Uma relação a discutir

Os mais jovens, casados, “namorados” ou assemelhados, inventaram uma figura que é relativamente nova em termos de convívio a dois, chamada de “discutir a relação”. Numa dessas noites, fomos, Carmen e eu, à casa de um casal jovem, filhos de amigos, casados há cinco anos, com uma filha de quatro, assolados por uma crise matrimonial sem precedentes. Fomos como que “convocados” a esse encontro, na expectativa de ambos, para escutarmos as queixas e opinar alguma solução para o problema. Quando me falaram, ao telefone, que havia um “enorme problema”, algumas idéias passam pela cabeça da gente, como adultério, desemprego, confisco de bens materiais, erro de pessoa ou descoberta de opções sexuais fora dos padrões normais.

Pois não era nada disto. Perdoem a minha franqueza (ou quem sabe insensibilidade), mas a “crise” se situava nos nítidos patamares da “frescura”, coisa de “patricinha” deslumbrada e “mauricinho” desligado. Os dois têm uma renda satisfatória, mas ela quer mais. Já está pensando quando a filha for para o segundo grau, que segundo ela, deverá cursá-lo numa dessas onerosas escolas particulares (coisa que a mãe – segundo a própria – não teve).

Para tanto ela “precisa” estar, até lá, formada em Direito, para ser juíza ou promotora e assim patrocinar o estudo da “bambina”. O marido, com os pés mais no chão, reclama que, ela trabalhando dois turnos e fazendo faculdade à noite (e em outra cidade), não tem tempo de organizar a casa, ser esposa nem tampouco mãe. Ela, por sua vez, reclama de duas coisas. Primeiro, que ele não a incentiva nem apóia. Além disto, eles tinham instituído a noite de sexta-feira como data obrigatória para “discutir a relação”, e que nem isto ele quer mais.

A crise está levando-os a admitir a possibilidade de separação, aparte esse já iniciado, pois há alguns meses ele dorme no quarto ao lado, com a filha. Aconselhamos (embora não goste disto), já que fomos chamados lá para isto, que cada um revisse sua posição, a partir da questão “nós nos amamos?”, onde é que cada um poderia ceder e mudar em favor do grupo familiar. Faz um mês desse contato, e eu não sei ainda qual foi o epílogo.

Eu fico me indagando, boquiaberto, como esse pessoal tem a capacidade de ver (e criar) problema onde não existe, e se existe, é passível de ser resolvido com meia-dúzia de palavras e um gesto de carinho. Está certo que o diálogo, especialmente para casais novos, onde as coisas ainda estão em fase de consolidação é importante, mas daí, até ter dia certo para “discutir a relação”, é dose! Conheci um casal, onde ela o acordava no meio da noite, não para o amor, mas para esse tipo de discussão. O diálogo, que nunca deve ser abandonado ou ignorado, não deve, não pode ter data e hora. Dialoga-se a qualquer hora, sem dia marcado ou sem uma vinheta específica, do tipo “senta aí, vamos dialogar!”.

Acho que, onde uma relação que precise ser discutida, de fato as coisas estão mal. Como se deve dialogar a todo o momento, inserido em todas as conversas, não carece de marcar hora para esse evento. Quando se reclama o discutir a relação, é porque ela já está bastante deteriorada.

Claro, Carmen e eu completamos 42 anos de casado. Temos os mesmos problemas que todos os casais têm. Mas aprendemos a inserir, nas abobrinhas do dia-a-dia, a busca da solução para as inevitáveis arestas. Só em olhar já entendemos um ao outro, e a partir daí começamos a aparar. Os problemas são comuns a todos. Talvez a forma de encará-los é que nos mantenha juntos há 42 anos.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 24/06/2006
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