ANTÔNIO PEDRO DE FIGUEIREDO - Um filósofo para além de seu tempo –(1822 – 1859)
Introdução
A história, como fato, está fossilizada. Ninguém pode alterar os eventos transcorridos. Mas, nem todas as idéias nascidas em épocas do passado devem ser descartadas, pois, muitas vezes, surgiram em mentes brilhantes e brilham muito além de seu tempo. E isto, ao que me parece, é válido quando falamos da filosofia de Antônio Pedro de Figueiredo, um mulato de pais pobres e desconhecidos, que nasceu em 22 de maio de 1822, na vila de Igarassu , em Pernambuco. Em sua curta vida, de 37 anos ( +21 de agosto de 1859), deixou um conjunto de ensinamentos, que merecem ser reavivados em nosso tempo. Em sua vida foi professor e jornalista. Lecionou, escreveu, traduziu livros do francês e do inglês, e se envolveu ativamente na vida intelectual, social e política de seu tempo. Em 1843, ao redor dos 20 anos, traduz e publica o Curso de História da Filosofia do francês Victor Cousin. Foi professor do Liceu do Recife e do Ginásio Pernambucano. Fundou e foi editor da Revista Progresso (1846-1848). Além de colaborar em diversas publicações de seu tempo, foi um dos redatores do Diário de Pernambuco durante 12 anos. Com justiça já se disse que, quem quiser escrever sobre personagens importantes da cultura pernambucana, jamais poderá esquecer Antônio Pedro de Figueiredo. Isto também vale quando nos propomos a estudar a filosofia brasileira, e especificamente, a filosofia em Pernambuco. Isto não significa que Antônio Pedro de Figueiredo deva ser considerado participante da clássica Escola do Recife, pois, esta “escola” ainda não se havia caracterizado assim em seu tempo. Mesmo assim, a sua vigorosa filosofia é precursora desta “escola”, que foi, por assim dizer, a primeira dinâmica filosófica que se praticou a partir de uma instituição acadêmica no Brasil, a Faculdade de Direito de Olinda/Recife do século XIX. Durante este trabalho, ainda voltaremos a falar da chamada Escola do Recife. Mas, como esta minha exposição pretende apenas enfocar a vida e o pensamento de Antônio Pedro de Figueiredo, progridamos nesta tarefa sem entrar em considerações sobre a Escola do Recife.
1. O Brasil do século XIX
Se quisermos entender adequadamente A. Pedro de Figueiredo, é necessário que o situemos em seu tempo. Nasceu no ano da independência do Brasil. E como era o Brasil desta época?
O país apenas estava-se libertando das amarras coloniais, mas continuava a ser uma sociedade rural e escravocrata, com diminuto número de cidades, com uma mínima classe média, sem maior interesse cultural e acomodada. A metade da população brasileira da época, que não devia passar dos 7.000.000 de habitantes, era escrava. A outra metade, de brancos e índios, era, em sua maioria, analfabeta. As escolas eram em pequeno número; universidades não existiam no Brasil; o país carecia de livrarias e bibliotecas. Apenas com a vinda da Família Real, em 1808, foram liberadas algumas gráficas para impressão de poucos jornais, que não sobreviveram por muito tempo. Data de 1825 a fundação do Diário de Pernambuco, o jornal mais antigo da América Latina, mas que, durante as primeiras décadas de sua impressão, se propunha apenas publicar, como consta em seu primeiro número, “... roubos, perdas, achados, leilões, aluguéis, arrendamentos, aforamentos, fugidas e apreensões de escravos... amas de leite etc., tudo quanto disser respeito a tais artigos; para o que tem convidado todas as pessoas, que houverem de fazer estes ou outros quaisquer anúncios...”(1) Não se colocava como função informar, ou contribuir para uma consciência crítica em relação ao status quo da época. Pelo contrário, era o porta-voz dos conservadores. Ainda em 1848, data do início da Rebelião Praieira em Pernambuco, publicava anúncios como o seguinte: “vende-se uma escrava de dezoito anos, de bonita figura e bons costumes, e que serve bem a uma casa, por ter sido educada por uma senhora inglesa, a qual também fala inglês, cose, cozinha, engoma e lava; na Rua do Livramento no.36”. Mas não era privilégio do Diário de Pernambuco publicar tais anúncios. A maior parte, da escassa imprensa da época, viu no negro um objeto de negócio, confundindo-o com os outros animais de carga. Apenas pela consciência crítica de alguns intelectuais, como Antônio Pedro de Figueiredo, aos poucos, a imprensa começou a despertar para a chaga da escravidão. Viajantes estrangeiros também deixaram relatos sobre a situação dos escravos nesta época. Charles Darwin, quando na segunda metade da década de 1820, encostou com seu Beagle no Rio de Janeiro, e nos inícios da década de 30 em Pernambuco, se escandalizou com a situação dos escravos no Brasil. No Rio de Janeiro presenciou a venda de filhos, arrancados de suas mães, para senhores diferentes e distantes; no Recife ouviu os gritos de escravos, sendo torturados por detrás dos muros das casas. E, quando zarpou do Recife de volta para a Inglaterra, pediu a Deus que jamais precisasse voltar para esta terra em que seres humanos sofriam tais vexames. Diante disto, quando Gilberto Freyre relata que a escravidão, apesar de tudo, era benigna no Brasil, comparada à escravidão nos países anglos, pode-se imaginar a que o homem “branco e civilizado”, dos Estados Unidos e alhures, era capaz de submeter os negros, arrancados da África, e submetidos na América aos suplícios da escravidão. Interessante é que, nem mesmo os movimentos revolucionários do século XIX no Brasil (1817, 1824, 1848), embora inspirados pelo Iluminismo pela Revolução Francesa, se colocavam como objetivo a abolição da escravatura.
Como assinalei acima, aos poucos algumas almas mais sensíveis despertaram para as injustiças cometidas contra o escravo. Neste sentido, naquele mesmo ano de 1848, quando o Diário de Pernambuco ainda ganhava dinheiro com anúncios da venda de mucamas, moleques, bonitas peças, rapazes, pardinhos, raparigas de casa de família..., o jornal A Voz do Brasil, também de Pernambuco, publicava um texto do jornalista Inácio Bento de Loiola, que dizia:
“Chora Pernambuco... e tu, povo, raça infortunada em toda a parte, chora também! De tudo isto que vês, nada te pertence. Essas administrações tão numerosas, esses palácios, esses carros suntuosos, esses tribunais são para teus senhores (...) Chora, chora. O teu quinhão é o arbitrário, os dolorosos trabalhos, a miséria e os rudes tormentos.” Neste contexto, as perturbações de ordem política se agravaram pelas reivindicações de ordem social, resultantes do desequilíbrio reinante. Para se ter uma idéia deste desequilíbrio, os Cavalcanti possuíam um terço das terras de Pernambuco. E, na política, se dizia, que “quem não era Cavalcanti era cavalgado”(2).
As reivindicações sociais tinham como porta-vozes Antônio Pedro de Figueiredo, Borges da Fonseca e o Jornal Diário Novo que, desde 1842, sob a direção de Luís Inácio Ribeiro Roma, foi aglutinando aqueles que não rezavam pela cartilha dos Cavalcanti. Este jornal era, por assim dizer, o porta-voz dos liberais, praieiros, principais adversários dos “baronistas”, “trapicheiros” e, posteriomente, denominados “guabirus” ( denominação de um rato grande e ladrão, vivendo nas galerias subterrâneas do esgoto).
Já pela linguagem da época, à qual também pertence o Jornal O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama, denunciando satiricamente as carapuças farisaicas dos poderosos, pode-se intuir que os ânimos andavam exaltados.
Em relação ao restante do Brasil, a Província de Pernambuco, em meados do século XIX, podia-se considerar como uma das mais importantes do Império. Mantinha uma posição de liderança em relação às províncias vizinhas, mas o longo período de decadência da cultura do açúcar e do algodão fizera com que aumentassem as tensões sociais e raciais. Uma minoria de latifundiários controlava a maior parte de Pernambuco, praticando uma monocultura de exportação. Esta situação era denunciada por Antônio Pedro de Figueiredo. Escrevia ele em sua revista O Progresso:
“a maior parte do território da nossa província está dividida em grandes propriedades (...) que mantém diretamente, sob o jugo terrível, metade da população da província, e oprime a outra metade por meio de imenso poder que lhe dá esta massa de vassalos obedientes (...) reconhecemos, numa palavra, que a divisão do nosso solo em grandes propriedades era a fonte da maior parte dos nossos males” (3).
Esta questão agrária remontava aos tempos da colonização portuguesa. Segundo diversos testemunhos, um terço das terras pertencia aos Cavalcanti. E na época imperial os senhores de escravos e de terras dominavam política e economicamente a região. Os três irmãos Cavalcanti: Pedro Francisco (Visconde de Camaragibe), Francisco (Visconde de Suassuna) e Antônio Francisco (Visconde de Albuquerque) eram filhos do coronel Suassuna, que participara da Conspiração dos Suassunas e da Revolução pernambucana de 1817. Ardilosamente, dois deles eram líderes do partido conservador em Pernambuco, e o outro liderava o partido liberal. Por isto, ganhasse um ou outro partido, os Cavalcanti continuavam a dominar a política na região. Para demolir o poder destes “barões”, que contrabandeavam e controlavam uma massa de escravos , e comandavam um bando de agregados foi necessária a Revolta Praieira. Ao lado dos políticos, que articularam esta revolta, e que também estavam apenas interessados em conquistas posições de mando, havia também os idealistas, que se preocupavam com os problemas sociais em Pernambuco por razões humanitárias. Por isto escrevia Antônio Pedro de Figueiredo: “Que são as reformas políticas sem as reformas sociais? Uma máscara e nada mais” (4). No meio destes embates políticos, de águas turvas, apareciam os espertalhões, prometendo reformas, sem efetivamente quererem uma liberdade para todos. O povo acreditava ter dois inimigos que o impediam de ganhar a vida e adquirir algum bem-estar: esses inimigos eram os portugueses, que monopolizavam o comércio nas cidades, e os senhores de engenho, que monopolizavam a terra no interior. E para combater estes inimigos, ocorriam no Recife freqüentes distúrbios. O mais grave (1847), que antecedeu a rebelião praieira, quando lojas de portugueses foram saqueadas e diversos comerciantes assassinados. Neste ambiente de conflitos políticos e problemas sociais, da primeira metade do século XIX, e inícios da segunda metade, qual foi o ambiente, a filosofia e a ação de Antonio Pedro de Figueiredo?
2. O ambiente de Antônio Pedro de Figueiredo
A partir de considerações preconceituosas de seu tempo, e que em alguns ambientes das “elites” brasileiras ainda perduram até hoje em casos análogos, Antônio Pedro de Figueiredo não tinha “boa” origem. Era mulato, pobre, de pais desconhecidos, nascido na periferia da capital da província de Pernambuco, na aldeia de Igarassu. Embora demonstrasse uma mente lúcida e brilhante, foi vítima de preconceitos racistas, que se refletem no apelido de “Cousin Fusco”, com que foi caracterizado em alusão à sua cor. Um dos jornais da época, O Volcão, em 30 de agosto de 1847, o caracterizou da seguinte forma:
Aquele tostado que vem a seu lado é o ridículo Cousin Fusco, filho do pardo Bazílio lá de Iguarassú, onde sempre viveu de limpar a estrebaria de seu Pai, e de pescar os seus siris e bordiões; mas em aqui chegando, quis estudar, e indo fazer exame de geometria na Academia de Olinda, foi ali reprovado; o primo Xico Barão gostou, e teve muitas simpatias pela estupidez, o despachou par substituto do Liceu desta cidade na mesma faculdade, onde ele havia sido reprovado; é um mentiroso, e o maior caloteiro; não quer ser pardo, e chama a todos nós de canalha; é tão safado, que vindo aqui seu irmão, disse a todos que era seu criado, quando só ele é o criado de boléia do primo Xico Barão (5).
Mas Figueiredo ultrapassou as desvantagens de seu ambiente e de sua origem. Por isto merece que hoje nos reportemos a ele, e destaquemos sua memória. Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste faz uma justa homenagem a Figueiredo, quando dedica algumas páginas a seu pensamento. Diz Freyre:
Essa figura sugestiva de mulato intelectual da primeira metade do século XIX pede um estudo à parte; mas não quisemos deixar de fazê-lo passar por estas páginas com relevo de suas qualidades mais evidentes de crítico social, num meio tão desfavorável a tais pendores como o Nordeste patriarcal do século passado. O “Cousin-Fusco” é inseparável da história da cana-de-açúcar no Nordeste. O próprio Imperador, tão sensível às sugestões intelectuais, sobretudo às de cor filosófica, é possível que se deixasse influir pelas reflexões de Figueiredo quando, precisamente na época de maior atuação do crítico do Recife – 1840 a 1850 -, decidiu enfrentar com firmeza a prepotência dos grandes senhores dos canaviais (6).
Durante muito tempo Figueiredo foi quase esquecido, talvez porque tenha sido ofuscado pelo ambiente acadêmico da Faculdade de Direito do Recife, que, posteriormente, formou uma plêiade de pensadores, que se abrigou sob a denominação de filósofos da “Escola do Recife”. E Figueiredo ainda não se encontra nesta “Escola do Recife”. Talvez possa ser considerado um precursor destes intelectuais, que se tornaram protótipos (conservadores) da intelectualidade pernambucana para as gerações futuras.
Mas, felizmente, A. Pedro de Figueiredo não caiu no esquecimento. Hoje já possuímos estudos que recuperaram sua memória, e o situam em seu devido lugar. Basta pesquisar estas referências. A seguir menciono alguns destes escritos. In FREYRE, Gilberto. Nordeste (5ª.ed.). Rio de Janeiro, José Olympio, p 115-120; LARA, Tiago Adão. As raízes cristãs no pensamento de Antônio Pedro de Figueiredo. Rio de Janeiro, UEL, s/d; In JAIME, Jorge. História da filosofia no Brasil, vol.I, 2ª.ed. Petrópolis, Vozes, 1998, p 157-162; In COSTA, F.A. Pereira da. Dicionário biográfico de Pernambucanos Célebres. Recife, Fundação de Cultura do Recife, 1982, p 145-154; PAIM, Antônio. O ecletismo de Antônio Pedro de Figueiredo. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, vol XVI, fasc.6 , 1966, janeiro/março, p 7-26 ; CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981. VEIGA, Gláucio. A.P. De Figueiredo e Feitosa. In:História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife, vol.III. Recife, Editora Universitária, 1982, p 213-263. Adelaide Gonçalves, professora da Universidade Federal do Ceará, faz várias referências a Antônio Pedro de Figueiredo, quando estuda O Fourierismo e os primórdios do Socialismo no Brasil (2000). Aqui também não se pode esquecer o destaque que Amaro Quintas(1911-1998) dá ao Jornalista Antônio Pedro de Figueiredo. Quintas reeditou em 1950 a Revista O Progresso, criada e publicada por Figueiredo de 1846-1848. E em seu livro O Sentido social da Revolução Praieira, em homenagem ao centenário desta rebelião, Quintas faz referência à participação de Figueiredo, como mentor, neste movimento, mas não se teria envolvido diretamente no conflito.
Importante também é a análise do ambiente cultural do Recife na época de Figueiredo. Pois as características deste ambiente nos podem levar a entender melhor as suas aspirações, engajamentos e idéias.
Com a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808, a censura a impressos de qualquer ordem, livros, revistas, jornais, com certeza diminuiu. A Família Real, inclusive, trouxe ao Brasil a sua Biblioteca, que se tornou a semente da atual Biblioteca Nacional. Anteriormente grande parte deste material impresso vinha ao Brasil através de contrabando, escondido nos porões dos navios, ou trazido ilegalmente de outra forma. Praticamente não existiam gráficas. Os poucos escritos aqui impressos ou eram produzidos em ambientes religiosos, ou eram clandestinos. Inclusive, muitos livros em português eram impressos na França, ou mesmo na Holanda, e dali remetidos clandestinamente para cá. Com todas estas dificuldades, existiam , no entanto, algumas bibliotecas particulares, principalmente de congregações religiosas, e de gabinetes de leitura. Desta forma, as gazetas e as revistas cumpriram destacado papel na difusão das idéias nas primeiras décadas do século XIX. A pequena elite cultural, assim, podia acompanhar a produção literária e filosófica produzida na Europa. Cada vez mais as idéias iluministas se espalhavam por aqui através dos jornais franceses encontráveis nos gabinetes de leitura. No acervo da Faculdade de Direito, conforme registros da década de 1830, constam a Revue des Deux Mondes (1835-1837); o Journal de l’Institut Historique(1834-1836); o Journal des Conaissances Utiles(1832-1837); o Journal des Economists, Illustration, La Revue, Revue Britannique(1833-1837); além de obras análogas em inglês. A biblioteca da Faculdade de Direito podia ser considerada de porte razoável, com cerca de quatro a cinco mil volumes. Para formá-la se juntou a biblioteca dos padres oratorianos com doações particulares e contribuições do Governo Imperial. Com a criação da Faculdade, iniciou o comércio de livros e também foi criada a biblioteca pública do Recife, até então inexistente. Mesmo com esta ampliação do acesso aos livros, contudo continuava internamente à Faculdade a censura, pois os compêndios deviam ser aprovados pela Congregação da Faculdade. Este também é o tempo das “sebentas” e o início das traduções. Ao lado da biblioteca dos cursos jurídicos mencionam-se também, na época, algumas bibliotecas particulares e as bibliotecas do Mosteiro de São Bento e dos Conventos de São Francisco e do Carmo. A implantação dos cursos jurídicos, além de incrementar a venda de livros, fez também que entre os estudantes aumentassem os círculos de leitura, as sociedades literárias e as folhas estudantis. Estas folhas estudantis discutem temas literários, filosóficos e políticos, com a intenção de combaterem a ignorância política. Para imprimir “folhas”, jornais e livros, principalmente livros de Direito e traduções do francês e inglês, surgem em Olinda, já a partir de 1831 as primeiras tipografias. Entre traduções da época encontram-se obras de Voltaire, Stuart Mill, Erasmo, Bentham. Em 1845, o dono de uma tipografia e livraria, em Olinda, expõe várias publicações que haviam chegado da França, por encomenda do engenheiro francês Vauthier fourierista, residente no Recife desde 1840. Entre as obras expostas estavam entre outros: Almanack Phalansterien; Les Enfants au Phalanstére;Débâcle de la Politique; Notions de la Science Sociale Vie; Examen et Défense du Sistème, de Fourier; Exposition abrégée du Sistème de Fourier; Trois Discours; de la Politique Nouvelle; Solidarité; Nouveau Monde Industriel; Petit Cours de Politique et d’Economie Sociale. Em outras livrarias também se encontravam, na mesma época, boa quantidade de livros em francês, principalmente referentes à filosofia de Fourier. O que indica o trabalho de Vauthier em divulgar o pensamento de seu ideólogo no Recife. Conseguindo, assim, também a aproximação com Antônio Pedro de Figueiredo. E Figueiredo, através de Vauthier, tinha acesso a importantes revistas e livros políticos e filosóficos vindos da França.
O ambiente favorável à cultura francesa no Recife possibilitou a Figueiredo que ele, muito cedo, dominasse o francês, o qual aprendeu junto aos oratorianos. E mal completara 20 anos quando traduziu do francês, de forma correta, o Curso da história da filosofia, do filósofo eclético Victor Cousin. Isto lhe valeu o apelido, considerado pejorativo, de “Cousin Fusco”, com o qual passou para a história.
Para se manter, Figueiredo entrou cedo no magistério e dedicando-se, ao mesmo tempo, à vida literária e jornalística. Por isto é caracterizado, geralmente, como professor e jornalista. Foi no exercício destas atividades que expressou e viveu sua filosofia social e política. E seus escritos nos permitem conhecer seu pensamento, que ultrapassa, em vários aspectos, o seu tempo. E por causa de suas antecipações, na análise dos problemas sociais, já foi denominado de profeta. Ainda hoje seu pensamento é inspirador na busca de soluções para problemas sociais, cuja solução o Brasil ainda não conseguiu equacionar adequadamente até os dias atuais. Talvez mais justiça faríamos a Figueiredo se o caracterizássemos como escritor, jornalista, professor, filósofo e sociólogo. Tudo isto nos leva a crer que vale a pena reavivarmos sua memória e seu pensamento entre os estudiosos e os políticos de nosso tempo. Pois, deixarmos que suas idéias nos inspirem, sem dúvida, será útil para nos sensibilizarmos diante de situações sociais injustas que ainda perduram em nosso meio. Vejamos, então, a seguir, aspectos de seu pensamento.
3. A filosofia de Antônio Pedro de Figueiredo
Os estudiosos de Antônio Pedro de Figueiredo caracterizam a sua filosofia a partir de diversos sistemas. Mas o que, de fato, ele foi? Eclético, socialista, liberal, fourierista? Conservador, reformista ou revolucionário? Abolicionista, iluminista? Talvez todos estes conceitos se lhe possam aplicar. O importante não é que ele seja fragmentado nisto ou naquilo, mas que vejamos por detrás de suas idéias uma alma sensível aos problemas humanos de seu tempo. Busca justiça, dignidade, respeito, liberdade, solidariedade e oportunidades para que todos possam viver uma vida digna. Em função destas suas aspirações, denuncia os equívocos de sua época, e anuncia caminhos melhores para a estruturação social e política.
Uma das denúncias de Antônio Pedro de Figueiredo foi apontar a concentração de terras no Brasil e, especialmente, em Pernambuco. Isto foi visto, imediatamente, como um atrevimento por parte de um mulato. Pois, sendo ele mulato, deveria aceitar seu lugar na hierarquia social, em que as oligarquias dominavam, e os outros, índios, escravos, mulatos e libertos deveriam se conformar em serem humildes, obedientes e fiéis. Figueiredo ignora esta desqualificação de sua condição racial, e enfrenta a poderosa oligarquia, apregoando a necessidade de uma reforma agrária. Numa passagem da revista O Progresso diz:
A maior parte do território de nossa província está dividida em grandes propriedades, fragmentos das antigas sesmarias, das quais mui poucas hão sido divididas. O proprietário, ou rendeiro, ocupa uma parte delas e abandona, mediante pequena paga, o direito de permanecer n’outra e de cultivá-la, a cem, duzentas e algumas vezes a quatrocentas famílias de pardos ou pretos livres, dos quais ele se torna protetor natural, mas deles também exige obediência absoluta, e sobre eles exerce o mais completo despotismo... É mister que os indivíduos pouco abastados possam obter terras, e cultivá-las com a certeza de gozar dos produtos, condições que hoje não existem, porque os senhores de engenhos ou de fazendas se recusam obstinadamente a vender qualquer porção destas terras, fonte e garantia de seu poder feudal, e porque o desgraçado morador que se arrisca a plantar fica à mercê do proprietário, que o pode despedir de suas terras dentro de vinte e quatro horas (7).
Neste texto, como em outros, Figueiredo demonstra a sua preocupação social, abordando o problema dos latifúndios no Brasil, e propagando as idéias iluministas. Em seus escritos lutava pelo direito ao trabalho, pela liberdade na imprensa, pela justiça para com os explorados. Quando se analisa a relação de Antônio Pedro de Figueiredo com o engenheiro francês Vauthier, não poucos estudiosos sugerem que suas idéias socialistas brotaram nestes contatos. Vamireh Chacon contesta esta versão, afirmando que Figueiredo já era socialista antes dos diálogos com Vauthier. É claro, trocando idéias com o fourierista Vauthier , as suas preocupações sociais se devem ter intensificado. Com bastante propriedade se pode dizer que, com sua preocupação social, em relação à necessidade de uma reforma agrária, e sua exigência de tratamento digno para com pardos e negros escravizados ou já libertos, Figueiredo se antecipou, em muito, ao seu tempo. Assim, de certa forma, foi um profeta. Pois, a sua intuição ainda hoje é muito atual. E, da mesma forma como ele, nós, hoje, deveríamos propugnar pela reforma agrária e pela dignificação da vida de muitos afro-descendentes e indígenas. Depois do quase esquecimento de A. Pedro de Figueiredo, após sua morte, ele não foi reencontrado primeiramente como filósofo ou profeta social, e sim a partir de seu apelido de Cousin Fusco. Isto é, em relação ao ecletismo, por ter traduzido livros do filósofo eclético francês Victor Cousin. Mas este namorico com o ecletismo arrefeceu rapidamente também em Figueiredo. No primeiro número de “O Progresso”(1846), em seu artigo “Certeza humana” Figueiredo já vê problemas no ecletismo, quando afirma que “desgraçadamente o ecletismo, que tinha declarado que todos os erros dos seus predecessores provinham do dogmatismo exclusivo, se deixara também assaltar pela febre do dogmatismo”(8). A partir desta constatação, em relação aos ecléticos, Figueiredo se distancia de Cousin na análise da possibilidade de nossa razão constituir conceitos de verdade e certeza em nossos conhecimentos. Admite que a verdade é produto do sujeito, mas “porque a verdade humana não é absoluta, nem por isto deixa de ser revestida de toda a certeza possível, pois que o sujeito (homem) é o elemento indispensável da criação de uma idéia mesma de uma certeza qualquer, e a idéia de verdade é alguma coisa puramente humana”(9). Percebeu, assim que o ecletismo não era o caminho da verdadeira filosofia. Pois, inerente a toda filosofia existe uma metafísica, que nenhum sistema verdadeiramente filosófico pode desprezar. E o ecletismo tende a ignorar isto. Por isto mesmo não se pode qualificar a filosofia de Figueiredo como um filosofar eclético. Mais justo, me parece, é a caracterização do pensamento de Figueiredo como um pensar engajado, que nasce da realidade concreta de seu ambiente e de seu tempo, em diálogo com diversos pensadores da época.
Conclusão
Para quem deseja fazer uma filosofia com conseqüências, e não apenas uma filosofia de pura ilustração, encontra em Antônio Pedro de Figueiredo um protótipo. Ele mergulhou nos problemas de seu tempo. Problemas de conhecimento e problemas sociais. Também não conservou suas intuições e idéias entre quatro paredes de uma academia, ou no recôndito de sua mente. Foi para a frente de batalha: lecionou, escreveu, traduziu, debateu, fundou revistas e escreveu em diversos jornais. É esta a missão do filósofo, se deixar envolver pela realidade como que num manto. Estar lá onde se encontram os problemas humanos, escrever em jornais e revistas, publicar livros dar palestras, lecionar, ir para programas de televisão e de rádio; permanecer sensível a tudo o que é humano e desumano. Anunciar, denunciar e criticar. Informar-se sobre tudo o que está acontecendo no mundo do pensamento, da cultura, nas ciências e na tecnologia. Desta forma, o filósofo está sempre com a mente atenta, estudando, pesquisando, aprendendo. Deveria ser alguém capaz de dar razões de suas convicções, e de sugerir respostas ao ser humano em suas crises, angústias e desamparos. Além disto, ao lembrar Pedro de Figueiredo, somos como que advertidos que nossa filosofia deve estar situada. Mesmo que nossas inspirações nasçam no diálogo com os filósofos estrangeiros, europeus ou americanos, contudo as suas conseqüências concretas devem estar voltadas para os problemas do homem em nosso meio. O filósofo não pode ser apenas um universalista. Não seremos salvadores do mundo. Mas podemos ser alguém que, com seu pensamento, contribui para uma saúde espiritual, social e cultural dos homens próximos a nós, cujo rosto nos interpela. Pois, uma filosofia que não tiver conseqüências, melhor que ela não exista. E se os nossos cursos de filosofia não irradiaram suas idéias, e estas não encontrarem chão para se encarnarem, melhor que não existissem, e, principalmente, com eles não se gastassem dinheiros públicos necessários para alimentar o povo.
Notas
(1) Cf. SILVA, Leonardo Dantas. A ESCRAVA que falava INGLÊS. In: http://www.fundaj.gov.br/docs/rec/rec04.html(08/09/2006). Divisão de Hemeroteca. In: http://www.fisepe.pe.gov.br/apeje/hemero.htm (08.09.2006).
(2) Cf. A Imprensa Pernambucana e o Diário Novo. In: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/diario_novo.html
(14.08.2006).
(3) Cf. Pernambuco em Meados do Século XIX. In:
http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/pernambuco.html
(14.08.2006).
(4) Cf. A Disputa Política e o Problema Social em Pernambuco. In: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/disputa_politica.html
(14.08.2006).
(5) Cf. BASTOS, Elide Rugai. 150 Anos de um Debate sobre Reforma Agrária. In: Cadernos AEL, n. 7, 1997.
(6) FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5ª.ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1985, p 119-120.
(7) Cf. BASTOS, Elide Rugai. 150 Anos de um Debate sobre Reforma Agrária. In: Cadernos AEL, n.7, 1997; cf. FREYRE, Gilberto. Nordeste, 5ª.ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1985, p 117.
(8) Cf. VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. III vol. Recife, Editora Universitária, 1982, p 221.
(9) Cf. idem, p 222.