Olhar para diagnosticar
ARTIGO - [ 12/09 ]
Olhar para diagnosticar - Edgard Steffen
Notícia publicada na edição de 12/09/2009 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A.
Até o fim dos anos 60, a moléstia de Chagas transmitida por “barbeiros” (chupanças) era comum, inclusive na periferia de Sorocaba
Cronista menor, rendo-me à grandeza dos profissionais. Tem gente que não se cansa em me surpreender. O jornalista Rui Albuquerque, por exemplo. Sou leitor cativo do Espaço do Rui, desde que ele - militante na “Escola de Pais” - assinava coluna no Cruzeiro. Há algum tempo, Rui me honrou ao comentar favoravelmente alguma coisa que escrevi sobre “crianças sem rua” e “sem família”. Recentemente, deixou-me envaidecido ao colocar-me - em grau maior do que mereço - entre grandes médicos sorocabanos, capazes de diagnosticar doenças com simples “olhar” sobre os pacientes.
Escardó, em sua Semiologia Pediátrica, desaconselha a “ojeada previa” com intenções diagnósticas; segundo ele, esse costume pode induzir a erros. Claro que é possível diagnosticar diante casos típicos de doenças neurológicas, dermatológicas ou exantemáticas (sarampo, rubéola, escarlatina). Mesmo contando com sinais característicos, patognomônicos, o diagnóstico pela observação viabiliza-se somente se houver vivência clinica pelo observador.
Haver militado em postos de puericultura, onde atendia de 30 a 40 crianças por jornada, deu-me oportunidades de ver quase tudo o que possa acontecer com crianças em nosso meio. Multipliquem 35 por 220 dias (úteis) durante 13 anos, acrescentem os 10 mil pacientes catalogados em meu consultório, outros tantos dos hospitais e berçários, e terão idéia aproximada, a menor, dos pacientezinhos que atendi em 50 anos de profissão.
O ensino médico atual, baseado no sistema americano em busca do “zero defect” e da prevenção de ações contra “mal-practice”, ensina o futuro médico a basear suas conclusões no resultado dos exames de laboratório ou de imagem. Se, por um lado dá sintonia fina às conclusões, por outro, rouba-lhe coragem de firmar certezas diagnósticas sem os referidos recursos.
Na Vigilância Epidemiológica, trouxeram jardineiro cheio de feridas na face anterior do antebraço; nódulos, alguns ulcerados, seguiam cordão duro em direção à região axilar. Tudo havia começado quando espetara o dedo numa roseira. A ponta do dedo médio ainda exibia a ferida que iniciou o processo. Tratava-se de esporotricose, caso tão típico que reunimos a equipe de saúde para breve demonstração prática sobre essa micose. Com a devida guia de referência, encaminhamos o paciente para os cuidados do dermatologista. Meses depois, não havendo recebido a contra-referência, procuramos saber do caso. O especialista não se aventurara a realizar o tratamento (simples, Iodeto de Potássio, via oral) apesar do diagnóstico clínico indiscutível; preferiu pedir biópsia, e, diante de resultado inconclusivo, repeti-la. Como a realização da biópsia e o relatório do patologista, dentro do SUS, demoram muito, o paciente acabou sarando espontaneamente... assim como poderia ter morrido de tétano ou infecção secundária.
Até o fim dos anos 60, a moléstia de Chagas transmitida por “barbeiros” (chupanças) era comum, inclusive na periferia de Sorocaba. Da janela de minha casa, enxergo o ponto de ônibus. Menina de cinco anos, no colo do pai, exibia sinal típico* de Moléstia de Chagas. Antes que atravessasse a rua para abordá-los, partiram no ônibus da Vila Progresso. A um funcionário, morador no bairro, dei a detetivesca incumbência de localizá-los. Dois dias após, ele me trouxe a dupla. Eram da Região de Itapetininga e vieram a Sorocaba em busca de oftalmologista que tratasse aquele “furúnculo” em um dos olhos. Com a devida licença do oftalmologista (meu ex-aluno), fizemos exames de sangue, que comprovaram o caso, e a Secção de Audiovisuais tirou uma foto da guria. Meu compadre e amigo Dr. Tricta, foi mais adiante: com máquina própria, sofisticada, capaz de tirar slides coloridos, também clicou a garota, em vários ângulos e aproximações, para registrar pormenores da lesão; pretendíamos captar a cor violácea das pálpebras afetadas, em contraposição à palidez da menina.
Nunca mais vimos a paciente. Todos os anos, ao ilustrar a aula de Moléstia de Chagas Aguda, revíamos, em branco e preto, aquele rostinho triste. Por que em branco-e-preto? Meu esforçado compadre-amigo não percebera que a máquina estava sem filme...
(*) Sinal de Romana: inchaço (inchaço) bipalpebral monolateral, revela que o Trypanozoma cruzi penetrou pela mucosa da pálpebra.
Edgard Steffen é médico pediatra (edgard.steffen@gmail.com)