Da aleatoriedade

ARTIGO - [ 30/08 ]

Da aleatoriedade - Adalberto Nascimento

Notícia publicada na edição de 30/08/2009 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A.

O acaso também traz grana. Um único apostador levou o maior prêmio da história das loterias na Europa. O sortudo ganhou cerca de R$ 388 milhões da loteria italiana

Na véspera de uma prova final, dois universitários sorocabanos foram juntos a uma festinha na vizinha cidade de Itu. Foi uma festa e tanto (em Itu, tudo é tanto). Não deu outra: encheram a cara e, com uma baita ressaca, perderam a prova. Dias depois, imploraram ao professor por uma prova substitutiva, justificando a anterior ausência com a manjada história do pneu furado. O professor, aceitando a desculpa, bolou uma nova prova e mandou os dois a salas separadas. Na primeira página da prova havia uma questão valendo meio ponto. No verso, a outra, valendo 9,5 pontos: “Qual era o pneu?” Professor astuto, não é mesmo? Saberia o leitor, também astuto, dizer qual a probabilidade de que os dois alunos dessem a mesma resposta?

Essa é uma adaptação que fiz de uma historinha contada em “O andar do bêbado”, de Leonard Mlodinow, um livro muito interessante que trata de como o acaso determina nossas vidas.

Tal história trouxe-me à lembrança as famosas provas de Eletrotécnica do meu curso de Engenharia Civil na Poli. Quando adentrávamos o anfiteatro, as provas já estavam dispostas de tal forma que uma, colocada em uma dada carteira, era diferente das dispostas nas carteiras lindeiras. Ou seja, cada aluno virava uma ilha cercado de provas diferentes por todos os lados. Todavia, confirmando que a matemática é a ciência dos padrões, o pessoal começou a sacar que as diferentes provas continham os mesmos testes e as mesmas opções de respostas, mas de forma embaralhada. Pelo jeitão da impressão, dava pra perceber, por exemplo, que a opção “a” da sétima questão de uma dada prova correspondia à opção “c” da terceira questão de uma outra. Dessa forma, o pessoal começou a se comunicar, digamos, por padrões. Todavia, o serviço de inteligência dos docentes estava sempre alerta às transgressões discentes e indecentes. Nas provas seguintes, os padrões foram alterados, mas com mudanças diabolicamente sutis. Numa prova, por exemplo, um dado valor era 800, na outra 300 - para, com isso, embaralhar a visão, mesmo a de portadores de olhos de lince. As opções de respostas aos testes, do mesmo jeito, passaram a ter formatos bem parecidos. Tudo carinhosamente diagramado pra ferrar incautos buscadores de padrões.

Entretanto, os mestres não eram totalmente malévolos (só uns 99,99%), uma vez que, generosamente, deixavam os alunos lerem as provas antes do início da contagem oficial do tempo. Quem não se sentisse preparado, tinha o direito de desistir de uma das provas, deixando para fazer a substitutiva, na qual caía a matéria de todo o semestre correspondente.

Com muitos alunos desistindo, abriam-se clarões de carteiras vazias e com as quais um querido amigo capixaba, infelizmente já falecido, jogava com a sorte. Ele levantava-se de onde estava e, com a prova nas mãos, dirigia-se a um dos professores (eram no mínimo dois) para tirar uma dúvida. Tratava-se de uma pantomima tragicômica, pois ele nem sabia o que perguntar, tal o seu despreparo na matéria. Mesmo assim, ia resoluto ao encontro de um dos algozes. Quando estava bem próximo, parava, olhava a prova e, com “cara de conteúdo”, sussurrava: “Ah!”, como se a dúvida, por influência de alguma entidade criadora do eletromagnetismo, tivesse sido sanada. E, meio borocoxô, dava meia-volta, dirigindo-se, “com andar de bêbado”, a um lugar num daqueles clarões de desistentes. A sua esperança era encontrar alguém com uma prova idêntica na circunvizinhança de sua nova carteira. Torcia por esse acaso, que lhe traria uma boa nota.

O acaso também traz grana. Um único apostador levou no dia 22/08/09 o maior prêmio da história das loterias na Europa. O sortudo, da região da Toscana, ganhou cerca de R$ 388 milhões (148 milhões de euros) da loteria italiana.

Mas, como já nos conta Leonard Mlodinow no início de seu livro, o acaso pode vir de forma torta. Há algum tempo uma pessoa ganhou na loteria espanhola com um bilhete que terminava com o número 48. O ganhador creditava sua sorte ao fato de ter sonhado sete noites com o número sete. E como, segundo ele, “7 vezes 7 dá 48”, apostou nesse número e ficou rico.

Pois é, se fosse brasileiro e tivesse feito a multiplicação correta, teria apostado no galo, porque 49 faz parte do grupo desse animal (vide internet) no jogo do bicho.

Para encerrar, vejamos como ficou, em termos probabílisticos, a enrascada daqueles universitários da história inicial. Analisando as possibilidades, temos que as escolhas de um dos alunos, combinadas com as possíveis escolhas do outro, perfazem um total de 16 duplas de pneus. Dessas, 4 são coincidentes e, portanto, a probabilidade de eles darem a mesma reposta é igual a 4 dividido por 16. Ou seja, 0,25, que, em termos porcentuais, significa 25%.

Será que a tal festinha de Itu valeu a pena?

Adalberto Nascimento é engenheiro e escreve a cada duas semanas neste espaço, sempre aos domingos (dal@globo.com).