TODOS CANTAM A POESIA

MINHA TERRA, de Casimiro de Abreu

Todos cantam sua terra,

Também vou cantar a minha,

Nas débeis cordas da Lira

Hei de fazê-la rainha;

— Hei de dar-lhe a realeza

Nesse trono de beleza

Em que a mão da natureza

Esmerou-se em quanto tinha.

(...)

Muitos tentam dizer o que é a poesia, também o quero tentar. Claro que não sou a dona da verdade. Apenas coloco minha palavra, em meio a tantas, um direito que me assiste. Os críticos desenvolvem um trabalho técnico e que deve ser respeitado. Por sua vez, precisam considerar o valor do trabalho alheio _ o que não quer dizer que vivam elogiando, mas que tentem ser justos, seja uma obra poética ou outra qualquer. Por exemplo, o pedreiro é um artista e sua obra contém poesia, mesmo que dela o profissional não se aperceba. Não foi treinado para tal fim. Entretanto o sentido do belo não lhe falta. Temos em nosso cancioneiro um exemplar emocionante, aquele que fala da vida desses profissionais da construção civil. Vale a pena transcrevê-lo aqui:

Cidadão

Zé Geraldo

Composição: Lucio Barbosa

Tá vendo aquele edifício moço?

Ajudei a levantar

Foi um tempo de aflição

Eram quatro condução

Duas pra ir, duas pra voltar

Hoje depois dele pronto

Olho pra cima e fico tonto

Mas me chega um cidadão

E me diz desconfiado, tu tá aí admirado

Ou tá querendo roubar?

Meu domingo tá perdido

Vou pra casa entristecido

Dá vontade de beber

E pra aumentar o meu tédio

Eu nem posso olhar pro prédio

Que eu ajudei a fazer

Tá vendo aquele colégio moço?

Eu também trabalhei lá

Lá eu quase me arrebento

Pus a massa fiz cimento

Ajudei a rebocar

Minha filha inocente

Vem pra mim toda contente

Pai vou me matricular

Mas me diz um cidadão

Criança de pé no chão

Aqui não pode estudar

Esta dor doeu mais forte

Por que que eu deixei o norte

Eu me pus a me dizer

Lá a seca castigava mas o pouco que eu plantava

Tinha direito a comer

Tá vendo aquela igreja moço?

Onde o padre diz amém

Pus o sino e o badalo

Enchi minha mão de calo

Lá eu trabalhei também

Lá sim valeu a pena

Tem quermesse, tem novena

E o padre me deixa entrar

Foi lá que cristo me disse

Rapaz deixe de tolice

Não se deixe amedrontar

Fui eu quem criou a terra

Enchi o rio fiz a serra

Não deixei nada faltar

Hoje o homem criou asas

E na maioria das casas

Eu também não posso entrar

Fui eu quem criou a terra

Enchi o rio fiz a serra

Não deixei nada faltar

Hoje o homem criou asas

E na maioria das casas

Eu também não posso entrar

http://letras.terra.com.br/ze-geraldo/68686/

O texto contém um queixume profundíssimo. E não é necessário ser pedreiro para sentir a dor desse lamento legítimo. Como se pode constatar nos versos acima, o pedreiro constrói um mundo do qual se vê repudiado, alijado.

Lúcio Barbosa veste a pele coberta de cimento de todos os pedreiros e diz a poesia que esses homem são e fazem, sem exatamente terem a noção do que os críticos em geral julgam ser a arte. Zé Ramalho imortaliza com sua interpretação a alma dos operários que sepultam a poesia de suas almas nos rebocos de todas as paredes construídas na face da Terra.

O poeta é um pedreiro, seus tijolos são as palavras emendadas pelas preposições, conjunções, etc., e sopradas pela inspiração. As palavras, por sua vez, são indóceis tijolos, pedras rebeldes e promovem efeitos os mais inesperados, principalmente na poesia. Esta vem sem ser chamada, uma espécie de superioridade da qual nem mesmo os seus possuídos se dão conta. A poesia é uma caipora que dá nó nos seus cabelos enquanto você dorme, só porque adora brincar.

O ser humano é, transpira e respira poesia, mesmo que disto não tenha consciência ou não consiga colocá-la em palavras, tintas, música, filmes, etc. Viver é fazer arte. Cabe aos mais avisados, estudados, sensibilizados, civilizados, educados perceber artistas por toda parte. Até onde muitos julgam não haver arte. Quem sabe o que é a poesia é quem nasce poeta, quem morrerá poeta e quem das flores e das formigas do túmulo fará poemas. Casimiro de Abreu e Lúcio Barbosa, aqui lembrados, criaturas duplamente abençoadas, tanto por terem nascido plenos da poesia quanto por terem conseguido expressá-la para os seus semelhantes.