OS JESUÍTAS E SUAS MATRIZES UTÓPICAS

1. Introdução

Como se diz na ementa desta “mesa redonda”, o objetivo que se pretende é “discutir como podemos identificar e analisar as matrizes utópicas dos jesuítas, dos africanos e dos indígenas brasileiros no devir histórico do Brasil”. Nesta tarefa comum da “mesa”, cabe a mim “identificar e analisar as matrizes utópicas dos jesuítas”. A questão seria, então, verificar como estas matrizes utópicas repercutiram no “devir histórico do Brasil”. Em termos mais simples, trata-se de identificar e analisar como a filosofia utópica jesuítica repercutiu no desenvolvimento histórico do Brasil. Colocada desta forma a questão que queremos discutir, pressupõe-se, de imediato, que por detrás da ação jesuítica no Brasil existia um pensamento utópico. Sendo assim, é necessário, em primeiro lugar, identificar quais são as notas típicas duma “utopia”. Em segundo lugar, perguntar quem são os jesuítas, e com que intenções e métodos partiram da Europa para missionar o mundo. Em terceiro lugar, como agiram, especificamente, entre os índios do Brasil e no restante das Américas.

Outra questão preliminar é o tempo histórico dentro do qual se situa a questão jesuítica aqui abordada. Jesuítas também existem hoje. Mas não se trata destes, e sim dos jesuítas antes da supressão da Ordem em 1773. Os jesuítas, depois da restauração da Ordem em 1814, e que retornaram novamente ao Brasil a partir de 1845, nunca mais tiveram uma influência tão marcante na cultura e formação do povo brasileiro como no período anterior.

Tratando-se, portanto, dos jesuítas entre 1540 (ano da aprovação da Ordem pelo Papa Paulo III) e 1773 (ano da supressão da Ordem pelo Papa Clemente XIV), donde colher as informações para a nossa análise?

Bem. As informações sobre os jesuítas são abundantes e ricas. Isto, em grande parte, por mérito dos próprios jesuítas. Contrariamente ao costume de outras Ordens religiosas, os superiores das províncias e casas jesuíticas tinham por obrigação enviar, todos os anos, relatórios detalhados sobre suas atividades, sucessos e dificuldades, ao Superior Geral da Ordem em Roma. Além disto, muitos jesuítas destinados a missionar nas mais diversas partes do mundo haviam estudado nas melhores universidades da época. Por isto, não poucos eram escritores, e registravam suas impressões, idéias e atividades em livros e crônicas. E estes escritos, ainda hoje, são fonte riquíssima para etnólogos e historiadores pesquisarem os costumes e os acontecimentos do tempo da “conquista” e do período colonial das potências européias, ao menos até a segunda metade do século XVIII. Mas, ao lado desta literatura jesuítica, também existem os documentos da Igreja oficial da época; os documentos políticos; os livros dos viajantes. No Brasil, em todo este período, não existe nenhum documento, nem livro, diretamente proveniente de indígenas ou africanos, comentando a colonização européia ou a ação missionária. Nos escritos não-jesuíticos podemos colher as críticas aos jesuítas, tanto por parte de documentos políticos, como eclesiásticos. E estas críticas se intensificaram no período próximo à expulsão da Ordem do Brasil, em 1758, por obra do Marquês de Pombal. Em relação às outras regiões da América Espanhola intensificam-se também as críticas, resultando na expulsão da Ordem dos territórios espanhóis, em 1767. Esta anti-propaganda jesuítica, patrocinada no Brasil pelo Marquês de Pombal, no meu entender, repercute até hoje na mentalidade de muitos acadêmicos Brasileiros. De vez em quando, lendo algumas dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sobre a ação dos jesuítas no período colonial, tem-se a impressão de que as opiniões e conclusões ali expressas não passam dos preconceitos pombalinos contra os jesuítas. Penso que, por isto, é necessário que os historiadores façam uma deshistória de tais interpretações, e, a partir de estudos mais rigorosos dos abundantes documentos referentes aos jesuítas do período colonial, se chegue a afirmações menos ideológicas em relação ao valor humanitário do que realizaram.

Mas, entremos no nosso tema: matrizes utópicas dos jesuítas.

2. O que são utopias?

Antes de abordar possíveis dimensões utópicas na ação e no pensamento jesuítico, é necessário determinar algumas características próprias de todo pensamento utópico. De acordo com Adolfo Sánchez Vázquez, toda mentalidade utópica se orienta pelos seguintes tópicos:

1. A utopia remete imaginariamente para uma sociedade futura, inexistente até agora. No presente, não existe lugar para ela. “Utopia” significa “não existe tal lugar”.

2. A utopia não é, mas deve ser. Em contraste com a contra-utopia, ela é assumida por seus autores e proposta aos leitores como valiosa e desejável.

3. A utopia é valiosa e desejável, justamente, por estar em contraste com o real, cujo valor rejeita e considera detestável. Toda utopia, portanto, inclui uma crítica ao que existe. E, pelo fato de estar em relação com uma realidade que, por ser detestável, é criticada, ela é considerada necessária.

4. A utopia, rejeitando e criticando o real, não apenas toma distância em relação ao que existe, mas se apresenta como uma alternativa imaginária para os males e as carências atuais.

5. A utopia não só antecipa imaginariamente esta alternativa, mas expressa também o desejo, a aspiração e a vontade de realizá-la. O que significa que a sociedade utópica, que se deseja e à qual se aspira, é considerada possível.

6. Ao se tentar realizar a utopia, mostra-se a impotência ou a impossibilidade de realiza-la. Porém, esta incapacidade – absoluta em certas utopias – é relativa e condicionada em outras. O fracasso de hoje pode ter êxito amanhã. Os sonhos e as ilusões do momento presente, podem ser uma realidade no futuro

De acordo com esta caracterização, a utopia está na ordem do irrealizável, enquanto a topia tem lugar, e está na ordem do realizado ou do realizável no real. Caso não se aceite o real, a utopia se torna necessária para transcendê-lo. Na medida em que se questiona o real (a sociedade, o poder, as instituições, os costumes...), abrindo um espaço ideal, irreal ou futuro, a utopia aparece como subversiva. Subverte o real, e abre uma janela para a existência do possível. Existem, portanto, incompatibilidades entre a utopia e a topia, entre o possível e o real; e se trata de superar o real, transcendendo-o e transformando-o, para que o possível encontre um lugar na realidade. A utopia passa então a ser uma eutopia: um lugar bom. Isto significa que uma utopia concreta, determinada, deixa de ser tal para dar lugar a uma nova utopia. Mesmo que uma utopia fracasse, isto não anula o valor de qualquer utopia, pois pode acontecer que em outras condições, em novos tempos, se possa recorrer a novos meios para realizá-la

A utopia, mesmo sendo subversiva, não é propriamente revolucionária. Pois a revolução substitui o sistema anterior; a utopia, geralmente, pretende apenas corrigir o sistema existente.

A literatura utópica, com certeza, é uma crítica ao presente. E, muitas vezes, a proposta utópica diz mais do presente do que do futuro. Segundo Leibniz, “o presente está grávido de futuro”. E os autores utópicos, geralmente, não fixam um prazo para que suas utopias sejam implantadas em algum lugar concreto. Muito interessante é constatar que as raízes do pensamento utópico remontam aos remotos tempos do antigo Egito, dos impérios babilônicos. Embora o termo “utopia” tenha sido cunhado por Thomas Morus, em 1516, com seu livro “De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia”, ele recorreu conscientemente a antigos modelos literários. O seu estado “utópico” é, por assim dizer, um contraponto à “Atlântida” na “Politeia” de Platão. É característico dos autores utópicos localizarem suas utopias em lugares distantes, em alguma ilha, em algum novo continente, em lugares ermos. Hoje, a ficção científica, que é uma literatura que tem certo parentesco com a literatura utópica, imagina situações ideais em outros planetas, com ETs mais inteligentes do que os humanos.

As utopias nascem do desejo profundo do ser humano por situações melhores na vida. Elas se alimentam da esperança. Muitas vezes falam dum “paraíso perdido” e anunciam a possibilidade de um “novo paraíso”, sempre em inconformidade com situações não desejáveis do presente. É uma espécie de “saudade do futuro”. Quando o homem ouve falar de que em algum outro lugar há condições de melhorar sua vida, ele “arma as velas de seu barco e navega em busca de tal lugar”. É isto que sustenta a mentalidade utópica. Por isto, alguém já disse que “o mapa-mundi que não assinalasse a ‘utopia’ seria um mapa que não merecesse nossa atenção”. Neste sentido, Platão propõe uma “república ideal”; Thomas Morus indica como seriam as condições ideais da vida em sua “ilha utopia”; Campanella arquiteta “a cidade do sol”; Francis Bacon descreve a “Nova Atlântida”; o cristianismo busca trazer à terra os sinais do “reino de Cristo”, com um mundo de justiça e de solidariedade; os povos guaranis peregrinam em direção à uma “terra sem males”; Marx quer uma “sociedade sem classes”; o MST está esperando por um pedaço de terra para plantar e se alimentar; os ecologistas esperam que um dia a terra esteja salva da poluição, com muito verde e biodiversidade; para os cientistas, um dia chegaremos lá, superando toda a ignorância, com muito progresso e tecnologia. É “o princípio esperança” de Ernst Bloch. O contrário de tudo isto são as distopias ou as anti-utopias, que descrevem sociedades catastróficas: o fim do mundo com fogo; novos dilúvios; a poluição total da terra com o efeito estufa derretendo os gelos dos pólos; a 3a.guerra mundial, com bombas atômicas e outras armas de destruição em massa; o eixo do mal tomando conta da humanidade, com atos terroristas se multiplicando cada vez mais; a corrupção tomando conta da política; a ciência “brincando de deus”, com clonagens humanas e de animais produzindo monstros; o envenenamento da vida com produtos transgênicos; ETs invadindo a terra, etc.etc.

Pelo que apontei, fica claro que a mentalidade utópica e distópica mexe com as esperanças e desesperanças, com os desejos e as angústias da humanidade; com o inconformismo do homem perante os males do mundo, e com o otimismo de que somos capazes de construir algo melhor.

Estas reflexões nos permitem agora perguntar: e os jesuítas se orientaram por um paradigma utópico em sua atividade missionária em todo o mundo, e especialmente no Brasil e restante da América Latina? Vejamos isto agora.

3. Quem são os jesuítas?

A Ordem dos jesuítas surge na transição do mundo medieval-renascentista para o mundo moderno. O seu fundador foi um militar, que, após ferido em batalha contra os franceses, decidiu deixar o exército do Rei da Espanha, para formar uma milícia de Cristo, e combater pelo reino de Deus. De soldado do Rei de Espanha transformou-se em soldado de Cristo. Era preciso alistar-se sob a bandeira da cruz. As suas armas seriam a Bíblia, especialmente o Evangelho, os ensinamentos de Pedro e Paulo; os votos de pobreza, castidade e obediência; com uma especial obediência ao Romano Pontífice; o conhecimento das ciências, artes e letras. É a primeira vez na história que alguém forma um exército que privilegia o conhecimento. Embora, posteriormente, Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas, advirta que é mais importante avaliar as pessoas pelo que fazem, do que pelo que dizem.

Na proposta de fundação da Ordem, aprovada por Paulo III, em 1540, se diz que a Companhia de Jesus “foi instituída principalmente para o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, e para a propagação da fé, por meio de pregações públicas, do ministério da palavra de Deus, dos Exercícios Espirituais e obras de caridade, e nomeadamente pela formação cristã das crianças e dos rudes, bem como por meio de confissões, buscando principalmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos...” As normas do Instituto da Ordem são apenas meios para buscar e servir com todas as forças a Deus.

Uma vez fixados os princípios básicos da Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, pergunta-se quem se poderia filiar a esta Ordem religiosa, como “companheiro de Jesus”, com a capacidade de agir conforme as exigências e princípios propostos. E aí se diz: “Todo aquele que pretender alistar-se sob a bandeira da cruz... para combater por Deus e servir somente ao Senhor e ao Romano Pontífice, seu vigário na terra...persuada-se...” A linguagem é tipicamente castrense: alistar-se, bandeira, combater. Posteriormente, nos Estatutos da Ordem, o Superior da Ordem é denominado de “general”. Mas, ao mesmo tempo, o apelo é dirigido ao indivíduo: persuada-se. Por sua filiação à “milícia de Cristo”, o jesuíta deve ter uma disposição de obediência “ac cadaver”, mas como sujeito a opção de assumir e viver o estilo jesuítico é totalmente pessoal. Neste sentido, a Ordem dos jesuítas é uma Ordem moderna, diferente das Ordens religiosas medievais. Os jesuítas não têm obrigações comunitárias, nem de vida, nem de orações em comum. Não possuem um traje típico como os beneditinos, carmelitas, franciscanos, nem práticas devocionais obrigatórias. Devem ser homens “exímios em letras e humanidades...”, conhecedores de línguas, capazes de se desligarem de seus laços pátrios e familiares, dispostos a serem enviados “sem demora para qualquer região... sem qualquer subterfúgio ou escusa... quer entre os turcos ou outros infiéis, mesmo que seja para as regiões a que chamam Índias, quer para entre hereges e cismáticos, quer ainda para junto de quaisquer fiéis”. Este envio poderia ser em grupo, ou individualmente, pois o jesuíta deveria ser alguém totalmente confiável, não necessitando de controle de seus companheiros para cumprir a sua missão. Além disto, deveria ser capaz de discernir no lugar em que atuasse o que era mais conveniente fazer, a fim de encaminhar o seu trabalho para “a maior glória de Deus”. Não deveria ser uma personalidade fraca, que agisse apenas sob as ordens diretas de um Superior presente. Cada qual deveria ser capaz de tomar decisões. Tudo o que fosse útil e favorável à divulgação e prática da mensagem cristã deveria ser respeitado, e assumido como meio de apostolado. Destas decisões, de tempos em tempos, prestaria conta aos seus superiores. Ao Superior Geral da Ordem, em Roma, ou aos seus Superiores regionais. Dali o rico material informativo nos arquivos jesuíticos, hoje muito procurado. pelos historiadores. Exemplos desta prática jesuítica são Francisco Xavier, no Japão; Matteo Ricci, na China; Roberto de Nobili, na Índia; Nóbrega, Anchieta, Vieira..., e muitíssimos outros missionários espalhados pelo mundo inteiro.

Como a experiência militar havia ensinado ao fundador dos jesuítas, que nenhum exército desordeiro e desunido ganhava batalhas, exigiu que todos os jesuítas estivessem “unidos pela mente e pelo coração”. Portanto, não deveriam existir desavenças na Ordem, nem indisciplinas. Só assim se atingiria o objetivo máximo a que se almejava.

Penso que estas observações gerais, sobre a filosofia e a mística jesuíticas, já são suficientes para se compreender que o cristianismo e a Igreja, que os jesuítas buscavam, era um cristianismo e uma Igreja transnacional e transcultural. Construir isto, de certa forma, é uma utopia.

Agora, vindo os jesuítas ao Brasil, orientados pelos moldes acima descritos, o que aconteceu?

4. Os jesuítas no Brasil

O campo de atuação dos jesuítas era muito amplo. Mas, aos poucos, a Ordem começou a privilegiar determinadas atividades. E a atividade que, rapidamente, vai caracterizar os jesuítas é a instrução. Já o primeiro projeto da Ordem propunha como objetivos fundamentais da atividade da Ordem o “ministério da palavra de Deus...a formação cristã das crianças e dos rudes...” Estes objetivos levaram os jesuítas, desde cedo, a fundarem colégios. Aqui no Brasil, tendo os jesuítas chegado em 1549, um ano depois, já haviam fundado um colégio na Bahia.

O fundador dos jesuítas não havia previsto o apostolado direto com instituições de ensino, mas os pedidos de papas, bispos e leigos para criar escolas modificaram sua opinião. E por ocasião de sua morte, em 1556, 75% dos jesuítas disponíveis já trabalhavam com educação. Em 1749, portanto cerca de duas décadas antes da supressão da Ordem, os jesuítas tinham 669 colégios, 176 seminários, 61 casas de estudos jesuíticos, além de 24 universidades, que eram total ou parcialmente controladas pela Companhia de Jesus. Os alunos dos colégios provinham de todas as classes sociais. Os colégios eram gratuitos, e não cobravam anuidades, pois eram patrocinados por um sistema fundacional. O sistema pedagógico seguia a “Ratio Studiorum”, que continha a pedagogia jesuítica.. A segunda atividade mais significativa dos jesuítas eram as missões. Como no século XV e XVI os países católicos da Espanha e Portugal iniciaram a conquista de enormes regiões da terra, os jesuítas se incorporaram no processo de colonização destas terras, na tentativa de cristianização de seus habitantes. Os futuros missionários recebiam treinamento especial. Aprendiam línguas e como se adaptar às culturas diferentes. Este método de aculturação foi brilhantemente realizado por Matteo Ricci, na China, e por Roberto Nobili , na Índia. No Brasil, e em outras partes do Novo Mundo, em geral os missionários jesuítas seguiam a mesma metodologia. Anchieta organizou a primeira gramática tupi/guarani. E muitos outros jesuítas sabiam falar perfeitamente línguas indígenas, inclusive o Pe. Antônio Vieira. Mas o êxito deste método missionário nem sempre agradou às autoridades eclesiásticas. No Oriente foram dramáticas as controvérsias relativas aos ritos malabares e chineses, que finalmente levaram ao fracasso as missões católicas na China. No Brasil, o primeiro bispo, Dom Pedro Fernandes Sardinha, que seria morto e comido pelos Caetés, repreendeu, até certo ponto os jesuítas, porque não acreditava ser correto usarem da língua dos naturais. Nóbrega e os missionários utilizavam-se, na verdade, além da língua, de ritos, nomes, referências e mitos próprios dos indígenas para alcançar seus objetivos. Mas o Bispo reclamava que, se não convertidos totalmente à civilização cristã, os índios não poderiam ser salvos. Aprender o português era, assim, condição necessária, “porque enquanto o não falarem, não deixam de ser gentios nos costumes”. Mas os jesuítas não abriam mão de sua intenção. Nóbrega escreveu, já no primeiro ano de sua chegada: “temos determinado ir viver com os índios nas aldeias... e aprender com eles a língua e ir-los doutrinando pouco a pouco”. “Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas”(Mc 16,17) não havia dito o próprio Cristo, que mandara os apóstolos pregar? Assim entenderam os jesuítas que o uso da “língua geral” seria um meio fundamental na catequese dos indígenas; e para os indígenas, muitas vezes, alguém falar sua língua era um sinal distintivo entre o colonizador escravagista, que não a falava, e o missionário, que a falava e se constituíra em protetor de sua liberdade. E esta diferença de objetivos, entre os colonos e os missionários, foi motivo de muitos aborrecimentos para os jesuítas. As missões, segundo crônicas coloniais, distanciam-se das metas de mero povoamento agrário-mercantil da Coroa Portuguesa. Os colonos deviam enriquecer as finanças do Reino; os missionários jesuítas, porém, soldados de um rei que não era deste mundo, não se propunham, simplesmente, como tarefa transplantar os modos europeus de ser e viver para o Novo Mundo. A sua tarefa era, ao contrário, (como diz Darcy Ribeiro) “recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas... Essas utopias se opunham tão cruamente ao projeto colonial que a guerra se instalou prontamente entre colonos e sacerdotes... Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionários a serviço da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam o reino deste mundo”.

Não poucas vezes nos confrontamos com opiniões, escritas e faladas, de que os jesuítas nas colônias portuguesas e espanholas eram totalmente coniventes com o sistema colonizador, estando a serviço dos reis conquistadores deste países. No meu entender, em grande parte, estas opiniões, muitas vezes até expressas agressivamente, ainda são proveniências tardias dos preconceitos pombalinos. E em relação a isto, para o bem da rigorosidade e da justiça históricas, é necessário fazer uma deshistória. Se não, vejamos o que impulsionou a atividade missionária dos jesuítas: um ideal, uma filosofia, uma utopia?

5. Ideal, filosofia e utopia jesuítica

Na história dos jesuítas ficaram célebres algumas frases dos inícios da Ordem, que se tornaram parte integrante da visão de mundo e da estratégia jesuítica de ação. Inácio de Loyola, para conquistar o orgulhoso jovem intelectual Francisco Xavier na Universidade de Paris, lhe repetia: “O que adianta ganhares o mundo inteiro, se chegares a perder a tua alma?” Outras frases significativas: “Confiar em Deus, como se tudo dependesse d’Ele; mas fazer tudo, como se tudo dependesse de nós”. “Procurar sempre a maior glória de Deus”. “Entrar pela porta deles, para sair pela nossa”. “Todas as criaturas poderão na vida constituir-se em meios, para chegarmos ao fim, que é Deus”. “Estar disposto a peregrinar por muitos lugares (per multa loca peragrare)”. “Obediência ac cadaver”.

Importante também é lembrar-se que a Ordem dos Jesuítas é denominada de “Companhia de Jesus”, e os filhados a ela se auto-compreendem como os “companheiros de Jesus”, propondo-se a cumprir o mandato do Senhor: “Ide a todos os povos, tornando-os meus discípulos” (Mt 28,18-20).

Tais frases de efeito são importantes para compreendermos o desdobramento da ação missionária jesuítica. Por isto podemos agora perguntar, com que objetivo vieram os jesuítas ao Novo Mundo, ao Brasil? Para concordar com o sistema colonizador? Para subverter este sistema? Nem um, nem outro. O objetivo fundamental era: salvar a própria alma, combatendo pela instauração do Reino de Cristo. Os meios para concretizar este objetivo era a catequese dos adultos e a educação cristã das crianças e dos jovens. É preciso também ter presente que “a messe era grande, e os operários poucos”. A primeira leva de jesuítas que veio com Tomé de Souza, em 1549, era composta apenas de 6 jesuítas. Anchieta chega com o 2o. Governador Geral Duarte da Costa, em 1553. E assim, sucessivamente, vão chegando reforços da metrópole. Já em 1551 é fundado o 1o. Colégio em Salvador da Bahia. Imediatamente alguns dos missionários são encarregados de organizar aldeias indígenas, pacificando e reunindo grupos de silvícolas. O colégio era freqüentado, principalmente, pelos filhos da elite colonizadora; nas aldeias os jesuítas protegiam os indígenas da escravização pelos colonos portugueses e mestiços. Quanto aos colonos, em pouco tempo os missionários se convenceram que eram totalmente corruptos, orientados pela cobiça, depravados em seus costumes. Por isto, para poderem desenvolver seus objetivos missionários civilizatórios, necessitavam do poder político. Desta forma a aproximação e o compromisso com o poder político foi considerado, pelos jesuítas, como um meio protetor para conseguirem seus objetivos. Assim, as aldeias recebiam sesmarias, e os colégios fazendas para se manterem. Os reis subvencionavam as missões, e proibiram a escravidão do indígena . Mas nem sempre os Reis atendiam aos pedidos dos jesuítas. Vieira quis fundar uma Universidade no Brasil, mas Portugal não permitiu. Nesta ocasião, desolado, Vieira exclamou: a nossa universidade será debaixo dos telhados de palha das aldeias indígenas. Com certeza, a aprendizagem das línguas indígenas, a proteção do indígena contra a escravidão, a aproximação com o poder político, a educação humanitária das elites colonizadoras era a estratégia jesuítica de “entrar pela porta dos poderosos, e pela aspiração de proteção e paz dos indígenas, para conseguir o objetivo missionário da catequese cristã”.Isto é, “entrar pela porta dos outros, para sair pela deles”. Nisto tudo, os jesuítas seguiam um ideal e uma filosofia de ação. No começo mostraram certos escrúpulos em introduzirem escravos negros em suas fazendas, donde tiravam parte do sustento dos colégios e outras atividades missionárias. Mas depois se acomodaram ao sistema, não contestando devidamente a escravidão negra. Inclusive, é paradoxal que os jesuítas no Brasil se batessem tanto pela liberdade dos indígenas, e tão pouco questionassem as desumanidades da escravidão negra. Não temos no Brasil um jesuíta que se dedicasse tanto aos negros, como em Cartagena de Índias, na Colômbia, onde atuou entre os negros o primeiro Santo da América Latina, o jesuíta Pedro Claver.

Com o seu ideal místico e a sua filosofia, os jesuítas se locomovem intensamente pela Colônia. Chegado ao Brasil, em 1553, Anchieta, em 1554 já está em São Paulo e funda em Piratininga um colégio. Quando Mem de Sá e Estácio de Sá, entre 1560 e 1567, expulsam os franceses e fundam definitivamente o Rio de Janeiro, lá também se encontram os jesuítas. Episódio notável foi o “desterro” de Iperuí ( atual Ubatuba), em que Nóbrega e Anchieta ficam reféns dos Tamoios. Ocasião em que Anchieta escreveu seu Poema à Virgem Maria.

Até ao final do séc. XVI destacam-se no cenário colonial os três principais colégios da Colônia: Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Neste tempo foram mortos pelos carijós em Cananéia, os jesuítas João de Souza e Pedro Correia (1554); O Beato Inácio de Azevedo e 39 companheiros, em viagem às missões do Brasil, foram atirados ao mar e martirizados por calvinistas franceses, perto das ilhas Canárias (1570). Outros 12 missionários jesuítas, sofreram a mesma sorte um ano depois (1571).

Em princípios do séc. XVII os jesuítas chegam ao Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e dali para toda a Amazônia. As duas casas, fundadas em São Luís do Maranhão(1622) e em Belém do Pará (1626), transformaram-se, com o tempo, em grandes colégios e em centros de expansão missionária para numerosas aldeias indígenas espalhadas pela Amazônia.

Ainda no séc.XVII, quando da descoberta das minas e do povoamento do sertão, os jesuítas passavam periodicamente por esses locais em missão volante.Já no séc.XVIII, quando Mariana (MG) foi elevada à diocese (1750), foram chamados para dirigir e ensinar no seminário. Em 1749 fundaram aldeias em Goiás. Em inícios do séc.XVIII também chegaram a Paranaguá, fundando, posteriormente, ali um colégio. A Ilha de Santa Catarina foi visitada pelos jesuítas, desde 1635, e em 1751 fundaram ali um colégio. Também em 1635, jesuítas chegaram próximos a Porto Alegre e atuaram na aldeia Caibi. Na Colônia do Sacramento os jesuítas trabalharam desde 1678 até 1758, quando foram expulsos. Também ali haviam fundado um colégio, e exerceram outras atividades pastorais.

Em meados do séc.XVIII entra em cena o Marquês de Pombal, com um novo Regimento para as aldeias indígenas em todo o território colonial português. Abroga o poder temporal exercido pelos missionários nas aldeias indígenas; proíbe as línguas indígenas nas escolas das aldeias e inculpa os jesuítas pelas dificuldades de execução do Tratado de Limites da Colônia do Sacramento e pela “Guerra Guaranítica” nos Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul. E na campanha contra eles, se tornam os “bodes expiatórios” para todas as dificuldades da política portuguesa da época. Por ocasião do terremoto de Lisboa, em 1755, são censurados por sua pregação de penitências; foram acusados de alta traição por causa do atentado contra D. José I, Rei de Portugal, em 1757. E o jesuíta Pe. Gabriel Malagrida, missionário de muitos anos no Nordeste Brasileiro, foi condenado como herege pela Inquisição, e queimado vivo em praça pública de Lisboa. Tudo isto favoreceu a lei de expulsão dos jesuítas dos domínios de Portugal. Havia, neste momento, 670 jesuítas no Brasil. Os que não renunciaram à sua pertença à Ordem, foram presos, permanecendo incomunicáveis, sem direito à defesa, condenados e embarcados para as prisões em Lisboa. Alguns foram despejados nos Estados Pontifícios, onde o Papa Clemente XIII os hospedou. Depois da expulsão dos jesuítas dos territórios portugueses (1759), em 1767 foram também expulsos dos territórios espanhóis, e, sucessivamente, dos territórios dos outros países europeus e suas colônias, até a supressão da Ordem em 1773. Na Prússia protestante, a supressão da Ordem dos jesuítas somente foi divulgada em 1780; e na Rússia, Catarina II, da Igreja Ortodoxa, nunca permitiu que o decreto Papal da supressão dos jesuítas fosse divulgado. Por isto, ali, continuaram a existir cerca de 200 jesuítas.

Bem. Depois destes dados preliminares, que considero importantes trazer à memória, chegamos ao que, propriamente, nos interessa: matrizes utópicas dos jesuítas.

6. Ação jesuítica e matrizes utópicas

Os jesuítas se consideram “contemplativos na ação”. E desde o início da Ordem acentuavam o princípio de que era mais importante considerar o que as pessoas faziam do que aquilo que pensavam. Tal atitude, com certeza, era pós-medieval e revolucionariamente moderno, pois a Inquisição não analisava o que as pessoas faziam, mas o que pensavam. E eram considerados hereges por suas idéias, mesmo que praticassem as obras de misericórdia evangélicas (vestir os nus, alimentar os famintos, visitar os enfermos e encarcerados...). Isto nos leva a perguntar se a ação jesuítica era precedida por matrizes utópicas. Penso que sim, mas também penso que não. Não há grande originalidade na utopia jesuítica fundamental: ela se identifica com a “utopia” cristã. Cristo deixou dito a seus discípulos: “ide a todos os povos, tornando-os meus discípulos e batizando-os...” Este era o mandato que condicionava toda a ação dos “Companheiros de Jesus”. Para dar continuidade ao cumprimento deste mandato, os jesuítas montaram a sua estratégia, o seu método. Visavam o máximo de eficiência: tudo para a maior glória de Deus. O efeito seria a presença dos sinais do Reino de Cristo na terra. Em qualquer parte da terra em que atuassem deveriam selecionar os meios para conseguirem o fim que almejavam: cristianizar o mundo. Dali a diversidade enorme de trabalhos que os jesuítas assumiam em suas missões. Algumas atitudes a ordem universalizou. Como, por exemplo, a formação humanística e literária de seus membros; a aprendizagem das línguas dos povos em que atuavam; o conhecimento dos costumes e dos ambientes existenciais dos povos com que conviviam; a aculturação a estes costumes, enquanto não contradiziam os princípios cristãos; a mudança destes costumes quando considerados como corrupção e perversão da natureza humana... Os jesuítas também consideravam como meio importante para atingirem seus objetivos a aproximação com os poderosos. Os príncipes e reis poderiam provê-los dos recursos necessários para a sua ação: eles financiavam seus colégios, os proviam em suas viagens para as missões; lhes concediam terras para suas fazendas, para os aldeamentos dos índios, e os protegiam das ameaças dos colonos e dos índios não cristianizados. Assim, os encontramos ao lado dos Governadores na fundação de cidades, no combate aos invasores, no apaziguamento, na proteção aos indígenas, e também na guerra ao “tapuia selvagem, antropófago e polígamos”, que “ não possuía em seu alfabeto as letras l, r e f, pois viviam sem lei, nem rei, nem fé”. Por isto, contra eles eram permitidas “guerras justas”. Mas, em relação aos outros, que aceitavam a cristianização, o jesuíta era ferrenho defensor de sua liberdade, contrário à sua escravização.

Penso que, a partir dos documentos históricos da época, podemos considerar que o impulso missionário jesuítico era motivado muito mais por um ideal e uma mística do que por matrizes utópicas. A não ser que o mandato de Cristo de pregar sua mensagem no mundo inteiro, e a busca conseqüente do Reino de Deus sejam tais matrizes utópicas.

Mas alguém poderá objetar: e o Quinto Império de Vieira e o Estado Jesuítico do Paraguai?

Vejamos isto, por partes.

a) O Quinto Império de Vieira:

Vieira é um jesuíta, e não fala por toda a Companhia de Jesus. Por isto, tomando isoladamente Vieira e alguns jesuítas simpáticos às suas idéias, expressas, principalmente, em suas obras “Esperanças de Portugal”, “História do Futuro” e “Clavis Prophetarum” ( A Chave dos Profetas), pode-se encontrar em Vieira uma matriz utópica. E, por causa de algumas de suas considerações fantasiosas, neste sentido, teve que prestar contas à Inquisição. Na “História do Futuro” e “Esperanças de Portugal” Vieira está às voltas com o visionário Bandarra. E parece acreditar em suas fantasias sebastianistas e milenaristas, prevendo o surgimento do V Império do Mundo, com Lisboa como capital do Império Universal, e o rei Dom João IV como Imperador do Mundo. Mas a morte de D. João IV derrubou a esperança pela construção deste novo mundo, embora Vieira chegasse a falar na ressurreição de D. João IV, acreditando nas previsões de Bandarra.

Esta simpatia transitória de Vieira pelas idéias utópicas de Bandarra(1662-1668), marcaram até hoje sua biografia. Isto talvez porque nunca havia sido publicada a sua obra inacabada, a Clavis Prophetarum. Com a publicação deste obra, 303 anos depois de sua morte, no ano 2000, é possível conhecer melhor a utopia de Vieira, o seu otimismo sobre o futuro da humanidade e a evolução de suas próprias idéias. Na Clavis Prophetarum o Quinto Império quase desaparece. No Livro III desta obra, Vieira apresenta a síntese de sua utopia e da pregação universal que deveria ser feita para chegar ao “Reino de Cristo consumado na Terra”. Nisto abandona a idéia, expressa em vários textos anteriores, do Quinto Império, como correspondendo a Portugal e ao monarca daquele país.

Em “História do Futuro” e na carta “Esperanças de Portugal”, Vieira tem uma perspectiva milenarista, sempre apresentada como uma das marcas de seu pensamento. Na “Clavis Prophetarum” , essa perspectiva dá lugar a uma fundamentação bíblica, mais conforme com a política realista do tempo de Vieira. Aposta na união entre o Estado e a Igreja. E esta união está a serviço de um mundo sem fronteiras, de uma Igreja do futuro, da qual ninguém está excluído, nem índios, nem negros, nem judeus. Ou seja, o Reino de Cristo não está fora da realidade, antes traduz um tempo em que a humanidade viverá em paz, sem sofrimento nem fome, sem escravatura nem miséria, com as pessoas vivendo mais anos, mas continuando a ser governadas pelos reis e pelos príncipes.

Na “Clavis...” o Pe. Antônio Vieira antecipa idéias hoje comuns, mas polêmicas e novas em seu tempo. Como defensor dos índios e dos judeus, antecipou, de certa forma, o diálogo inter-religioso e intelectual. Juntamente com Bartolomeu de lãs Casas, a quem cita freqüentemente, propõe a inculturação, e explica qual deveria ser o papel dos jesuítas no contexto cultural. Para Vieira, a história da humanidade caminha por três idades: a idade da natureza, da lei e da graça. Neste sentido, entende que Virgílio fez com os pagãos o que Moisés fez com os judeus. Os escritores pagãos são quase enviados de Deus para o seu tempo, assim como Moisés o foi para os judeus. Inclusive, defende a idéia de que os pagãos, escravos e bárbaros, que ignoram invencivelmente os mandamentos de Deus, não serão condenados ao inferno eterno. Um pecado cometido no mundo finito e temporal não poderá merecer uma pena eterna e infinita.

Com a publicação da “Clavis Prophetarum” a imagem de Vieira muda significativamente. Vieira continua paradoxal, como parece paradoxal a atitude dos jesuítas em geral, quando, por exemplo, se trata da defesa da liberdade dos índios e do conformismo com o sistema da escravidão negra. Mas a obra demonstra também um outro aspecto de sua personalidade, e da atitude dos jesuítas: eles, aos menos em seu trabalho missionário, não foram radicais na afirmação de verdades e metodologias imutáveis. Vieira seguiu várias verdades, conforme as diferentes fases de sua vida. Soube pregar aos rudes, debaixo dos telhados de palha no sertão brasileiro, mas também adaptar-se ao estilo de vida dos palácios reais. Em cada lugar avaliava a conveniência e oportunidade dos meios para buscar com fidelidade o fim que pretendia: a maior glória de Deus.

b) O Estado Jesuítico do Paraguai

Quando se trata das matrizes utópicas dos jesuítas não se pode deixar de falar sobre os 30 Povos das missões do Paraguai, dos quais 7 se localizavam em regiões que hoje pertencem ao Brasil. Esta denominada “República de Índios Reduzidos” é o motivo maior pelo qual se costuma especular sobre eventuais matrizes utópicas na ação missionária dos jesuítas. Acontece, porém, que a idéia de separar os índios dos colonizadores espanhóis e portugueses~, e isolá-los em aldeias longe das cidades dos conquistadores, não foi uma originalidade jesuítica. Já Bartolomeu de Las Casas conseguira um território na atual Guatemala, no qual os dominicanos durante 15 anos conseguiram missionar os índios, protegendo-os do contágio com os cruéis colonos espanhóis. Este experimento foi denominado por Las Casas de “Terra da Verdadeira Paz” (Verapaz). Somente após a cristianização, os indígenas tomariam contato com os espanhóis. Mas por causa da invasão do território pelos colonos, o experimento de Las Casas fracassou. Era, no entanto, muito claro aos missionários que os conquistadores não tinham vindo à América para fazer beneficência. O seu interesse era enricar. Por isto, as missões não passavam de um obstáculo à sua ganância por ouro. Para a maioria dos conquistadores a cristianização das populações era indiferente. Apenas alguns religiosos, funcionários e missionários, efetivamente, protestaram e se opuseram ao massacre e à escravização dos índios. Esta situação era geral em todos os territórios colonizados pelas potências européias. Também nas regiões do Paraguai.

Quando os espanhóis, em 1537, fundaram a cidade de Assunção do Paraguai, tiveram que enfrentar a resistência dos índios Guaranis. Embora guerreiros, contudo eram considerados relativamente pacíficos, comparados a outras tribos, que habitavam o Gran-Chaco. Uma vez vencidos, houve temporariamente uma espécie de “pacto de amizade” entre espanhóis e guaranis. Os espanhóis conseguiram, através dos caciques, mulheres com quem se pudessem casar e que se dedicassem ao trabalho do campo. Mas, após pouco tempo os índios perceberam que eles estavam sendo explorados. E, quando o sistema das encomiendas foi oficializado, 100.000 índios foram distribuídos, como forças de trabalho, entre 320 latifundiários espanhóis, o que motivou freqüentes revoltas na região. Por isto, até

1555, praticamente, não houve cristianização entre os guaranis. A cristianização apenas começou em 1575, quando alguns franciscanos chegaram ao Paraguai. Inicialmente fizeram um trabalho de missionários ambulantes. Mas já em 1580 começaram a reunir índios em reduções, isto é, em aldeias afastadas dos espanhóis.

Os primeiros jesuítas chegaram ao Paraguai em 1588, vindos do Brasil. E em 1604 criaram a Província Jesuítica “Paracuaria”, dirigida por jesuítas espanhóis. Já em 1610 os jesuítas, na região, chegavam a cerca de 40, com intensa atividade missionária. Neste tempo receberam a autorização real de colocarem em prática seu sistema de reduções dos indígenas, longe dos espanhóis. Estavam convencidos que era possível um trabalho missionário pacífico, mesmo entre tribos guerreiras. Mas, para isto, era necessário reunir os indígenas em áreas reservadas para sua proteção e educação . Desta forma, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, os jesuítas fundaram cerca de 70 povoações de indígenas entre a Bacia do Rio da Prata e os afluentes do Rio Amazonas, onde tutelavam cerca de 200.000 indígenas, de forma pacífica e com certo bem-estar material. Conseguiram, inclusive, do Rei a equiparação de direitos entre índios e espanhóis. Como todos estes povoamentos seguiam o mesmo sistema administrativo, com a presença de missionários jesuítas, começou-se a falar num “Estado Jesuítico do Paraguai”, numa “República eclesiástica”. Este “Estado”, em sentido mais próprio, se localizava em territórios das bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. As reduções paraguaias duraram 158 anos, com seu início em 1609 e final em 1767, quando da expulsão dos jesuítas dos territórios latino-americanos. Durante todo este período, o único perigo para as Reduções foi externo. Era preciso se defender dos bandeirantes e mamelucos de São Paulo, dos colonos espanhóis e de algumas tribos selvagens do Gran-Chaco.

Desde o início, esta “República de Índios” guaranis fascinou iluministas, socialistas, poetas, historiadores, fiéis e infiéis. Para muitos as Reduções se constituíram numa prova para a possibilidade e a necessidade de se instituir na Europa uma “sociedade melhor”, levando-os a lutarem contra o sistema feudal e o absolutismo dos reis. Este “Sacro Experimento” no Paraguai (Fritz Hochwälder- 1941) inspirou uma rica literatura, com análises e comentários sobre esta “República cristã exemplar”, em que se estaria praticando o “comunismo do cristianismo primitivo”. Muratori, na década de 1730, escreve sobre o “Cristianismo Feliz” nas missões jesuíticas do Paraguai. Até Voltaire admirava o trabalho dos jesuítas no Paraguai. Segundo ele, o mérito dos jesuítas foi o “terem submetido os indígenas através da instrução e da persuasão”, e não pela crueldade das armas. Desta forma, “os sacerdotes souberem impor à barbárie e à ignorância a ordem, a ciência e a felicidade, com sua disciplina doce e firme; desta forma os habitantes aprenderam a cultivar a terra”. E isto significava, para ele, um triunfo da civilização. Montesquieu, também contemporâneo do experimento jesuítico, expressou-se assim: “Honra a Companhia de Jesus ter sido a primeira que, nestas terras, realizou a união entre religião e humanização, reparando a devastação dos espanhóis e iniciando a cura dos maiores ferimentos que a humanidade já praticou...” Também Diderot e o Abade Reynal, que escreveram o 3o volume da “História filosófica e moral das Índias” falam positivamente do experimento jesuítico.

O Experimento das Missões também exerceu forte influência na história das idéias do socialismo europeu. De forma marcante, os utopistas sociais do iluminismo foram estimulados a fazerem especulações a partir da “República Guaranítica”. No séc. XIX, muitos reformadores do sistema agrário recordaram o sistema de distribuição das terras na Reduções. Ainda hoje reformadores agrários mencionam o uso coletivo das terras e dos meios de produção ali praticados. Não havia classes sociais entre os índios das Reduções. Havia uma harmonização entre as atividades técnicas e agrícolas; entre a vida agrícola e urbana; as habilidades culturais e artísticas podiam desenvolver-se com a libertação do homem da luta pela sobrevivência. O comércio era por trocas, e não pelo uso do dinheiro. Ao lado do jesuíta supervisor, o poder era exercido pelos líderes indígenas, os caciques. A segurança era obrigação de todos os habitantes.

Muito se especulou sobre a possível base ideológica do sistema político e administrativo das Reduções. Será que era um “comunismo cristão primitivo”, a exemplo do que dizem os Atos dos Apóstolos sobre a convivência dos primeiros cristãos? Terá sido a realização de um projeto programado de uma “utopia social”? Houve opiniões de europeus, na época, de que os jesuítas estariam tentando realizar no Paraguai o “Estado Platônico”. Outros julgavam poder identificar no Experimento Jesuítico a “Utopia” de Thomas Morus, ou a “Cidade do Sol” de Campanella. Mas para isto não existem argumentos fundamentados.Até hoje um número não pequeno de historiadores qualificam a “República Guaranítica” como uma utopia anti-colonial, embora ela nunca se contrapusesse formalmente ao sistema colonial.

Com certeza, os jesuítas da época não buscavam a instauração de estados ideais, à base de teorias socialistas prontas. O seu interesse fundamental eram as missões, a conversão dos índios ao cristianismo. O esforço civilizatório apenas era um meio, para o fim que pretendiam. A partir dali combinaram estruturas tribais coletivistas, já existentes entre os índios, com as estruturas comunitaristas de Ordens religiosas européias, de uma forma genial e pragmática. Realizou-se assim o encontro entre duas culturas, que estavam em fases diferentes de desenvolvimento. De fato, não consta que os jesuítas quisessem oferecer à humanidade do futuro um modelo exemplar de organização político-social. Claro, não houve uma simbiose perfeita entre elementos da cultura indígena e européia. Os aspectos europeus sempre permaneceram os predominantes, e os indígenas os subalternos. Por isto, a arte, a música e a arquitetura missioneiras não podem ser consideradas indígenas, embora apresentem aspectos destes povos. Este fato, inclusive, mereceu críticas de opositores dos jesuítas na época. Basta ler a Voyage autour du Monde (1771) de Louis Antoine de Bougainville, que visitou o Paraguai, já na época em que a coroa espanhola estava em conflito com os jesuítas. Bougainville declara que os índios não lamentavam a saída dos jesuítas, pois os missionários os tiranizavam, conservando-os em um estado de ingenuidade infantil, sem autonomia própria. Contesta, assim, a afirmação de Voltaire de que a “república eclesiástica”, existente no Paraguai, tivesse sido construída sobre a base da bondade e da humanidade, fundada somente com as armas espirituais da persuasão Em suas considerações, Bougainville condena abertamente as utopias sociais do séc. XVIII, especialmente o otimismo do “bom selvagem” de Rousseau. Chega à conclusão de que, se a propriedade privada é a desgraça dos civilizados, o comunismo tampouco constituía a felicidade dos selvagens.

Outros alegam que, nos mais de 150 de existência das Reduções do Paraguai, nenhum índio foi ordenado sacerdote. Isto, deveras, é estranho, e, geralmente, é interpretado como uma desconfiança dos missionários na capacidade dos índios de guardarem o celibato e a constância nos votos. Penso que também poderíamos aplicar outra chave de interpretação a este fato. Já que os jesuítas não se propuseram a transplantar simplesmente os valores europeus ao mundo indígena, será que, por detrás desta não clericalização do cristianismo indígena, eles não estariam admitindo que a vida cristã também pode ser vivida sem a hierarquia clerical, e sem a obrigatoriedade do celibato institucional, como era praxe na Europa? Já o fundador da Ordem queria que os jesuítas se distanciassem de cargos e honras eclesiásticas (embora fosse exigente em relação aos votos religiosos).

Bem. Penso que as considerações, até aqui feitas, permitem tirar algumas conclusões relativas ao tema de minha exposição: matrizes utópicas dos jesuítas.

Considerações finais

Perguntemos, por isto, seguiam os jesuítas matrizes utópicas? Sim e não.

Sim, se considerarmos a proposta de vida cristã dos Evangelhos e da pregação dos Apóstolos como utopia. Também encontraríamos sinais de utopia na ação jesuítica, se equiparássemos o conceito “utopia” aos conceitos de “filosofia, ideal e mística”. Com certeza, os jesuítas seguiam uma filosofia, um ideal e uma mística em sua técnica missionária. Dependia das circunstâncias e dos meios a execução concreta da técnica pastoral a ser utilizada para atingir o fim a que se propunham. Não há, portanto, argumento sólido para afirmar que seguiam conscientemente alguma matriz utópica. Claro, já que tinham passado por estudos universitários, é provável que conhecessem as utopias da literatura clássica. Mas não se pode afirmar que tivessem escolhido algum modelo utópico para implantá-lo em algum lugar. O sucesso dos aldeamentos e das reduções dos indígenas estava muito mais relacionado com a necessidade de segurança dos índios frente à constante ameaça de escravização, do que por outro qualquer interesse. Foi este sucesso na pacificação e na aproximação de povos, em constante conflito, que causou profunda influência sobre os iluministas e utopistas do séc. XVIII. Todos estes intelectuais liam com interesse os relatos dos viajantes, as crônicas dos missionários e os documentos que provinham das missões, especialmente das missões jesuíticas. Rousseau, por exemplo, dialogava constantemente com ex-missionários jesuítas do Novo Mundo. Estas conversas, sem dúvida, influíram profundamente em suas teorias do “bom selvagem” e do “contrato social”. Por isto, concluo com a convicção de que não foram as utopias já existentes que condicionaram o sistema missionário jesuítico no Novo Mundo e no Oriente, mas a atividade missionária concreta dos jesuítas impressionou profundamente o pensamento utópico de seus contemporâneos, dando origem a novas utopias. Os aldeamentos e as reduções jesuíticas não foram supressos por causa de sua inviabilidade utópica, mas por causa de interesses de domínio territorial e monopólios econômicos das potências colonizadoras européias. Também hoje, muitas vezes, interesses na propriedade da terra pelos donos do poder econômico abortam projetos humanitários e civilizatórios de cultivo da terra com justiça, para o bem-estar social das populações necessitadas de paz e sobrevivência. Penso que, em vez de buscar matrizes utópicas para explicar a ação missionária dos jesuítas, deveria-se perguntar pelas raízes do seu realismo pragmático.

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