ASPECTOS DA FILOSOFIA NA HOLANDA - Erasmo de Rotterdam (1466-1536) – (*)

Introdução

Por causa da dificuldade lingüística, quase ninguém de nós tem contato direto com a produção literária e cultural da Holanda. Por isto, o nosso conhecimento em relação à produção intelectual e artística holandesa é precária. Não pretendo falar sobre toda esta produção cultural holandesa. Somente sobre alguns aspectos da filosofia que se articulou na Holanda, ou a partir da Holanda. Mas antes de entrar especificamente em questões filosóficas, é interessante lembrar o fundamento espiritual que animou os habitantes deste pequeno país com muitas águas e terras conquistadas ao mar.

Na história intelectual da Holanda encontramos teólogos, filósofos, juristas e artistas de renome internacional, dos quais nem sempre nos lembramos que são holandeses, ou que se refugiaram na Holanda, buscando ali a liberdade não permitida em suas pátrias. Outros deixaram a Holanda em busca de um mundo mais amplo. Especialmente desde a Renascença, e depois nos inícios dos tempos modernos, a Holanda passou por períodos de maior liberdade de pensamento do que outras regiões da Europa. Muitos judeus portugueses e espanhóis, que não aceitaram converter-se ao cristianismo, migraram para Amsterdam Até hoje, muitas casas comerciais em Amsterdam têm nomes portugueses. Certamente pertencem a descendentes daqueles judeus de Portugal que, no século XVI e XVII, escapuliram da inquisição portuguesa. Outros suspeitos da inquisição ali também encontraram abrigo. Discordantes políticos da Inglaterra, e de outros países, se sentiam mais seguros na Holanda. Os filósofos Descartes e Locke sentiam-se mais livres em Amsterdam. Isto não significa que na Holanda não houvesse intolerâncias, pois encontramos também intelectuais holandeses, que abandonaram seu país para, com mais liberdade, divulgarem suas idéias em outras paragens. Spinoza, embora excomungado da sinagoga de sua comunidade judaica em Amsterdam, contudo conseguiu produzir sua filosofia permanecendo na Holanda. Mas, Erasmo de Rotterdam preferiu viver a maior parte de sua vida fora da Holanda; Hugo Grotius escreveu suas principais obras na França.

O espírito de liberdade, com certeza, também é estímulo para a criatividade. Isto, talvez, explica, ao menos em parte, a presença na Holanda de artistas como van Eyck, Rubens, van Gogh( cujos 150 anos de nascimento se celebra neste ano de 2003), Rembrandt; e também os tão falados artistas aqui no Recife, Eckhout e Frans Post.

Penso que estes preâmbulos, muito gerais e superficiais, nos mostram um pouco o que caracteriza a Holanda até hoje: uma certa ânsia na busca de um mundo com horizontes mais amplos, com liberdade de consciência.

Mas, para não ficar apenas em considerações muito genéricas, escolhi um intelectual holandês sobre o qual pretendo fazer algumas considerações mais específicas: Erasmo de Rotterdam

(*)Texto elaborado para reflexão na Associação Brasil-Holanda, em Recife (2003).

(**) Inácio Strieder é Professor do Depto. De Filosofia da UFPE

Erasmo de Rotterdam (1466-1536)

Erasmo merece algumas simpatias especiais, ao menos de minha parte, embora não o considere perfeito sob todos os aspectos. Neste sentido, não é necessariamente um santo que caiba nos altares da Igreja Católica, embora talvez merecesse isto mais do que muitos outros que enfeitam nossos altares. Por isto, com certeza, Erasmo merece ser recordado.

Quem é Erasmo?

Desiderius Erasmus Roterodamus é um humanista e teólogo, filólogo e filósofo holandês, que nasceu em Rotterdam, provavelmente, em 27 de outubro de 1466. Faleceu em Basiléia, na Suíça, aos 12 de julho de 1536. As informações sobre sua família e sobre seus primeiros anos de vida são retiradas de referências rápidas que ele mesmo faz em seus escritos. Consta que ele foi filho natural de Gerardius de Präel, um padre, que faleceu quando Erasmo tinha 13 anos. Sua mãe também faleceu precocemente. Embora nascesse fora do casamento seus pais sempre o trataram com amor. Recebeu a melhor educação disponível para jovens de seu tempo em uma série de escolas monásticas e semi-monásticas. Já mais experiente na vida, ele interpretou a sua educação fundamental como uma conspiração para forçá-lo a seguir a vida monástica. Em 1492, de fato, foi ordenado padre e fez os votos monásticos. Mas não consta claramente durante quanto tempo exerceu o sacerdócio. Ironicamente, a vida monástica foi um dos principais objetos de suas críticas à Igreja Católica durante sua vida.

Em 1495, Erasmo foi estudar teologia na Universidade de Paris, então o principal centro de estudos da escolástica tardia. Erasmo detestou a vida na universidade e em breve a deixou. E, desde então, os seus principais centros de atividade foram Paris, Lovaina, Basiléia e várias cidades da Inglaterra. A estadia na Inglaterra lhe foi frutuosa durante toda a sua vida, pois ali fez amizades com alguns dos líderes intelectuais da Inglaterra, no período do reinado de Henrique VIII, como Tomás Morus, John Colet, Tomás Linacre e Guilherme Grocynthe. Neste tempo lecionou em Cambridge e circulou com destaque nos meios acadêmicos. Mas renunciou a tudo isto, pois preferia uma vida menos acomodada e literariamente mais independente. Assim, foi morar, durante três anos (1506-1509), na Itália. Neste período estabeleceu estreito contato com a Editora de Aldus Manutius, em Veneza. Posteriormente, na Bélgica, sofreu críticas e hostilidades que o forçaram a buscar refúgio no ambiente mais tolerante de Basiléia, na Suíça. Ali encontrou amigos devotados e se associou, durante mais anos, com o grande editor Fröben. Neste período também lhe foi solicitado por Roma para que retornasse à vida monástica. Mas recorreu, e o Papa Leão X lhe concedeu o privilégio de permanecer no mundo.

Erasmo foi um dos mais destacados intelectuais de seu tempo, conhecido em toda a Europa. Envolveu-se, principalmente, nas polêmicas relativas à Igreja. Sentiu-se chamado a contribuir na purificação da doutrina e na liberalização das instituições da cristandade. Como acadêmico lutou por um método que libertasse o ensino do rígido formalismo da tradição medieval. Mas não se satisfez com isto. Constituiu-se em pregador da justiça e estava convencido de que a regeneração da Europa passava por uma educação, que levaria a reformas corajosas na administração pública no âmbito da Igreja e do Estado. Foi esta convicção que deu unidade à vida de Erasmo, mesmo que pareça cheia de contradições. Pode-se dizer que ele estava no centro do movimento literário de seu tempo. Escreveu cartas para mais de quinhentas personalidades políticas e intelectuais de seu tempo. E seus conselhos, sobre os mais diversos assuntos, eram ansiosamente esperados e rapidamente seguidos.

Ao final de sua vida, Erasmo se encontrava em discordância com ambos os partidos em luta pela reforma protestante. Os seus últimos anos de vida foram amargurados por discordâncias com personalidades pelas quais havia demonstrado, por diversas formas, simpatia. Quando em 1529 a cidade de Basiléia foi definitivamente “reformada”, Erasmo foi morar em Freiburg-im-Breisgau. Pareceu-lhe que seria mais fácil conservar sua neutralidade sob a Igreja Católica do que sob as condições do protestantismo. Sua atividade literária não foi propriamente afetada com isto. Escrevia, principalmente, sobre assuntos religiosos e didáticos. Por razões desconhecidas, Erasmo voltou a Basiléia em 1535, depois de uma ausência de seis anos. Ali, em meio a um grupo de intelectuais protestantes, que durante muito tempo haviam sido seus fiéis amigos, e sem que se saiba que tivesse tido contatos com a Igreja Católica, faleceu em 1536. Durante toda a sua vida, jamais foi convocado a prestar contas de suas idéias perante autoridades da Igreja Católica. Os ataques contra ele sempre provieram de pessoas particulares, e os seus protetores provinham dos grupos mais proeminentes de seu tempo. Depois de sua morte a Igreja Católica colocou seus livros no Index librorum prohibitorum, e no âmbito da Igreja seu nome se tornou suspeito. Mas a extraordinária popularidade de seus livros pode reconhecer-se pelas numerosas edições e traduções que apareceram desde o século XVI até hoje. E ainda hoje muitos se interessam em conhecer a excitante e controvertida personalidade de Erasmo.

Os escritos

Erasmo se tornou especialmente conhecido por causa de seus escritos críticos e satíricos, como o “Elogio da Loucura” publicado em Paris em 1509 e diversos de seus “Colóquios”, publicados, em intervalos, a partir de 1500. Estes escritos se dirigem a um público maior e tratam de múltiplas questões humanas. Escritos mais sérios de Erasmo encontramos, por exemplo, no “Manual do cristão honrado” de 1503, no “Manual do militante cristão” de 1504, nos “Provérbios”, de 1508. No pequeno livro, “Manual do cristão honrado”, Erasmo elenca seus pontos de vista sobre a vida normal de um cristão, que foi uma preocupação de toda a sua vida. Para ele o ponto fundamental é a sinceridade. E o principal mal de seu tempo é o formalismo com respeito às tradições e à avaliação para com o que outros povos consideram essencial, e não a reflexão sobre qual teria sido o verdadeiro ensinamento de Jesus Cristo. Erasmo quer um cristianismo sem teologia. O que interessa para a vida cristã é uma educação simples e piedosa. Por isto, o remédio para cada um é perguntar-se sobre si mesmo e sobre cada questionamento: o que é essencial? E agir sem medo, de acordo com a resposta. As formas não são más em si mesmas. São más apenas quando ocultam ou reprimem o espírito com que deveriam estar animadas. Erasmo acerta suas contas com o monaquismo, com o culto aos santos, com a guerra, com o espírito de classe, com as fraquezas da sociedade, o que lhe merece, futuramente, a reputação de satírico. Um livro complementar ao “Manual” é o “Institutio Principis Christiani” (Basiléia,1516) . Neste livro Erasmo dá conselhos ao jovem rei Carlos, da Espanha, futuramente Imperador Carlos V. Volta aos mesmos princípios gerais de honorabilidade e sinceridade que já anteriormente propusera para a vida de qualquer cristão. Agora os exige também do Príncipe que, para ele, é o servo do povo.

Na Inglaterra, Erasmo havia iniciado uma revisão sistemática dos manuscritos do Novo Testamento com o objetivo de fazer deles uma nova edição, e utilizá-los para uma nova tradução do Novo Testamento. Esta edição foi publicada por Fröben em Basiléia, em 1516, e foi a base para a maioria dos estudos científicos da Bíblia durante o período da Reforma. Erasmo dedicou esta obra ao Papa Leão X , como patrono do ensino. O Papa, certamente, apreciou esta dedicação. E Erasmo considerou esta obra como sua principal contribuição ao cristianismo saudável. Logo depois, Erasmo iniciou a publicação de suas Paráfrases do Novo Testamento, onde, em versão popular, apresenta os conteúdos dos diversos livros do NT. Esta obra, bem como todos os livros de Erasmo, foi escrita em latim. Mas, imediatamente, começou a ser traduzida para as mais diversas línguas populares da época, o que ele mesmo aprovou de coração.

O Elogio da loucura

Quando Erasmo visitou seu amigo humanista Thomas Morus em 1509, compôs O Elogio da Loucura( Encomium Moriae), sua obra mais famosa e controvertida. Este ensaio personifica a loucura, em que a Loucura, ironicamente, louva as loucuras do dia-a-dia. Erasmo ataca práticas religiosas supersticiosas, teorias não críticas de cientistas tradicionais e a vaidade de líderes da Igreja. Ataca também as crenças supersticiosas do povo em espíritos e gnomos, bem como rituais cristãos com orações aos santos. Uma tal superstição envolve a prática da venda de indulgências, com o correspondente certificado emitido pela Igreja. Tais indulgências significariam o perdão de uma condenação por causa de um pecado e reduziriam o tempo em que uma alma passaria no purgatório. Para conseguir dinheiro para grandiosos projetos de construção, Papas autorizaram a venda de certificados de indulgências, com os quais se poderiam diminuir condenações espirituais de vivos e de almas no purgatório. Erasmo continua satirizando uma série de pessoas e ocupações, como os camponeses, os poetas, os retóricos, os juristas e os tacanhos cientistas da natureza. Também se dirige aos companheiros de vocação: os que fizeram os votos monásticos. Estes nem são religiosos, nem monges, pois estão demasiadamente preocupados com rituais. Eles fazem votos de pobreza, mas acumulam um bom dinheiro através da mendicância. Sem papas na língua, Erasmo critica o comportamento dos mais altos líderes da Igreja. Os bispos vivem que nem príncipes. Ele argumenta que sua verdadeira função se tornaria evidente se prestassem atenção ao simbolismo de seus trajes. Suas vestimentas representam uma vida irrepreensível; sua mitra bipartida representa o conhecimento do Antigo e Novo Testamento; suas luvas representam a liberdade em relação aos negócios mundanos; o báculo significa o cuidado por seu rebanho; a cruz, conduzida em sua frente nas procissões, simboliza a vitória sobre todas as paixões terrenas. A palavra “bispo” significa que ele deve trabalhar com zelo e preocupação. Também os cardeais são sucessores dos apóstolos, e a sua verdadeira função também está simbolizada em suas vestimentas. Por exemplo, seu manto branco simboliza uma vida destacada e íntegra. Os Papas ocupam o lugar de Cristo, e deveriam primar na imitação de Cristo, especialmente na pobreza, no trabalho, na doutrina, na cruz, no desprezo da vida. Mas eles parecem estar mais preocupados em ganhar dinheiro.

A atitude em relação à Reforma

Um ano após a publicação da nova versão do Novo Testamento por Erasmo foi deflagrado o movimento luterano. E isto representou um pesado teste para o caráter pessoal e acadêmico de Erasmo. Nesta questão era difícil ficar neutro. Por causa de sua fama, Erasmo foi solicitado a tomar posição neste conflito entre a sociedade européia e a Igreja de Roma. Mas Erasmo não era um homem partidário, e quando critica os abusos clericais deixa claro que não está atacando as instituições da Igreja como tais, nem demonstra inimizade para com os homens da Igreja. O mundo ria com suas sátiras, mas somente alguns reacionários queriam proibi-las. A sua obra, com certeza, repercutiu nas melhores mentes e nos poderes religiosos dominantes de seu tempo. E não há dúvida que simpatizava com as principais críticas que Lutero fazia à Igreja. Manifestou grande respeito para com a personalidade de Lutero, e Lutero falou com admiração dos conhecimentos de Erasmo. Mas, quando, posteriormente, Erasmo não acompanhou os passos demasiadamente ousados de Lutero, isto foi interpretado pelo reformador como covardia e inconstância de propósito. Pois, Lutero imaginava que as críticas de Erasmo teriam como conseqüência natural a reforma que propunha. Posteriormente, Erasmo foi visto pelo protestantismo como alguém que não assumiu as conseqüências de sua luta. Por outro lado, a Igreja Católica Romana estava também desejosa de usufruir dos serviços de um homem que tão abertamente havia declarado lealdade aos princípios que defendia. E esperava que agora não fosse infiel ao que havia assumido. Mas uma avaliação das críticas de Erasmo mostrava como suas propostas se aproximavam de tudo que a Reforma propunha. E isto suscitava a suspeita de deslealdade. Os males que havia denunciado eram primordialmente formais, que já durante muito tempo eram objeto de escárnio por parte das pessoas mais sensíveis; eram males que só poderiam ser corrigidos através de uma longa e vagarosa regeneração moral e espiritual da vida européia. Livrar-se dos absurdos, restaurar o ensino, respeitar os direitos, insistir numa saudável prática religiosa, e todos estes males haveriam de desaparecer: este era o programa da “reforma de Erasmo”. Ninguém podia duvidar da solidez de seus desejos. Fracassou porque não apresentou nenhum método prático para aplicar seus princípios ao sistema de Igreja vigente na época. A reforma já havia demorado muito, e a impaciência de muitos exigia uma ação imediata. Quando Erasmo foi acusado de “ter posto o ovo que Lutero chocou”, ele concordou em parte com a acusação, mas explicou que havia esperado que nascesse outra espécie de pássaro.

Em várias cartas, Lutero manifesta uma enorme admiração para com tudo que Erasmo havia feito por um cristianismo saudável e razoável, e o convida a selar os seus objetivos entrando em seu partido. Erasmo responde com expressões de respeito, mas renuncia a qualquer comprometimento partidário. Ele argumenta que, entrando no partido luterano, isto prejudicaria sua posição de líder de um puro movimento de educação, que ele considerava a real ação de sua vida. Ele confia que somente com sua posição de intelectual independente ele, de fato, contribuiria com a reforma religiosa. O aspecto construtivo da obra de Erasmo era fornecer uma nova base doutrinal para a reforma. E com o reavivamento dos princípios teológicos agostinianos, Lutero havia fornecido o necessário impulso para o interesse religioso pessoal, individual e subjetivo, que é a essência do protestantismo. E era isto que Erasmo não podia aprovar. Erasmo não propunha nenhuma mudança na doutrina essencial da Igreja, e confiava que no interior da própria Igreja havia espaço suficiente para fazer as reformas que propunha. Duas vezes ele interveio na controvérsia doutrinal, embora isto não fosse de seu estilo. Um dos tópicos que abordou formalmente foi a questão da liberdade da vontade, um ponto crucial de todo o sistema agostiniano. No seu livro De libero arbítrio(1524), ele analisa com grande competência o exagero luterano, como diz, das limitações da liberdade humana. Ele procede como se costumava na época, apresentando os dois lados do problema. E a posição que assume é a tradicional da Igreja, quando trata do perdão dos pecados: que o homem está sujeito ao pecado, mas, apesar de tudo tem o direito ao perdão de Deus. Para isto basta que demonstre a vontade de recorrer aos meios que a Igreja oferece. Isto pareceu a Lutero uma solução fácil e semi-pelagiana, demasiadamente humana na prática, e que motivou acirrados debates entre Erasmo e os reformadores. Pois Lutero defendia no seu livro De servo arbitrio a total perversão da vontade humana e a necessidade absoluta da graça de Deus para a salvação, sem mérito humano.

A doutrina eucarística

Quando a doutrina luterana se espalhou e o povo começou a aderir, começaram a se manifestar as desordens sociais que Erasmo tanto temia. A revolta dos agricultores, as perturbações anabatistas na Alemanha e nos Países Baixos, movimentos iconoclastas e radicalismos de toda ordem pareciam confirmar o que Erasmo havia predito com tristeza. E já que isto estava acontecendo por causa da Reforma, ele só podia dar graças a Deus de estar fora. Mas, cada vez com maior freqüência era acusado de ter despertado esta tragédia. Na Suíça ele estava especialmente exposto a críticas por sua associação a homens suspeitos de doutrinas demasiadamente racionalistas. Em questão estavam especialmente as doutrinas sobre os sacramentos, e no centro estava a doutrina eucarística. Para se livrar das críticas e confessar-se de acordo com a doutrina ortodoxa, publicou em 1530 o Tratado de Algerus contra o herege Berengar de Tours do século XI . Na dedicatória a esta obra confessa a fé na presença real de Jesus Cristo após a consagração, mas acrescenta que a forma desta presença é controvertida nas opiniões de muitos homens de bem. O importante seria que a Igreja prescrevesse a doutrina e deixasse os detalhes da questão ao debate dos filósofos. Ao que parece, Erasmo admitia que cada um podia ter duas opiniões em relação às questões religiosas: uma para si mesmo e seus amigos mais íntimos, e outra para o público em geral. Pessoalmente, ao que parece, interpretava o sacramento da eucaristia bastante racionalmente.

A vitória tardia de Erasmo

Aos 18 de abril de 2003, no Dia da Reforma, católicos e luteranos se encontraram em Augsburg, e publicaram uma declaração conjunta sobre a doutrina da justificação, uma controvérsia de quase 500 anos. E neste Encontro esteve espiritualmente presente Erasmo de Rotterdam. Ninguém como ele lutou tanto pela “amorosa unidade da Igreja”, prepondo a união à separação, o essencial ao não-essencial, admoestando ambos os lados a buscarem o restabelecimento da autoridade da Igreja, para o bem da humanidade.

Ao final de sua vida, Erasmo considerava o violento e amargo desentendimento entre Roma e Lutero uma grande tragédia. Permaneceu fiel a Roma, embora não se deixasse capturar nem pela Cúria Romana, nem pelo Papa. Pelo contrário, já no “Manual do militante cristão” e no “Elogio da loucura”, Erasmo denunciara os abusos na Igreja. Mas não como um fanático e com voz ameaçadora, mas com um olhar agudo. Com crítica satírica e cheia de humor apontava os erros e as injustiças na Igreja e no mundo. Especialmente seu “Elogio da loucura” encontrou leitores em toda a Europa e, rapidamente, foi traduzido para 10 idiomas. Isto lhe grangeou a simpatia de Lutero e dos intelectuais da Europa de então. O tema central de seus escritos são os costumes humanos.

Os valores centrais de Erasmo foram a sabedoria e a verdade, a liberdade e a humanidade, de acordo com os quais a religião deveria se pautar. Para Erasmo, a verdade sempre é divina, venha ela do cristianismo, ou do paganismo. Por isto, Erasmo nunca falava de uma teologia cristã, mas da “Filosofia de Cristo”, que se orientaria pelo Sermão da Montanha e não por Paulo, como queria Lutero. Para ele, os filósofos não são os donos da verdade. Mas têm a obrigação de desmascarar abusos de poder e injustiças. A partir daí, acena para o Sermão da Montanha, onde encontra a essência da “filosofia de Cristo”, com a proposta de uma vida simples e piedosa.

Erasmo, com seus escritos e críticas, abriu caminho para a Reforma. Mas ele próprio não era um homem de ação, e sim um mestre na prevenção, evitando fanatismos religiosos e ideológicos. Erasmo sempre considerava os múltiplos aspectos dos problemas, nunca com os esquemas bipolares de preto e de branco, de bem e de mal. Não era maniqueísta. Considerava as autoridades com suspeita. Erasmo foi um homem liberal. Talvez o primeiro nos inícios dos tempos modernos. Nietzsche chegou a dizer que na bandeira do Iluminismo deveria estar escrito o nome de Erasmo. Erasmo se protegeu dos partidarismos, pois buscava o entendimento. Defendeu a paz e repudiou as guerras.

Os valores que Erasmo defendeu ainda hoje são válidos. Especialmente os seguintes:

- Tolerância, amor à paz, valorização da arte, da cultura e do estudo das línguas estrangeiras.

- O humor e a capacidade pedagógica de transmitir suas idéias, através de seus escritos.

- A defesa do direito das mulheres de freqüentarem as escolas e de estudarem.

- Como cristão, mediador entre os conflitos entre as igrejas e os desentendimentos entre os povos.

Para concluir, podemos afirmar que Erasmo de Rotterdam foi um dos mais importantes humanistas, um significativo teólogo e filósofo cristão, um filólogo, um pacifista, um crítico dos poderes religiosos e mundanos, um crítico da escolástica e do culto às relíquias. Lutou por um humanismo cristão. Isto o aproximou, de certa forma, da Reforma Protestante. Erasmo, porém, se distanciou de Lutero por causa da posição anti-humanista de Lutero em relação à liberdade da vontade humana. Ele desaprovou também a desastrosa atitude de Lutero em relação à revolta dos agricultores, em que morreu Thomas Müntzer. Lutero, por sua parte, classificou Erasmo como um cético e um epicureu. E, a partir desta briga, o humanismo e a reforma andaram por caminhos diferentes. E até hoje encontramos propostas conflituosas entre razão e fé, especialmente na área do protestantismo. E isto nos sugere que ainda hoje é necessária uma reconciliação do homem consigo mesmo, em que razão e fé se encontrem com sinceridade e verdade. E nesta tarefa, Erasmo ainda nos aponta um caminho.