A tragédia do Pecado Sermo L
A TRAGÉDIA DO PECADO
Em outra meditação falamos aqui sobre os chamados “Pecados contra o Espírito Santo”, vistos como uma blasfêmia e um desprezo ao amor que Deus tem por nós, a ponto de nos dar seu Filho (cf. Jo 3,16) e mandar seu Santo Espírito nos ajudar (cf. Jo 14 15ss.26; 16,7-15). Hoje vamos refletir sobre outra dimensão da ruptura com Deus, os “pecados que bradam aos céus”.
Antes, para dilucidar o estudo sobre o pecado, é salutar que se recorde alguns rudimentos da doutrina da Igreja, como os Dez mandamentos. Depois veremos alguma coisa sobre o “pecado original” e, por fim, uma visão sobre a misericórdia de Deus.
a) Os Mandamentos da Lei de Deus
Existe gravidade diferenciada no âmbito dos pecados considerados de caráter mortal. Pecados mortais são, por exemplo, pecar contra os Dez Mandamentos e pecar contra o Espírito Santo. Chamado de Código do Sinai, os mandamentos proclamam:
1. Amar a Deus sobre todas as coisas
2. Não pronunciar o nome do Senhor em vão
3. Santificar o dia do Senhor
4. Honrar pai e mãe
5. Não matar
6. Não pecar contra a castidade
7. Não roubar
8. Não levantar falso testemunho
9. Não desejar a mulher do próximo
10. Não cobiçar as coisas alheias.
A doutrina dos Dez Mandamentos organiza o culto e a nossa vida cristã. Desta forma, amar a Deus sobre todas as coisas é a nossa primeira exigência religiosa. Quem não crê em Deus e não o adora nada poderá receber dele; está mais próximo da condenação eterna de que qualquer outra coisa. Com um mínimo de fé tudo é possível; sem fé nada é possível. Por isso, não devemos blasfemar, não devemos usar o nome de Deus para ações não espirituais ou não éticas. Só devemos evocar o testemunho e a proteção divina para ações éticas e para a verdade. A idolatria e as heresias são contrárias ao Primeiro Mandamento.
Em segundo lugar, devemos estabelecer nosso culto a Deus publicamente, e em um dia da semana obrigatoriamente: o domingo, o dia do Senhor.
Devemos honrar nossos pais que nos deram a vida natural e a moral cristã, através da educação. Devemos ser dignos deles, amá-los, respeitá-los, ampará-los e prosseguir a sua obra.
Não matar é zelar pela vida daquele semelhante que foi feito, igual a nós, com a dignidade de um filho de Deus, como uma imagem e semelhança do Pai. Somente Deus tem o controle sobre a vida e a morte. Nessa obrigação está a proibição do aborto, da eutanásia e coisas afins.
Dentre os pecados contra a castidade está a fornicação, o adultério, a masturbação, a homossexualidade, a pedofilia, a zoofilia, além de desvios em pensamentos e palavras.
Não roubar é um dever moral, porque o próximo tem direito natural à propriedade para a sua subsistência, e também por vontade divina, expressamente manifestada nas Tábuas da Lei. Roubar, defraudar, deixar-se levar pela corrupção, sonegar e trapacear são atos imorais.
Ao recomendar que o nosso falar seja “sim, sim, não, não” Jesus está recomendando que policiemos nossas palavras, não falando dos outros, não depreciando o próximo nem efetuando falsos depoimentos, pois tais práticas vêm do Maligno.
Por fim, nos mandamentos 9º. e 10º., a Lei trata da cobiça, uma espécie de concupiscência, que é uma forma de idolatria. É pecado cobiçar coisas, propriedades, dons e atividades dos outros. Igualmente, perfila-se aí o ato de cobiçar o cônjuge (homem ou mulher) do outro (a).
Em geral, como já se disse, as faltas contra os Dez Mandamentos levam o nome de “pecado mortal”, que é aquela falta moral que sempre elimina a graça divina da nossa alma, rompendo a amizade do homem com Deus. Cometemos pecado sempre quando agimos livre e conscientemente. Ações adotadas por constrangimento externo insuperável ou por ignorância, não constituem pecado, não implicam em culpa pessoal ao autor da referida ação pecaminosa.
O pecado é um ofensa a Deus: “Pequei contra ti, contra ti somente; pratiquei o que é mau aos teus olhos” (Sl 51,6). O pecado ergue-se contra o amor de Deus por nós e desvia dele os nossos corações. Como o primeiro pecado, é uma desobediência, uma revolta contra Deus, por vontade de tornar-se "como deuses", conhecendo e determinando o bem e o mal (Gn 3,5). O pecado é, portanto, amor de si mesmo até o desprezo de Deus. Por essa exaltação orgulhosa de si, o pecado é diametralmente contrário à obediência de Jesus, que realiza a redenção gratuita.
b) Lei moral, consciência e pecado
Pela lei moral, desde aqueles preceitos gravados naturalmente em seu coração, a pessoa sabe que nem tudo o que fisicamente pode fazer, eticamente deve ser feito. Os preceitos que integram a lei moral estão contidos:
a) na Lei Eterna
b) na Lei Natural
c) na Lei Positiva
d) nas leis humanas
A Lei, definida por Santo Tomás, na Summa Teológica, é a ordenação da razão dirigida ao bem comum, promulgada por quem tem autoridade. A lei eterna é “uma ordenação ética pensada e projetada por Deus desde toda a eternidade”. Já lei natural é a própria lei eterna enquanto participada na criatura racional. Dotado de inteligência, o homem é orientado por essa norma natural gravada por Deus em seu coração. Deus não se contentou em gravar sua lei no coração humano, mas decidiu, através de ensinamentos aos patriarcas, aos profetas, de mandamentos, e pelas Escrituras, tornar Positiva essa lei, isto é, uma lei comunicada ao homem por meio de uma revelação divina.
Para uma boa acolhida das leis eterna, natural e positiva, é indispensável que o ser tenha liberdade de consciência. Deste modo, toda a atitude humana fica sujeita ao juízo da consciência, antes porém, iluminada pela lei moral, que avaliará o suporte ético da conduta. É a consciência que vai dizer se nossos atos são pecado ou não. O pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a consciência reta; é uma falta ao amor verdadeiro para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso a certos bens. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana. Foi definido como “uma palavra, um ato ou um desejo contrários à lei eterna”.
Consciência, segundo S. Agostinho, é o santuário do homem, o núcleo secretíssimo no qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. No fundo do seu coração, de sua consciência, o ser humano descobre uma norma de vida, uma lei moral que ele não impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer. É a própria inteligência quando julga a moralidade de uma ação, quando a relação entre a liberdade humana e a lei divina ocorre na sede do coração.
Trata-se de um juízo prático acerca da bondade ou da malícia de um determinado ato. Assim, a Consciência é a primeira e mais eficaz instância de julgamento de seus atos que o ser humano dispõe.
Para a formação de uma consciência cristã é preciso estabelecer uma reta razão, que nada mais é do que fazer o que se tem certeza que é certo. Uma consciência bem formada é reta e verídica, e por isso formula seus julgamentos conforme a razão, de acordo com o bem. A palavra consciência, em ética filosófica é a faculdade de distinguir o bem do mal, de que resulta o sentimento do dever ou da interdição de se praticarem determinados atos, e a aprovação ou o remorso por havê-los praticado.
Como “mestra da verdade”, a consciência chega a nós mais qualificada, com o que chamamos de consciência moral, que nada mais é que a faculdade de distinguir o bem do mal, de cuja distinção resulta o sentimento do dever ou da interdição de se praticarem determinados atos, e a aprovação ou o remorso por havê-los praticado.
c) Os pecados que clamam aos céus
Os “pecados que bradam aos céus”, sancionados na teologia moral, segundo os clássicos, e com fulcro nas Escrituras, são aqueles cuja influência nefasta na ordem social reclama providências do Alto. Eles se incluem em tudo aquilo que a Bíblia informa como “coisas que o Senhor abomina”. Vamos a eles?
1. O homicídio
2. Os pecados contra a natureza
3. A opressão aos pobres
4. A exploração da viúva, do órfão e do estrangeiro
5. A injustiça contra o assalariado
1. o homicídio
O Quinto Mandamento assinala como gravemente pecaminoso o homicídio direto e voluntário. O assassino e os que cooperam voluntariamente com o assassinato cometem um pecado que clama ao céu por vingança. O aborto, o infanticídio, o fratricídio, o parricídio e o assassinato do cônjuge são crimes particularmente graves, devido aos laços naturais que rompem. Preocupações de eugenismo ou de seleção racial não podem justificar nenhum assassinato, mesmo a mando dos poderes públicos.
A Escritura Sagrada diz, expressamente, que os homicídios clamam pela vingança do céu: “A voz do sangue de teu irmão clama da terra para mim” (Gen. 4, 10), disse Deus a Caim.
2. os pecados contra a natureza
Embora haja nos dias de hoje alguma rejeição quanto as críticas à homossexualidade, sob a acusação de discriminação e homofobia, a verdade é que a Sagrada Escritura encara como antinatural essa prática, no passado chamada de “sodomia”. Desde o primeiro livro da Bíblia, lê-se que
O grito de Sodoma e Gomorra aumenta cada vez mais, e seu pecado chegou ao cúmulo. Descerei e verei se suas obras correspondem a este grito que subiu até mim (Gn 18, 20).
Qual era o pecado de Sodoma? Justamente o que chamamos hoje de “sodomia”, o sexo anal, o homossexualismo. No livro do Levítico Javé fala ao povo dizendo:
Não se deite com um homem como se fosse com uma mulher; isto é uma abominação (18,22).
Nessa linha a Bíblia execra outros pecados sexuais, entre eles a zoofilia (cf. Lv 18,23). No Novo Testamento São Paulo faz uma dura crítica aos homossexuais, pederastas e lésbicas:
Por isso, Deus entregou os homens a paixões vergonhosas: suas mulheres mudaram a relação natural em relação contra a natureza. Os homens fizeram o mesmo: deixaram a relação com a mulher e arderam de paixão uns pelos outros, cometendo atos torpes entre si, recebendo desta maneira, em si próprios a paga pela sua aberração (Rm 1,26s).
A homossexualidade, embora nosso dever de acolher as pessoas homossexuais, é um desvio moral, contrário à natureza. A sodomia é um pecado grave, contra a natureza. Referindo-se à prática do sexo anal, não aponta tão-somente para relações homossexuais, mas também no caso de ser praticada entre homem e mulher, mesmo unidos pelo matrimônio.
3. a opressão aos pobres
A aceitação pela sociedade humana de condições de miséria que levem à própria morte sem se esforçar por remediar a situação constitui uma injustiça escandalosa e uma falta grave. Todo aquele que em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provoquem a fome e a morte de seus irmãos comete indiretamente um homicídio, que lhe é imputável. No Egito, o povo de Israel era pobre e oprimido. Por razões sociais e políticas fora escravizado pelo poder do faraó. Por um bom tempo eles clamaram a Javé, pedindo libertação. Um dia o Senhor suscitou um libertador, Moisés, a quem Deus apareceu no deserto, no episódio da “sarça ardente”. Começava ali a libertação de Israel: “Eu ouvi os clamores do meu povo, notei seu sofrimento e resolvi descer para libertá-lo” (Ex 3,7-10).
4. a exploração da viúva, do órfão e do estrangeiro
Oprimir viúvas, idosos, crianças, órfãos e estrangeiros (migrantes) é uma falta sumamente grave porque além do fato da opressão em geral ser pecado, oprimir pessoas frágeis é um ato de extrema covardia e finalmente praticar atos contrários ao convívio é voltar-se contra a vontade expressa por Deus para a realidade criada. Aos opressores das viúvas e órfãos, o Espírito Santo diz:
As lágrimas da viúva não correm ao longo de suas faces, chamando vingança contra quem as provoca? Do seu rosto, sobem até mim (Ex 22, 20ss).
5. a injustiça contra o assalariado
Não pagar um justo salário é se apropriar do bem alheio. São Tiago designa outro pecado deste gênero: “Eis que clama para o céu o salário de que tendes privado os obreiros que ceifaram vossos campos, e os gritos dos segadores subiram até os ouvidos do Senhor dos exércitos!” (Tg, 5, 4).
Não explore o assalariado pobre e necessitado, seja ele um dos seus irmãos ou imigrante que vive em sua terra, em sua cidade. Pague-lhe o salário a cada dia antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e sua vida depende disso. Assim ele não clamará a Javé contra você, e em você haverá pecado (Dt 24,14s).
Modernamente, há crimes e pecados nessa área, como pagar salários irrisórios, imorais, cobrar “taxas” (pedágio) sobre a remuneração paga, sonegar contribuições previdenciárias, assinatura de carteira de trabalho, recolhimento de “fundo de garantia” e outros direitos, bem como forçar o trabalhador a jornadas e atividades além do normal.
Observando o que ocorre nos dias de hoje, nas empresas, no comércio, nos bancos e mesmo nas residências, será que os assalariados não têm motivos para clamar aos céus contra você, contra mim, contra nossa sociedade toda?
d) A misericórdia: o oposto do pecado
Para neutralizar o efeito do pecado, pela misericórdia do Pai, Jesus instituiu os sacramentos, especialmente o da penitência. Somente é possível reparar o pecado mortal com a confissão e a penitência sacramental. Quem morre em estado de pecado mortal cumprirá pena eterna no inferno. Quem está em pecado mortal não pode se aproximar da Sagrada Comunhão durante a santa missa para não profanar as espécies sagradas.
O clamor de nossos crimes sobe até as alturas do céu, porém muito mais alto ainda sobe a voz súplice do Sangue de Jesus que, infinita e onipotente, não transpassa somente os ares, mas enche o céu e penetra até no coração do Pai celeste. Ante a doçura desta voz, se desvanece o pensamento da vingança que a multidão de nossos crimes havia inspirado ao Altíssimo.
Uma vez, em um retiro me perguntaram: “Como é que o precioso Sangue clama ao céu, pois nada se ouve?” Eu devolvi com outra pergunta: “Como o sangue de Abel podia clamar, estando ele morto?” Não obstante, Deus disse a Caim: “A voz do sangue de Abel chega até mim”.
Quem, pois, desarmará a ira do Senhor? Quem desviará sua terrível vingança? Quem? Uma questão desse tipo só admite uma resposta: O precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo!
O pecado, aprendemos isto desde o catecismo primário, desfigura o ser humano. Ao contrário, os sacramentos de Cristo restauram, refazem o homem desajustado em sua finalidade. Na parábola do “filho pródigo” (cf. Lc 15, 11-32) podemos entender a tragédia do pecado sobre a vida humana. Para começo de conversa, vamos ver quantos são os personagens dessa história? Dois? Três? Quatro? Efetivamente são quatro: o pai, os dois filhos e o patrão. Para aprofundar nossa reflexão, vamos à análise de cada um desses participantes?
o filho mais novo
É o chamado “filho pródigo”, irrequieto e insatisfeito. Tem tudo na casa do pai, mas prefere viver numa “corda bamba”. Pede sua parte na herança paterna e parte para uma vida desregrada no estrangeiro. É o típico caso de quem quis “viver sua vida”, curtir sua liberdade e, como se diz popularmente, acabou “quebrando a cara”. Enquanto teve dinheiro teve amigos e desfrutou da companhia das mulheres. Quando sobreveio a fome, junto com o dinheiro faltaram-lhe os amigos e as amigas e, para não morrer de fome, ele teve que trabalhar.
Desiludido, ele foi trabalhar numa granja, cuidando de porcos. A narrativa é expressiva ao narrar sua carência: ele sentia fome e tinha vontade de comer a comida dos porcos, mas nem isso lhe era permitido. Caindo em si, concluiu pela inutilidade daquela vida, enquanto em sua casa, até os empregados tinham melhores regalias que ele. Decide voltar e pedir perdão ao pai.
o filho mais velho
Embora sua aparência de “bom moço”, comportado e legalista, ele é tão culpado quanto o tresloucado irmão mais novo, pois é, como aquele, um desagregador da família, já que ignora o drama do irmão, pensando só em si, com ciúmes da acolhida que o pai dispensa ao irmão que voltou, e com pena de ver o patrimônio (o novilho gordo) partilhado com os convidados da festa que o pai fez para o irmão.
o patrão
O evangelho, referindo-se ao patrão, diz que ele era “um homem do lugar”. Pela narrativa é uma pessoa de objetivos, como muitos empresários que conhecemos hoje. Seco e insensível, ele não quer saber se o empregado tem fome ou não. Ele sabe que o empregado está ali para servir-lhe incondicionalmente e para assumir o compromisso com o bem-estar dos porcos. Àquela altura, isso é que interessava. Como empresário, ele não deve ter pena de ninguém, ainda mais sabendo que, chegando onde o rapaz chegou, pela dependência que adquiriu, dificilmente há caminho de volta...
o pai
Segundo alguns racionalistas, o pai é um homem bom demais, suscetível aos caprichos do filho mais novo. Quando se esperava uma reprimenda e uma ação severa contra o filho perdulário, ele o acolhe, veste-o, reintegra-o à família e ainda faz uma festa.
Feita a análise superficial dos personagens, vamos agora à exegese, a interpretação da parábola, que trata de erro, pecado, reconhecimento de culpas, volta e perdão. Teologicamente, o filho mais novo é o homem que peca. Tendo tudo junto a Deus ele vai buscar, numa vida de aventuras, emoções que acabam degradando-o. Respeitando sua liberdade, Deus não o amarra nem o detém. Por ter liberdade e consciência, o filho sabe o que está fazendo. O Pai sente mas não o impede de sair de casa.
O patrão é o diabo. Por “um homem do lugar” e ali se criavam porcos, entende-se como um homem do lugar dos porcos. A nítida figura do Maligno (cf. Mt 8, 28-32). Ele sabe que o rapaz tem fome e manda-o cuidar de porcos. É preciso um conhecimento histórico para se avaliar essa situação degradante. O porco para os judeus é um animal imundo. Pois o rapaz vai cuidar de porcos e nem a comida deles pode comer. Essa evidência assustadora nos mostra que o homem em pecado, rompido com o Pai, fica abaixo dos porcos, merece sua companhia e seus alimentos são comuns. O demônio sempre é o oportunista que acena com alguma coisa para levar o indivíduo para baixo, a conviver com porcos. Ele oferece ilusões para nos roubar valores...
E o irmão mais velho? Que figurinha bem antipática a desse cidadão!! Às vezes, certas pessoas das comunidades, que estigmatizam os que erraram, rotulando-os e impedindo-os de reingressar na comunhão dos redimidos lembram, bem de perto este triste personagem. Podem ser também os “santinhos”, os “mais antigos”, os “graduados”, para quem o recém convertido é novo e não tem direitos ...
E o Pai, quem é ?
O Pai é Deus! Imune a toda pressão antifraterna, ele acolhe o filho que errou, caiu em si e quer voltar. A narrativa deixa antever que, “todas as tardes, de uma colina, ele olhava a estrada, na esperança de ver o filho voltar”. Quando o reconhece, claudicante e alquebrado, teve compaixão e correu-lhe ao encontro (v. 20). Isso mostra que, enquanto o homem caminha, arrependido, na direção de Deus, este, corre ao seu encontro, disposto a reintegrá-lo na comunhão de seu Reino. Enquanto o remorso e o arrependimento caminham, a misericórdia de Deus corre ao encontro do pecador que quis voltar, pois o perdão é sempre maior que a falta cometida, desde que haja arrependimento e desejo de conversão.
Na verdade, é um pouco inadequado o título, em língua portuguesa, colocado pelos tradutores lusitanos, para essa parábola. “O Filho Pródigo” diz muito pouco, pois dá ênfase, pelo menos na epígrafe, às atitudes desastradas do filho, quando o miolo, o sitz im lebem da parábola gira em torno da misericórdia do Pai, que perdoa, esquece, raspa, apaga, torna ilegível a culpa do filho arrependido, que quis retornar. O nome mais adequado dessa parábola deveria ser “O Pai rico em misericórdia”. Concordam?
e) O pecado original
Concluindo a reflexão que fizemos hoje pela manhã, aonde vimos algumas noções sobre pecado, é importante que se saiba separadamente alguma coisa sobre o pecado original. Ao contrário do que algumas pessoas, no passado e no presente têm afirmado, não se trata de pecado hereditário, ou por causa do pecado do ser humano ser fruto de relações sexuais entre seus pais, nem, muito menos, trata-se de pecados cometidos em vidas passadas.
O pecado original é uma tendência natural que nasce com o ser humano, predispondo-o ao rompimento com o bem. Pecado original não é um erro de fabricação. O homem não traz em si a consciência de uma culpa qualquer, cometida anteriormente. Nem traz consigo o pecado dos pais, como se fosse um pecado pessoal. O mal pessoal começa quando o homem, em vez de abrir-se para o infinito e nascer para Deus que lhe estende a mão, procura reduzir o infinito ao tamanho de seus próprios limites finitos.
Existe uma misteriosa solidariedade no mal entre os homens, assim como em todos nós existe uma absoluta necessidade de redenção e de libertação. Pecado original, nessa contingência, é um radical desajuste que nasce com o homem. Desajuste em relação à finalidade para a qual foi criado. As questões do pecado original há anos vêm suscitando debates entre os teólogos cristãos, em face da chamada “doutrina da justificação” dos luteranos, quando o homem é considerado justo, mas na realidade não o é. Ao contrário, a doutrina católica, apoiada nas resoluções do Concílio de Trento (séc. XVI) afirma que a justificação é a passagem do estado de injustiça, em que o homem nasce (decorrente do pecado original), para o estado de graça que é, em última análise, a amizade com Deus. Diz-se pecado original pois ele nasce com cada um desde sua origem (nascimento).
A justificação implica numa remissão de pecados, (cf. At 3,19; Tt 3,5), os quais são cancelados e não apenas cobertos, como afirma a doutrina luterana. Pela justificação o homem retorna à vida da graça, que processa nele uma transformação intrínseca.
Na “Constituição sobre a Igreja no Mundo Moderno”, Gaudium et Spes, o Vaticano II ensina que “criado por Deus em estado de justiça, o homem, instigado pelo Maligno, desde o início da história abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus, desejando atingir seu fim fora dele” (GS 13). Os capítulos 1 – 11 do Livro do Gênesis descrevem este fato sombrio para a humanidade. Os capítulos 1 e 2 do Gênesis contam a história da criação por Deus. Deus criou todas as coisas, inclusive o homem e a mulher, e viu que tudo era bom. Gn 1 – 2, (como um hiato entre 1 – 11), descreve o projeto de Deus.
Mas neste mundo perfeito entrou o pecado. No capítulo 3 do Gênesis vemos que o homem Adão rejeita a Deus e tenta tornar-se igual ao seu Criador. Como conseqüência deste pecado original, o homem se sente afastado de Deus, escondendo-se. Quando Deus o interpela, Adão culpa sua mulher, Eva, pelo seu pecado, e ela, por sua vez, culpa a serpente. A lição é simples e trágica: o pecado do homem transforma a vida num pesado fardo.
A partir do capítulo 4 (até o 11) do Gênesis vemos o avanço do pecado no mundo, após o pecado de Adão, revelando o projeto do homem. Caim assassina seu irmão Abel. O pecado atinge tamanhas proporções que Deus manda, simbolicamente um grande dilúvio que cobre a terra, símbolo do caos e loucura da humanidade que chega ao auge: o homem tenta de novo tornar-se igual a Deus construindo uma torre que atinja os céus. Esta rejeição de Deus se manifesta na rejeição do próximo por parte do homem. Doravante existe divisão e completa falta de comunicação entre as nações.
Conforme a Bíblia, um mundo de belezas foi deformado pelo pecado. O resultado que se seguiu foi divisão, dor, derramamento de sangue, solidão e morte. Esta trágica narrativa exprime algo que sentimos na própria carne. A realidade que ela aponta faz parte fundamentalmente da experiência humana. Não nos surpreende que esta realidade – o fato do pecado original e seus efeitos em todos nós – seja um ensinamento da Igreja.
Embora continue a mostrar o mal que existe neste mundo, a Igreja não está sugerindo que a natureza humana esteja totalmente corrompida. Ao contrário, a humanidade é capaz de fazer o bem e rejeitar o pecado. Não obstante tenhamos uma tendência ao desajuste, ainda mantemos o controle essencial sobre nossas decisões. Permanece a vontade livre. Cristo, nosso Redentor, venceu o pecado e a morte pela sua morte e Ressurreição. Foi ele que providenciou o nosso resgate.
Essa vitória cancelou não apenas nossos pecados pessoais, mas também o pecado original e seus efeitos. A doutrina do pecado original, portanto, entende-se melhor como um escuro pano de fundo contra o qual pode ser aplicada, fazendo contraste, a brilhante redenção adquirida para nós por Jesus Cristo, nosso Senhor. É justamente a partir de Cristo que o pecado começa a perder intensidade, pois o generoso sangue do Filho de Deus, derramado no Calvário, se torna penhor e pagamento pelas vidas humanas, até então destroçadas pelo pecado.
Até Jesus a humanidade tinha promessas, esperanças, mas não tinha uma realidade concreta. Para que o homem pudesse ser resgatado das trevas, para que fosse definitivamente “comprado” por aquele que o criou, um preço muito caro teve que ser pago: o sangue de Jesus Cristo.
Por fim, é prudente que se sabia que, por mais assustadora que seja a tragédia do pecado, maior é a misericórdia de Deus e seu projeto, através de Jesus Cristo, de nos tirar do império das trevas e nos conduzir, definitivamente, ao Reino dos céus.
Meditação levada a efeito em um retiro de padres em Salvador /BA, em novembro de 2008. O autor é Doutor em Teologia Moral.