perguntas sobre o passado. Algumas pessoas, por exemplo, gostariam de saber de que princípios derivaram nossos conceitos éticos e morais, também os conceitos de justiça que hoje regem nossa sociedade, que estão diretamente vinculados aos primeiros; os conceitos de valor que damos às coisas e às pessoas; de que forma usamos a legalidade ou ilegalidade (a honestidade ou corrupção) conforme o momento, segundo a circunstância requer, de acordo com o interesse pessoal. Muitas pessoas querem saber como aprendemos a ser como somos; de que tipo de pensamento deriva nossa forma de pensar. Alguns querem saber de onde se originam as filosofias religiosas, as práticas comerciais, os costumes sociais, por que e para que cada uma delas foi criada, com que propósito foram e são aplicadas e defendidas.
Podemos nos calar diante dos acontecimentos e da forma como eles são dirigidos ou podemos investigar suas origens. Podemos nos conformar com as coisas como elas vêm ou podemos procurar conhecê-las, eliminando aquelas que não condizem com o bem comum. Muitas práticas que se tornaram comuns e aceitáveis na sociedade tiveram origem em grandes equívocos e contra-sensos, bem como em pensamentos absurdos e anti-sociais. Entretanto, o tempo e o esquecimento, resultante daquele, se encarregam de dar-lhes substância, conferindo-lhes o estatus de tradição, bem como uma imagem, cuja origem é obscurecida, mas possui aspecto de interesse e bem comum, quando, na verdade, se originaram no egoísmo, no maucaratismo, exploração, espoliação, bem como na imoralidade, etc. Ao mesmo tempo, porém, outros elementos perfeitamente sociais, éticos e morais têm a imagem e o conceito deturpados para dar lugar àqueles.
O que tem de excitante na história é justamente poder redescobrir o mundo a cada nova página e certamente a história de Guilherme Marechal nos dá subsídios abundantes para isto.
Processo Histórico
Um homem segundo o melhor conceito cristão de um “quase santo” e segundo a mais nobre reputação de um cavaleiro. Trata-se daquele que agora é tutor do pequenino rei da Inglaterra. Um menino ainda, o qual é, certamente educado, mas guiado por seu tutor, que na verdade é quem administra o reino. Esse tutor do pequeno rei é nada mais, nada menos do que um homem tão nobre, que no topo de sua experiência de vida, próximo aos oitenta anos, nem mesmo quer ser tutor de uma criança, muito menos do rei. Porém, aceita o ofício que executa de bom modo, pois foi incumbido dessa obrigação por não haver no reino alguém tão digno, tampouco com tanta habilidade.
Mas o homem velho está se desintegrando e logo seu corpo começa a presumir a aproximação da morte. Em seu leito de morte transmite a função de tutor do rei bem como todos os bens que angariou durante a sua vida de próspero e exemplar cavaleiro da corte. Ao filho mais velho, o que leva o nome do pai, deixa todos os bens imóveis, o que confere ao nobre nobreza, bens esses que, na verdade, viera da família da esposa, como as terras e as propriedade construídas. Ao mais jovem resta um mosteiro, pois teve a desgraça de nascer depois do primogênito. A esposa não passa de mera peça sem importância, com que o homem varonil realiza a existência masculina, o que conta. A ela agora cabe continuar submissa ao filho mais velho. Às filhas também cabe serem devidamente submissas a seus maridos. Inclusive, Guilherme Marechal, o jovem, fica incumbido pelo pai de bem casar a irmã mais nova.
A expectativa da morte de Guilherme Marechal pai é assistida por uma grande platéia entre admiradores, curiosos, interesseiros e agoureiros. Entre todos estão os representantes da Igreja, para quem se deve dar muitas heranças a fim de torna-se digno na passagem e aterrizar diretamente no paraíso. O Marechal não está disposto a dar todos os seus bens para os prelados. Em dado momento, demonstra plena convicção da Bíblia, aludindo o que justifica sua atitude de aparente irreverência eclesiástica. Mas ele diz que ao bom cristão cabem bem servir primeiro os de sua casa. Por isto doa as melhores vestimentas a seus filhos, aos mais chegados e aos pobres.
Finalmente, após repassar todas as recomendações ao filho Guilherme e despedir-se de todos os amados, o sopro de vida deixa-lhe o corpo que é transportado através de um grande cortejo até Londres, onde é depositado com muita pompa. Depois disto, conforme o que seu filho mandou historiar do pai num poema, muitos pobres puderam saciar a fome com o dinheiro do Marechal.
Guilherme Marechal, o filho comportara-se de forma exemplar para um filho amoroso. Chegou a contratar um trovador chamado João para redigir as melhores memórias de seu pai. Esse documento, para a infelicidade do grande Marechal, tem o sarcasmo de chegar até nosso tempo e ser examinado por pessoas que olham o passado com grande desconfiança e por isto querem verificar a autenticidade de cada fato histórico. Eles acabam então rebuscando a vida de Guilherme em documentos paralelos e descobrindo que sua honra e glória, bem como amor, piedade, misericórdia moral e ética estão algemadas a conceitos muito próprios dos interesses materiais e estatus de uma época e uma sociedade que via o cavaleiro como o mais santo de todos, o mais merecedor, inclusive das mulheres, desculpado em fazer coisas indecentes em nome da cavalaria; que via-se como justiceiro ao literalmente saquear seus inimigos ou mesmo aqueles que ele julgava como transgressor.
Como exemplo, cita-se no livro a ocasião em que, quando era jovem, encontrou um monge que fugia com “sua amiga”, uma jovem bem nascida. Guilherme tirou-lhes todo o dinheiro que tinham, desculpando-se para tanto o estar reprimindo um ato imoral, como raptar donzelas bem nascidas. Pior ainda, era o raptor tratar-se de um monge, alguém que, segundo os cavaleiros, não pode ter mulher. Outra desculpa é a aplicação da moral bíblica da usura, o que atribuiu ao monge o qual dissera-lhe que pretendiam viver da renda daquele dinheiro.
Outro ato interessante e que no poema que o filho encomendou em homenagem ao pai se mostra como sendo uma glória, é o fato de que mantinha relações sexuais com a esposa de seu rei, o que este ficou sabendo através de fofocas de homens nos quais não se pode confiar. De qualquer forma, aquilo rendeu bastante constrangimento para o rei e custou à rainha a deposição de sua posição de esposa, o que custava também o estatos de rainha, embora, claro, nota-se mais adiante que fora depois dada por seu irmão em casamento a um outro rei, pelo que se fez objeto de interesses políticos do irmão. De qualquer maneira, o autor do livro observa a pouca importância da rainha (a mulher), bem como que o valor do ato de traição de Guilherme para com seu rei logo é suprimido pela necessidade que a corte tinha do Marechal.
Guilherme procedia de uma família cujo nome se tornara Marechal. Seu avo, João, servira como marechal na corte do rei da Inglaterra de seu tempo. Marechal tornou-se seu apelido, o que depois transformou-se em nome de família. O pai de Guilherme, João Marechal II, procedia dessa linhagem. Ao contrário do que ocorria com os filhos que nasciam depois do primogênito – os caçulas geralmente eram mandados para os mosteiros –, Guilherme fora mandado, aproximadamente aos oito anos, para além da Mancha, ao castelo de um primo de seu pai na Normandia. Ali foi alimentado e educado, recebendo a instrução de cavaleiro. Tão logo recebeu as armas e a investidura, demonstrou seu talento no primeiro torneio dos cavaleiros do qual participou. Então foi despedido da casa de seu tutor, de onde saiu apenas com as armas. Para poder transportá-las, adquiriu um jumento.
Voltou para a Inglaterra, onde procurou seu tio, irmão de sua mãe. Este foi ferido e morto em um ataque quando escoltava Leonor de Aquitânia, rainha da Inglaterra. Com grande bravura Guilherme lançou-se em perseguição aos assassinos. Porém, foi preso pelo inimigo. Constrangida com tanta bravura em seu favor, a rainha ofereceu reféns em troca de Guilherme. Ele agora tornava-se alvo dos favores do rei Henrique II, pois era considerado como salvador do próprio monarca.
Logo o rei Henrique Plantageneta casou o filho Henrique com a filha do rei da França, Luiz VII, e fê-lo rei. Porém, o garoto, tendo ainda quinze anos, precisava de instrução de cavaleiro. A esta função Guilherme era o mais indicado, então foi posto como mester do rei Moço. Nesse ponto, com vinte e cinco anos já alcançara bem mais do que imaginara.
Então são mandados rodar pelo mundo com outros cavaleiros para o treino do jovem rei, totalmente patrocinados pela família real, que logo se tornará intolerante com os gastos excessivos do mancebo. Essa dependência regrada gera uma certa insatisfação em Henrique, o Moço, que é fomentada pelos inimigos da Inglaterra. Logo ele rebela-se contra seu pai com o apoio de seu irmão Ricardo e o sogro, Luiz VII.
Passado o mal estar do Henrique Júnior contra o pai, ele é recebido novamente na casa familiar para onde retorna um ano mais tarde. O pai o perdoa e não é rígido com Guilherme, que se colocara ao lado do filho, porém, domesticamente não deixou de servir a Henrique II. De retorno à casa paterna, os jovens cavaleiros, já acostumados aos conflitos, tornam-se inquietos. Henrique começa a fazer-se insuportável para seu pai. Então este o envia a uma turnê pelo continente, onde ele e Guilherme, seu mestre, que o domina, participam de torneios de cavalaria, o que acontecem durante praticamente todo o ano em quinze locais na parte norte da França (da França atual). Por este mesmo tempo é que houve problema entre a esposa do jovem Henrique e Guilherme, o que o rei moço ficou sabendo através de línguas venenosas. Pelo que Guilherme se ausentou da presença do rei e da equipe de torneios, e muito se afligia por tal situação.
Após uma viagem que em empreendera à Colônia votando alcançar a graça do perdão do rei, ele encontra o emissário (camarista) da corte de Henrique que o procura para oferecer-lhe o perdão. Antes, porém, Guilherme mune-se de uma carta do rei da França, Felipe Augusto, bem como de seu tio arcebispo de Reims, e de seu primo Roberto de Dreux, pedindo ao rei da Inglaterra que o autorizasse a retornar às suas funções. Henrique Júnior por este tempo pretende fazer guerra contra seu pai, por isto Guilherme pede permissão ao Velho para opor-se também a ele lutando ao lado de seu filho. O rei permite e garante a Guilherme que seu amor por ele não diminuirá apesar disto. Tão logo Guilherme volta para a casa do rei moço, este morre.
Guilherme sentiu-se em situação delicada devido ao fato que o Moço fazia guerra ao pai e morria antes dele. Ele imaginou que assim o rei não lhe teria o mesmo amor. Contudo, Henrique o Moço se fizera cruzado e no leito de morte incumbira O Marechal da honra de levar sua cruz até o santo sepulcro e quitar a dívida do jovem rei com Deus. Então.
Ao regressar da peregrinação à Terra Santa, Guilherme voltou para junto de Henrique II, como havia prometido. O velho monarca já declinava – começava a apodrecer-lhe o pé, e o reino sofria muitas insubordinações. O filho Ricardo não esperou o pai morrer. Todos os servidores de seu pai esperavam serem tratados de forma ríspida pelo novo rei.
Ao mesmo tempo Guilherme também envelhecia e já não tinha condições de retornar aos rodeios, sendo que estes mesmos haviam sido suspensos como medida de penitência por causa da Cruzada. Depois desta seu amo lhe concedera um feudo, mas que rendia-lhe nada mais do que o valor de um cavalo anualmente. Fora isto, não possuía bens e tudo que ganhara desperdiçara. Precisava arranjar um bom casamento enquanto o Velho rei ainda vivia. Quatro anos antes recusara uma donzela por achar que sua fortuna não seria tão grande nem tão garantida. O rei deu-lhe a mão da “donzela de Lancastre”, cujo pai morrera há três anos e não deixara herdeiros. Porém, não passava de uma menina quando foi dada a seu marido. Entretanto, o Marechal guardo-a, não tocando-lhe, esperando que tivesse idade para tanto.
Mas ele pediu coisa melhor ao rei, o qual lhe presenteou com a donzela de Striguil, a qual lhe deixaria senhor de sessenta e cinco feudos e meio. Mas, antes que ele pusesse a mão em Isabela, o velho rei casamenteiro morreu e novamente o Marechal pensou que estava perdido. Então Ricardo Coração de Leão, filho de Henrique II, assumia o reino da Inglaterra e em certa oportunidade Guilherme tivera oportunidade de matá-lo em combate, porém não o fez, matando-lhe apenas o cavalo.
Porém, Ricardo confirmou a doação que o pai fizera a Guilherme Marechal e deu-lhe a donzela de Striguil, a qual não tinha mais do que dezessete anos, quando doze anos era a idade permitida por lei para ser desposada, enquanto Guilherme já beirava os cinqüenta. Mas com ela ele viveu trinta anos e tiveram pelo menos dez filhos. Através dela ele se ligava ao rei do País de Gales, tornando-se também seu súdito, além de súdito do rei da Inglaterra. Ao mesmo tempo ele também muda de escalão; passa ao nível de homem casado, o rol dos que realmente mandam, pois seu poder torna-se ativo e estável.
Muitos outros problemas o Conde Guilherme Marechal enfrentou pela frente, como a adversidade de João sem Terra. Porém, podemos ver daqui sua morte com toda honra e pompa sendo ainda alguém tão importante no reino da Inglaterra, ao ponto de mandar no próprio rei, Henrique III, por quem ele respondia na corte como regente e a quem ele educava para ser o governador do reino.
Ele se vai e o que se vê é uma grande comoção, mas seu filho continua com seu nome para honrá-lo diante da nobreza dos grandes, além que é agora herdeiro sangüíneo (mais legítimo do que seu pai) dos domínios da família de sua mãe, cujo avô fora rei.
Conclusão
Vimos aqui claramente em que nível processava-se a política nesse tempo, bem como os conceitos de moral. O rei fundamentava o seu poder, não apenas no dinheiro – este era apenas um utensílio –, mas principalmente no número e na reputação dos nobres os quais lhe garantem sua fidelidade, cuja autoridade está firmada em suas posses imóveis bem como no nome de sua família. Nisso não eram diferentes do dia de hoje, onde as pessoas são classificadas, inseridas na sociedade ou descartadas pelo que possuem. Em nosso tempo podemos encontrar pessoas com nomes de famílias interessantes vivendo na miséria. Naquele tempo, os filhos mais jovens não recebiam herança como o primogênito, contudo ainda era-lhe garantido a sobrevivência ao serem enviados para as ordens religiosas. Porém, se tivesse sorte, ia para um outro lugar onde aprendia a ser cavaleiro e poderia ser de grande valia e por isto viver à sombra de um nobre, como o Marechal, e ser bem casado como ele foi mesmo depois de desperdiçar grande fortuna, tornando-se então, um Conde.
Ao passo que vemos hoje a mulher como interessada em refrescar-se à sombra de um bom casamento, podemos presumir que esse interesse deriva de seus pais, tanto do homem quanto da mulher. Mas naquele tempo, de onde podemos ter herdado tais visões interesseiras, era o homem quem tinha a sorte de dar o golpe do baú, mas servia como argumento político para o rei e os nobres, a maneira como eles garantiam tal soberania, e a mesma maneira como eles mantinham o monopólio da riqueza, não permitindo com que os benefícios fossem distribuídos entre a população.
É bom também observar que numa sociedade onde muito se levava em conta a religião, um dos maiores atrativos e diversão é justamente a guerra, a qual a própria igreja promove, como as Cruzadas, e muito bem sabe recompensar seus colaboradores. Tento isto em vista, mais o conceito de justiça do Marechal, saqueando o monge com o pretexto de que este pretendia praticar usura com o dinheiro que possuía, pode-se ter uma idéia bem precisa da visão com que praticavam a religião cristão, deturpando-lhe o sentido original, distanciando-a do propósito inicial de perdão, igualdade e comunhão dos bens.
Wilson Amaral - estudante de História da Unisinos